Ítalo no talo, Calvino dixit: "O livro deveria ser a contrapartida escrita do mundo não escrito. A sua matéria devia ser aquilo que não existe nem poderá existir senão quando for escrito". Há muito não lia uma citação tão perfeita, tão soi-disant, como essa de Ítalo Calvino que Beatriz Amaral coloca como epígrafe de seu belo livro de contos Os fios do anagrama (São Paulo: RG Editores, 2016).

O dito de Calvino — melhor, o seu "escrito" — sobrepaira como antevisão, como proposta e razão de ser, ao longo de todas as narrativas que compõem a nova obra da autora, intelectual de longo curso: poeta, musicista, ensaísta, contista, vários e vários livros publicados em sua trajetória. "Contrapartida do mundo" (i.e., da narrativa), o livro, a sua matéria, só existe enquanto "escrita".

Ao apropriar-se de Calvino como se fora um "fio narrativo" de sua escrita, Beatriz Amaral na verdade trabalha com a "escritura" no conceito lacaniano, com a criação que constrói a tessitura de sua narrativa, embasada na força de suas palavras. Elegante, sofisticada, erudita, a escritura desses contos ressalta na maioria das vezes a força da palavra, a extrema habilidade de Beatriz em manejá-la, sobrepondo-se à própria narrativa — prazer que, como leitor, positivamente eu não dispenso.

Confesso que raramente consigo ainda me deixar levar pelo fluir de uma história, pelo plot da narrativa, de qualquer narrativa. Vício antigo, eu acabo me fixando nas palavras, em sua construção, no seu entrelaçar, nos seus entrechoques, nos seus súbitos cortes, em seus meandros. Na verdade, mais que na fôrma, no dito "conteúdo", eu acabo mesmo é privilegiando a forma, me detendo na sintaxe, na semântica, nas aliterações, metáforas, nas anáforas (para exemplificar dentro do contexto desse livro) ou outros artifícios de linguagem que Beatriz manobra muito bem dada a sua sofisticada escrita & escritura.

Fiz então com Os fios do anagrama o que sempre faço com os livros de que gosto: vou marcando frases, palavras, palavras, palavras. Assim fiz, marcando, remarcando e acabei grifando grande parte de suas páginas. Coisas assim como "por que escrever, se parte dos dados se perdeu na memória — e justamente a parte objetiva das coisas?". O que me remete ao saudoso poeta mineiro Francisco Marcelo Cabral: "Escrevemos / porque sabemos / que vamos morrer. // Escrevemos / porque não sabemos / por quê".

Assim foi que copiei ("escrita") esses trechos assinalados — touchstones, punti luminosi — e os dispus em conformação de poema ("escritura"?). Não vejo melhor maneira de demonstrar o grande prazer que me proporcionou a leitura desse Os fios do anagrama. Prazer que repasso agora aos leitores: eles certamente irão se encantar com a escrita de fino trato de Beatriz Amaral.

 

 

Fios que se refazem

 

 

"Alguém rebobina as cenas. / Pula. Rebobina. / Quem se confunde nesse Labirinto? / Quem brinca nos domínios de Mnemosine? // Crshshshsh! / Tombam no chão mais de cinquenta pequenas bússolas douradas. / As placas se fixam à esquerda do lago: / Vendem-se bússolas. / Você descobre o norte. / Há uma ideia de água onde você está".

"Valladolid virá, como de costume / septiembre, septiembre, / com seu teor de véspera e seu timbre / inusitadamente grave: / navegarei noites / abertas e ibéricas". // À beira do impasse, / um mestre fisga / o cerne da cena. // Em cada canto / se interpenetram / camadas de cotidiano".

"Stella, anfíbio / que sibila, / antítese do arco. // A voz da filha / antes do jantar: / Mãe, libélula é / proparoxítona? / É. Antítese também. / Também hipérbole, / Metáfora, parábola / Fábula, líquido, / Pérola, capítulo. // Ah, capítulo também. / Que palavra linda essa. / Pensava: deve ser / Uma palavra importante. / Capítulo dezessete, / Capítulo trinta e dois".

"Um parafuso, uma espátula, / o grampeador, o esmalte / cor de mel. // Stella vê o passaporte. / Finge que não viu. / Não dá mais / pra parar de procurar. // Qualquer coisa. / Qualquer coisa mesmo. / Os anéis de Saturno. / As luas de Júpiter. / O vento do mar. / Qualquer coisa / que justifique / a busca. Algo / inusitado que ilumine / a noite e apague / o fio de luz: este desejo /  intermitente de estar / pronta".

"Laerte e Arlete / anagramaticamente / unidos entre os dígrafos / de sobrenome ibérico. / Laerte submerge. / Ideias entre camadas, / escamas e cromatismos. // Em plenilúnio / Laerte e Arlete / plantam planetas / no tempo. // Rápidas rotas / insólitas. / É pedra de fonema. / É ritornello. // Neste portal / de anáforas / você se despe / você não repete nomes / você sabe o claro-escuro / você recolhe / você lendo / você tece tão célere / você no meio / você se depara / você reconstrói / você sabe / você ensaia / você arquiteta / você — aeroplanagem / você caminha / você Gertrude Stein / você a rose a rose / você a prose a prose".

"Agora, o texto / — substituto do olho / míope e cansado — / desliza pela página. / Por que escrever, / se parte dos dados / se perdeu na memória / — justamente a parte / objetiva das coisas? // E aqui estou, / há três dias, / fragmentando/ e dissolvendo/ frases não ditas, palavras sem som,/ imagens sem nome, / mensagens sem destino, / personagens não encenados. // Quem engendra / o som das palavras? / Em Los Angeles, / a lua se remove. / O peso das sílabas, / mel de abelhas, / hortelã. / Escreve o dia / Com o olho".

"Estilhaços de futuro / Não se tocam. / Um eco, nada mais, / você é quem sabe. / Vendredi, monsieur, / vendredi. / Ou jeudi? // Será o círculo / o símbolo do self? / Quem pergunta? Que voz / desponta no meio / do texto para contestar / o conhecimento / do esboço, do relevo, / do contexto? // Se sou poeta, escrevo, / escrevo, escrevo / Alquimia dos Círculos. / E na transmutação / de formas circulares, / a dança da linguagem / saberá extrair o seu lugar? / Saberá escolher o porto, / o aceno, a figura / cromática do sono? / Rota, modulação, / desnível. Círculo / delírio da noite bemol".

"Algumas ondas / rebobinam cenas e / desenham um tempo de naus. / No inverno, as paisagens / marinhas nos tragam, / são intensas, espessas. // Aqui o porto das palavras se faz lento, sólido, / Denso. // Mas é palavra / em sua própria harpa, / em que / vibram os séculos / dos séculos ao sol".

 

 

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O livro: Beatriz H. Ramos Amaral. Os fios do Anagrama.

São Paulo: RG Editores, 2016.

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dezembro, 2017

 

 

Ronaldo Werneck é poeta, jornalista, crítico, editor, produtor cultural e videomaker. Nascido em Cataguases/MG, o artista multimídia morou, trabalhou e produziu por 30 anos do Rio de Janeiro, tendo voltado, na virada do século, à sua cidade natal. Publicou os livros Selva selvaggia (1976), pompa poema (1977), minas em mim e o mar esse trem azul (1999), Ronaldo Werneck revisita Selvaggia (2005), Noite americana/Doris Day by Night (2006), Minerar o Branco (2008), Kyriri Rendaua Toriboca Ope: Humberto Mauro revisto por Ronald Werneck (2009), Há Controvérsias (2011), Cataminas pombas e outros rios (2012), o mar de outrora e poemas de agora (2014), Rosário Fusco por Ronaldo Werneck — sob o signo do imprevisto (2017). Editor de Suplementos Literários e ensaísta, colaborou com veículos diversos, entre os quais Jornal do Brasil, Pasquim, Diário de Notícias, Última Hora, Revista Vozes, Revista Poesia Sempre, Revista História, Suplemento Literário de Minas Gerais, Jornal O Liberal, de Cabo Verde. Foi um dos realizadores dos dois Festivais Audiovisuais de Cataguases — Música e Poesia. Coordenador da Exposição "Os Mineiros do Pasquim" (2008). Em 2001, gravou em show ao vivo o CD Dentro & fora da melodia/ que papo é esse, poeta?. Atualmente, dedica-se também a editar registros visuais captados em vários formatos (Super 8, VHS, Super VHS, digital), ao longo das últimas três décadas. É membro do Pen Clube do Brasil e tem feito conferências e palestras por todo o Brasil, sobre a própria produção poética.

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