A letra da água é nua: matéria nascente, na nascente. Não como origem ou fundamento, mas como unidade energética, sistema de força em relação com o mundo. A primeira água, gota, sêmen ou orvalho fecunda o ovário da chuva, da lágrima, em forma de queda, pingente. O primeiro movimento: a memória: catarata, aguarrás. Plasticidade, gênese das águas, placenta. Um gesto líquido — antes da palavra organizar as sensações e o pensamento — aquele da tinta saltando da caneta para o papel; nesse gesto, onde a energia potencial é máxima e orientada pela indeterminação, o gérmen cristalino da letra brota: "pingo de vidro que estilhaça a palavra". Letra, ser híbrido: químico, sensorial, material, imaterial, real, onírico: ser engendrado durante a respiração de um silêncio. Escama e estilete. Pele e abismo. Um corpo. Um timbre dentro do corpo, voz forasteira que migra até à ponta da língua. Na ponta da língua, "som de enchente alta", pássaro, peixe e serpente. "O ser escrito" soa, vibra. Extensão móvil, espaçamento, deriva.

Como símbolo, a letra também marca a vida espiritual da água. Mas com isso, Carreira não sugere nenhuma perenidade mais que a do movimento, da própria perecibilidade. Uma vez que, lembrando Simondon, a espiritualidade não é somente aquilo que permanece, senão aquilo que brilha em um instante entre duas espessuras indefinidas de escuridão e se esquece para sempre. "Espiritualidade do instante", diz o pensador francês, que não busca a eternidade e sim ilumina como a luz de uma mirada para logo extinguir-se. O espiritual é antes de mais nada aquilo através do qual se efetua em nós o acesso ao indeterminado:

 

(...) espaço sem-margem olhado no centro do alvo

da luz

cego ponto de vertigem e queda

algum silêncio. (...)

 

Precisamos ser sensíveis aos fios de silêncio com que é tramado o tecido da fala, diz Merleau-Ponty no seu belíssimo A prosa do mundo. Precisamos ser sensíveis ao não dito, ao impronunciável, a todos os impossíveis que sustenta o texto. E não se trata de buscar sentidos ocultos ou criptografados, mas de se espantar com a beleza que nos é confiada na pele da palavra, sem nenhum mistério, sem apontar para nenhuma outra coisa que não seja aquilo que ela designa:

 

"Um Equador alinhavado

nascido de uma elipse".

 

Não é o ficou omisso na elipse que tece o silêncio dos versos, que encerra um mistério, mas o nascimento do Equador, o acontecimento dos versos. É ainda a metamorfose de sensibilidade que o encontro com os versos ativa em nós. Através de um hiato que nos abre além do dado, um não dado. No entanto, o não dado não estava ali, velado, ele é produzido justamente no encontro, na trama, é acontecimental. O silêncio é aquilo que nos supera enquanto nos prolonga: é interiorização do exterior, exteriorização do interior. O silêncio elastece nossas fronteiras com o mundo.

Redesenhar a matéria, propõe Carreira: escrever é redesenhar a matéria? Inventar novas estruturas, novas elasticidades? Pulsar outros espaços? Um deserto, o primeiro espaço que a autora abre debaixo de nossos pés. Ainda que seja uma "resistência à água" é tão fluido quanto essa, é "uma música feita pelas pernas", "acordes soprados pelo vento", revoadas de pés, travessia de um grão de areia: a letra dança, voa, canta. Letra-pássaro, letra-espasmo: erosão: espaço que se esmiúça, faz-se mínimo: vazamento do infinito pelo ínfimo: "Espuma lugar onde o mar esfumaça quando o poema diz rarefeito todas as minhas águas". Inconsistências das coisas nascidas, por nascer, nascentes. Questionamento do limite, sim! Redesenhar a matéria. Bordar-lhe as bordas. Reinventar a linguagem, fio a fio, gota a gota contaminar as margens. Orgia das palavras: palavras margeadas por dois pontos (:): palavras marginais; grito, sopro, vapor. Corpo que não cessa de transmutar. "Porque o amor é matéria viva" diz Clarice. E Carreira, "no oceano de uma única gota", na letra da água, entrega "todas as águas servidas ao corpo por amor". Luciana, luz prenhe de água, escreve matéria nascente, seus ritmos e pulsações. Antes que a forma, a formação, o instante vital, já que, mais uma vez evocando Clarice, "uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota". Esgotamento. O gesto amoroso também vive da morte. A mutação é o encontro da vida com a morte. "Útero&sepulcro". Então, amorosamente, a autora oferece às águas transitórias da palavra o fogo da ferrugem, abre feridas na escrita, "inscrição solar", sol vermelho, mênstruos, ciclos, tempo finito, que esgota o significado para dar lugar ao seu cântico tátil. Letra-fagulha, letra-artesiana, "letras na borda da dobra". Profundidade é uma dobra da superfície, diz Deleuze. Contato do dentro com o fora. Fervura, transbordamento. O texto chora, "maré que avoluma a carne". O verbo é vermelho e sangra. Sangra "o tempo de uma sangria". Temos esse exato momento para mergulhar o flutuar no liquor desalinhado das fibras da língua primitiva dos dilúvios e dos barcos. Depois crepitar em territórios aquíferos, dissentir os sentidos, atravessar "o espessamento da vida em broto" e novamente emergir até à placenta — matéria embrionária, viva, potente — "no fôlego amniótico", no "amor-travessia" em que as palavras de Luciana não se cansam de nascer.

 

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O livro: Luciana Brandão. A letra da Água. Belém: Paka-Tatu, 2017

www.editorapakatatu.com.br

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agosto, 2017

 

 

Carla Carbatti é doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela (USC). Possui textos poéticos, ensaísticos e resenhas publicados em várias revistas eletrônicas. É autora do livro de poesia Na cadência do caos (Urutau, 2016).

 

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