"Ó Guerreiros da Taba sagrada, 
Ó Guerreiros da Tribo Tupi, 
Falam Deuses nos cantos do Piaga, 
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi".

G. Dias

 

O canto não é de um pajé, mas a profecia é a mesma: um estrangeiro virá para destronar um povo. O que é seu hoje, não será mais amanhã. Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,/ Susta as iras do fero Anhangá. /Manitôs já fugiram da Taba, /Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá! Assim o poeta romântico, Gonçalves Dias, sela a sorte dos Tupi. Marco Aurélio Cremasco, em seu novo romance-histórico, Guayrá, também vai voltar no tempo para selar a sorte dos indígenas que viviam numa região do Paraná que era conhecida como Guayrá no século 17. Ainda que o romance não se prenda intencionalmente a datas, disfarçadas de dias santificados, a reconstrução de um tempo é a base de sua narrativa.

A região do Guayrá é a terra do autor e a minha terra por adoção. Hoje vivo e piso o solo que se banhou de sangue espanhol, português e indígena, representados por bandeirantes e religiosos de um lado e de outro, da valentia profética de Atyguajé, tudo sob as bênçãos de Nhanderu. Guayrá meio real, meio mitológica, está presa à vida geográfica paranaense, porque tem seus limites entre os rios Paranapanema, Paraná, Tibagi, Iguaçu, Ivaí e Piquiri, que ainda formam divisões naturais e são figuras conhecidas no cotidiano de quem vive aqui. Os nomes na história são indígenas, mas a forte presença real e mítica é a mesma.

Assim que se começa a leitura, tem-se a impressão que estamos lendo um Gênesis indígena, a história da formação do mundo e de todas as crenças, a de um Deus criador e suas criaturas, poeticamente construídas como na narrativa bíblica. A fragmentação dos capítulos, quase nos propõe uma leitura de versículos e não de um romance denso que está por se desenrolar nas páginas que se seguem. Assim como na Bíblia, o tempo e o espaço não são a primazia, mas as histórias sobre eles passadas e que dão a Guayrá seu verdadeiro valor. Não é a história de um lugar, ainda que possa parecer, mas as histórias que formaram a história desse lugar.

Não vejo que sua leitura seja para iniciantes, a construção da linguagem entre os termos indígenas (digo indígenas e não tupi, porque o próprio autor confessou que não se apoiou numa só matriz), o misturar de realidade-ficção não-linear e as frases curtas, quase que saídas do diafragma de um narrador-câmera, Procissão que se arrasta, lenta, sempre para o leste. Acorrentados. Serpente da morte. A fome. A sede. Corpos caídos, não convida o leitor a um envolvimento sentimental, como em Santo Reis da Luz Divina, mas pede um distanciamento julgador. O leitor, mais que leitor, é convidado a ajudar a montar ou remontar as peças de um quebra-cabeça. De um intrincado quebra-cabeça. Posso ver o mundo, mas não sou o mundo. Posso ser tomado pelas árvores e por todo o verde que me envolve, mas não sou a mata. O livro é um rito de passagem para todos. Mboixá percebeu mudança na voz do filho.

Guayrá parece um redemoinho nos arrastando entre missionários e indígenas para sermos lambidos pelo indecifrável dos códigos linguísticos de Guimarães Rosa, pelo narrar histórico-indianista-poético de José de Alencar e a pela secura narrativa sem fim de pai e filho, Graciliano e Ricardo Ramos. Redemoinhos que chupam e cospem ossos. Guayrá é uma mistura de muita coisa, sem, no entanto, perder-se de si mesmo. Uma profunda pesquisa e um grande jogo de estilo afastam o leitor comum que se põe diante das páginas brancas em busca de uma aventura. A aventura de Guayrá é para dentro.

O que a Igreja fazia ali? Fazia? Os índios não aceitavam ser escravizados pelo homem branco, salvo se fossem travestidos de senhores da fé? Da fé? Essas questões continuam a girar depois da leitura. O tempo impiedoso passou e a profecia foi realizada. Não mais se ouvirão os coros das vozes do Guayrá. SeGuayrá é o Novo Mundo, ele nasceu manchado de sangue. O que a Igreja fazia ali? Fazia? Os índios não aceitavam ser escravizados pelo homem branco, salvo se fossem travestidos de senhores da fé? Da fé? Seria um jesuíta um Jesus de pedra? Fé é acreditar que o filho-guerreiro realmente tenha visto a face de Nhanderu, assim como na visão do cura de São Sebastião do Paku. O que fazemos no decorrer da vida a não ser lançar balsas?

Esta Ilíada é dita pela fuga, não pela glória. Esta Odisseia é regida pela fuga, não pelo resgate. Esta Eneida é escrita pela fuga, não pela reconstrução. Em meio a essa fuga real ou simbólica sabemos que as águas do Iguaçu são lágrimas de Tupã ou cabelos de Naipi, não importa. O que importa é fugir para encontrar no seu coração, o Guayrá, acompanhado de nossos amigos, uns com armas em punho, outros com um sorriso no rosto. Assim foi. Assim é. Afinal, Guayrá é um estado de graça.

 

"Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir..."

G. Dias

 

 

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O livro: Marco Aurélio Cremasco. Guayrá.

Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2017, 320 págs., RS$ 59,00

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agosto, 2017

 

 

Nailor Marques é professor, escritor, mentor profissional e palestrante.