Papoulas de Kandahar é daqueles nomes que têm a cara da coisa que nomeia, como rinoceronte, onça, elefante, hiena, pneu, violão, nuvem, faca, que nada mais nomeariam senão o que nomeiam.

As papoulas-crônicas de Roberto Lima (doravante, RL) são assim, a cara da coisa: metáforas do amor, do futebol, das viagens, das admirações, das vicissitudes.

Sei lá quais efeitos provocam as papoulas sobre quem as prova. Estas do cronista são comestíveis, opiáceas e ornamentais. Em geral, serão mais comestíveis e opiáceas do que ornamentais; nunca serão apenas mentais as papoulas-crônicas de um mineiro que tenha visto tantos sóis aquecendo o irresistível Ibituruna, o calor atirado à baixada onde a cidade se formou às margens planas onde havia um belo rio limpo.

Em A flor de Coleridge, Jorge Luis Borges cita Paul Valery: A história da literatura não deveria ser a história dos autores e dos acidentes de sua carreira ou da carreira de suas obras, mas a História do Espírito como produtor ou consumidor de literatura. Essa história poderia ser levada a termo sem mencionar um escritor.

É uma citação salvadora, pois, sempre li e ouvi música pensando assim, que criadores devessem desaparecer ante a obra criada, nunca buscando aplauso, deixando sumir o seu nome e a importância que se dão; esta, afinal, importa menos do que o que foi criado, ainda que o nome do criador seja mencionado.

No caso de RL, quero abandonar a restrição acima. É que não consigo lê-lo eliminando a sua imagem física, o seu nome. Nome, imagem física e relatos do valadarense-estadunidense de São Raimundo são indissociáveis. Quando o leio, tenho a sorte de poder lançar mão da sua presença física quando quero. Pois, é nela que está a primeira expressão do que virá nos seus textos:

- Ironia da leve e da pesada; gracejos e filosofadas; rabugens e garatujas interioranas mineiras brasileiras; falas e poetizações sem imagens forçadas, sem empobrecimentos do que ali seja ou não seja ainda poema, mas que é poesia dentro do lago esperando o pescador.

Para penetrar a totalidade das sensações das crônicas de RL, enumere-se algumas oportunidades que ajudariam o seu leitor na empreitada:

 

  1. que pudesse andar com o cronista em Nova Iorque ou em Ouro Preto;
  2. que pudesse distribuir o Brazilian Voice com RL, na sua van cheia de restos de barbante, papel de tudo que é jeito e de jornal velho;
  3. que o visitasse no Tirol ou se encontrasse com ele na Savassi, em Betim ou no Barreiro de Cima ou no de Baixo em BH;
  4. que pudesse provar a sua particular culinária;
  5. que atravessasse com ele o Rubicão mineiro, o ex-rio Rio Doce;
  6. que sentasse com RL e fosse servido solenemente por Ivo Faria ou por um garçom de qualquer boteco;
  7. com ele, sublimar um meio dia calorento de Governador Valadares ou o frio estadunidense;
  8. com RL, romper avenidas de São Paulo, uma rua de Lisboa;
  9. dividir um tropeiro no Mineirão, um churrasco mineiro-uruguayo-portenho no seu terreiro em Livingston ou um pão com linguiça na Albita-296 no Anchieta, em BH.

 

A décima oportunidade não será citada; cite-a o leitor.

Exceto viajar, eu nunca pensei em morar fora do Brasil. E fico pensando sobre os que saem do seu país e crescem, exatamente por isso. Aprenderão a viver completamente as novidades ou retornarão antes do que previam sem encontrar o que foram buscar. Façam o que fizerem, estará no espírito de todos o seu ponto de origem. Um dia dirão alguma coisa sobre as saudades, as conquistas, as batalhas. Dirão isso em poemas tristes e frágeis, fracos, feios, bonitos, bem ou mal feitos, bobos, lindos ou não; algo será dito ao pensamento por e-mail ou cartas, tweets, bilhetes, no interminável jogo de postagens. Como as tartarugas, nossas vidas anseiam o lugar original delas. Se o alcançamos, melhor assim; se não, diga-se ou escreva-se qualquer coisa, para um livro ou não, mas, para a expiação da nossa existência. A história do espírito dará algum nome a isso; e pode ser que seja Literatura.

Roberto Lima quer sair-se por todas as portas e janelas, espírito fundo que é, das coisas ralas, rasas ou não. Atacando de mergulhador das profundezas e debatedor da superfície, ataca de trabalhador braçal e mental; é ralador de coco e consertador de furo de peneira; fazedor de muro, pinguelas, telhados e tetos de esteira.

É certo que Carlos Roberto Lima seja capaz de mais coisas. Citar as que são menos visíveis é um problema permanente para quem se aproxima dele.

 

 

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O livro: Roberto Lima. Papoulas de Kandahar

Belo Horizonte: Ed. do autor, 2017, RS$ 28,00

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maio, 2017

 

 

Celso Adolfo, mineiro de São Domingos do Prata, violinista e compositor.