Na epígrafe do livro Começa em mar, de Vanessa Maranha (Penalux, 2017), encontramos um trecho belíssimo do escritor José Eduardo Agualusa que já aponta para o pluralismo deste romance grandioso da autora francana por ora aqui estudada. Na epígrafe, as várias línguas como pertencentes à cultura se conjugam às linguagens da natureza, aos animais e flores. As linguagens presentes em todos os âmbitos da physis, em seu progresso e evolução. No romance admirável de Maranha, temos as várias metamorfoses que se bifurcam em sua complexidade, unindo o mítico e o irreal ao cotidiano, a nossa realidade mais presente. Encontramos a metamorfose tanto no campo do mítico quanto psicológico, mostrando seus entrelaçamentos e complexidades.

O livro, que recebeu Menção Honrosa no Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2016, é um aprofundar-se na vida de personagens que evoluem, se modificam, trazendo os movimentos do mar em sua profundidade, com suas idas e vindas, repetições e diferenças, numa escada espiralada que dá o contorno de seres em metamorfose plena. Se desde o mito ocidental com Homero, que na sua Odisseia, mostrou-nos os companheiros de Ulisses transformados em porcos a partir da magia da feiticeira Circe, passando por Ovídio nas suas Metamorfoses em que deuses e homens se transformam em animais, árvores, pedras e rios como, por exemplo, Filomena, que se transforma em rouxinol, até desembocar, hodiernamente, num Kafka, com sua A metamorfose, com um caixeiro viajante se metamorfoseando em inseto para medo de todos no seu processo de desumanização e rejeição ao realismo mágico de um García Marquez, que em Cem anos de solidão, os universos do maravilhoso, do sobrenatural e do real se conjugam de mãos dadas sem maiores conflitos; Vanessa Maranha é dessa longa tradição exemplar.

Em Começa em mar, temos uma narradora poliglota não das línguas, mas das várias linguagens. A personagem principal, filha de imigrantes; a mãe, espanhola; o pai, português, vive um processo de inadequação ao novo ambiente numa ilha baiana, a Róvia. Os pais, por inadaptação se metamorfoseiam, revelando o processo de desumanização e despersonalização quando os desejos não são realizados, o ideal se choca com o real e, os dois se transformam em algo que vai aquém do humano, num recurso de esfacelamento e estranhamento. O pai Pedro vai diminuindo de tamanho até caber no bolso do vestido da filha. A mãe Concha se transforma em vento que suaviza o ar daquela ilha. No posfácio de Alexandre Bonafim ao livro, temos: "... suas personagens sofrem uma espécie de diluição, de deformação expressionista, bem à maneira dos artistas plásticos dessa vertente artística". No romance de Maranha, além dessas metamorfoses, encontramos a Jordana que se transforma em mulher-peixe, a Marta que desaparece num espelho, revelando-nos a fragmentação da persona. Não são máscaras que percebemos no livro desta autora excepcional, mas a multiplicidades dos eus dessas personagens, que por sua força imensurável, se quebram até não sobrar mais nada. Elas se estilhaçam tamanha a reflexão sobre o eu, as metamorfoses do eu, que não permanece o mesmo ao longo da narrativa.

Edward M. Forster, em Aspectos do romance, nos mostra esses personagens repletos de evolução e transformação, que nos surpreendem a cada momento. Ele diz: "O teste para uma personagem redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente. Se ela nunca surpreende, é plana." As personagens de Maranha, como Rafael, esposo de Alice, que se trancafia num quarto até virar bicho com suas unhas enormes e pelos, nos fazem descobrir as naturezas multiformes dos seres. Suas transfigurações só nos levam a perceber o quanto de humano nós encontramos na complexa rede psicológica das personagens que se abrem como pequenos livros nesta biblioteca babélica e confusa das línguas, a biblioteca infinita borgeseana, que nos conduz à abertura de cada vez mais histórias. Aqui, no livro em questão, temos as histórias destas personas plurais que tiram as máscaras e se desnudam para nós, leitores complexos.

Em vez de termos a imagem do exilado brasileiro lá fora, temos o olhar do estrangeiro aqui no Brasil. O olhar de fora para dentro, do lado de fora da pele para o interior dos músculos nacionais, traduzem o desencontro de vozes, a dissonância de atmosferas. Temos uma brasileira, Maranha, olhando como uma estrangeira. A autora se metamorfoseia no outro. O outro nos vê e revela o retrato diferenciado da nossa realidade. O filtro ora nos obscurece, diminui, ora nos enaltece, como vamos ver no final. Pois após o regresso de Alice para a península ibérica, seu olhar idealizado de fora criado pelos seus pais é desconstruído, fazendo-nos entrever uma simbiose luso-hispânica-baiana, uma mistura que demonstra o entrelugar dos discursos e o mar não poderia deixar de ser a metáfora mais apropriada para este ciclo de mutações, flutuante, indeciso, pleno e vazio em sua imensidão sonora. Vozes que se chocam, olhares que se multiplicam nas profundezas das águas, nossas irmãs em composição, nós, aquáticos por natureza.

No Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, podemos vislumbrar a força e expressão do mar: "Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte". Vanessa Maranha começa a narrativa: "Não viera por um qualquer mar". O mar nunca é o mesmo, símbolo de trânsito, de passagem, no livro de Maranha, ele é a metáfora de nossa complexidade interior, de nossa potencialidade psicológica, que se transfigura e se desnuda em múltiplas faces.

O mar percorre todo o romance. Se o primeiro capítulo começa no mar, até a última de suas páginas, ele termina, mas não como fechamento, mas como abertura à nossa imaginação, ao imaginário do leitor, que é um espelho da leitura, um mar de letras jorrando em linguagens enigmáticas. É rara a beleza poética de Maranha que sabe conduzir com maestria essas águas frescas de suas páginas, vivas e originais como os mares e suas marés, com suas idas e vindas, sutis, delicadas ou violentas. Seu romance traduz não a perfeição das individualidades, mas seus mistérios imperfeitos e inacabados, plácidos e cruéis. Só é perfeita a sua narrativa plena de chaves inesgotáveis que abrem as inúmeras portas do nosso consciente e inconsciente.

A premiadíssima escritora Maria Valéria Rezende que escreveu a orelha deste romance, assim reflete sobre tal livro riquíssimo em surpresas e deslumbramentos: "Não hesito em convidar a leitora ou leitor que abriu este livro, premiado antes de publicar-se, a embarcar nestas páginas em que várias histórias de vidas, cada uma única, como longas mechas de diferentes cores, vão compondo uma trança que se ata, afinal, num novo e surpreendente laço". Os títulos dos capítulos em minúsculas, como pequenas gotas deste mar, vão construindo as histórias densas, num laço original e deslumbrante, conduzindo o leitor por estas rotas várias, em que o caminho não tem uma via apenas. As idas e vindas do mar nos fazem adensar na massa primeva do caos que se reorganiza num enredo coeso e coerente, onde os pedaços dos espelhos das águas se entrecruzam formando um tapete líquido fascinante. O mar é espera, mas também ameaça. É saudade, mas também encontro.

A rotina do vai e vem se transforma em diferença. O mar nunca será mais o mesmo. É palco de lutas, derrotas, fracassos, mas também de vitórias. De erotismo, amor, pois o mar também é fogo que abrasa em dias quentes, em que os corpos das personagens se entregam sem pudores ou julgamentos. Passando do fracasso de seu casamento com Rafael, ao seu pós-desinteresse pelo sueco Ingo, Alice encontra a paz amorosa em Joaquim, cheio de invenções imaginárias como o livro. O romance de Maranha é invenção, é criação, é mar que se apresenta como poesia. Joaquim é poesia. As vidas cotidianas, míticas ou poéticas dessas personagens encontram o lugar da solidão e da amizade, paradoxos que se fiam no tecido das letras: "Ingo parecia trazer um fogo em si; Rafael carregava um deserto". As imagens da desertificação, da aridez e também da suavidade das águas se coadunam como os temperos da vida, que esconde em suas malhas a complexidade do real. Até a profissão do estrangeiro Ingo tem relação com o mar, que também causa enjoos e vômitos, desinteresses e desobrigações.

O mar, por seu conteúdo emocional, por sua profundidade de sentimento não é tão leve como poderia parecer, é pesado, também desumaniza, deixando o indivíduo ser outra coisa diferente do humano, da poesia que habita em nós: Em Rafael: "Era olhar o homem a quem toda a possibilidade de poesia fora retirada". As paixões são invenções possíveis do ser, água e pedra, líquido e fogo vivo. Alice se prismatizava, despersonalizava-se, em alguns momentos, ganhando contornos vários de acordo com as circunstâncias. Usando da ficção, Alice fingia modos de existência, no seu processo de inventar, criar. Como os heterônimos de Pessoa, no seu caminho de despersonalização e descentramento, estes cacos reunidos de Alice dialogavam com o eu e a rotina circular, sempre igual em si mesma. O mar contém também sua repetição, mas a diferença é mais forte e a persona, o sujeito se estabiliza na complexidade de uma face múltipla em poesia, mas única em vida: "Assim seguiria, até moldar-se numa face mais ou menos estável, que eram estranhos demais seus modelos. Haveria tropeços em que a Alice voltasse a se prismatizar despersonalizada, indo na direção dos ventos ao que melhor coubesse, tateando cinismo".

Ela tinha seu cão Midraj que revelava o afeto, a busca que ela não encontrara no reino humano. O amor entre os dois era um elo forte que solta faíscas de beleza na vida. A solidão humana, por outro lado, revela sua face de desumanização e despersonalização. O convívio é dança oracular da vida, o segredo do amor, do reflexo dos espelhos, estes como parentes dos mares, deixando-nos ver nossas faces reais e não mascaradas pelo social. As águas estão no espaço do privado e do externo. As águas da máquina de lavar mostravam o espaço da repetição na vida daquelas personagens. As águas do mar, trânsito e movimento, no intenso jogo paradoxal, de repetição e diferença. De círculo e espiral. Se em Cem anos de solidão, de García Marquez o patriarca da família Buendía, encontra o mar sem buscá-lo, como obstáculo invencível, Maranha nos oferece o som do mar como a voz do encontro, que produz as metamorfoses. A água é batismo, uma ultrapassagem de um estado a outro, iniciação.

A rememoração da personagem Pedra, de 200 anos, é a busca do não desaparecimento do ser. A memória está presente na mente desses personagens, que a partir de flashbacks, relembram sua origem e o motivo para se modificarem, caminhar à frente. O esquecimento também é a outra face, pois vazios são criados para que outras faces se esculpam, como podemos ver com relação à Hortênsia e Jordana, a primeira muda de classe social, vive em constante agonia, mas prefere a vida simplória e pouco sofisticada, mais presa ao chão, ao real e, não, ao artificialismo das máscaras. Jordana se desfaz e se refaz, lembra-se e esquece-se de sua persona, até virar peixe e perder seus traços de humanidade. Ao mesmo tempo, em que Vanessa, a autora, nos apresenta uma linguagem frondosa como um jardim repleto de frutos doces; temos a secura dos ossos, uma linguagem seca que traduz o esquecimento de nossa humanidade-pedra. É preciso navegar, como disse Pessoa, encontrar as águas de nossa individualidade, para que a lembrança nos comova e produza lágrimas de humanidade-água. Se a secura de Jordana, sua aridez, que não pode ter filhos não perpetua nossa espécie, a volta ao mítico leva, por outro lado, à natura. Ao virar mulher-peixe, ela retorna ao estado placentário das águas, é filha das águas, perpetuando o segredo da vida no mar.

A autora de Começa em mar nos apresenta este como o espaço mágico que nos humaniza em nossas metamorfoses que se perpetuam através da permanência da escrita. A romancista nos mostra a realidade social, suas mazelas e transformações e os vários olhares que percorrem o olhar do outro, do estrangeiro, das diferentes classes sociais, das diferentes gerações etárias, dos gêneros homem, mulher, homossexuais, em níveis que se adensam na sua narrativa, explorando a cabeça bifronte, que tanto aponta para o mítico quanto para o cotidiano, nos fazendo descortinar os véus de uma verdade labiríntica que não apresenta uma fórmula pronta e acabada, mas o inacabamento do mar que começa e termina na mais alta poesia nesse seu romance formidável. Uma escritora de gana forte jogando sementes poéticas no nosso cenário literário e florescendo em árvores frutíferas como seus livros admiráveis e premiados. Nestes desnudamentos, o mar é espelho no qual as individualidades se miram. O livro de Vanessa Maranha mira as águas profundas do novo, desconhecido e original num vai e vem das marés cheias e transbordantes de criação. Fazendo um retrato da Humanidade, nesse tapete complexo das águas, a escritora francana reflete nestes espelhos de Marta, uma das personagens do livro, as vozes da verdadeira invenção literária. O olhar de estranhamento com que Alice mira Joaquim é o olhar da felicidade poética que Maranha oferece no seu romance ao leitor, delimitando um território amplo frente ao mar eclético dos escritores consagrados. Cada parágrafo do livro é de uma importância admirável, como ondas que se atiram nas areias quentes da memória e do esquecimento.

 

 

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O livro: Vanessa Maranha. Começa em mar.

Guaratinguetá/SP: Penalux, 2016, 190 págs.

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dezembro, 2017

 

 

Alexandra Vieira de Almeida. Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ).

 

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