Uma parede descascada, um muro rabiscado, uma fruta no capim, um rosto vincado, uma música esquecida revelam tempos, histórias. No desgaste está o que vive. A corrosão é o tempo em movimento, matéria substanciosa, mais do que o que há no artifício fugaz do "novo", objeto sem vivência. As ruínas têm história, são memórias em construção, constituindo a invenção do real, do presente em sua transformação operada pela linguagem. Como se observasse a beleza depois desta florescer, recriando-a em outro tempo, é, em grande parte, em torno desse desgaste revelador de histórias que gira a prosa de Mario Rui Feliciani, em seu livro O cheiro da uvaia no capim das manhãs de setembro.

Trata-se de uma coletânea de textos provocadores, poéticos, reflexivos, bem-humorados, que transitam entre a crônica, o miniconto, o aforismo, o relato memorialístico, o comentário, a crítica e o texto-legenda de ilustrações. Essa multiplicidade de formas e conteúdos, sem um ordenamento, reflete o tempo da internet e das redes sociais. Melhor colocá-los apenas sob o guarda-chuva da prosa.

Ilustrado com imagens, fotografias e desenhos — além de contista, o autor é fotógrafo —, o livro é um dicionário livre, cujas "entradas" revelam um olhar singular, muitas vezes irônico, sobre o objeto de que tratam. A facilidade para passear pelos textos que o livro proporciona convida o leitor a abri-lo em qualquer página. Contudo, essa facilidade esconde uma linguagem elaborada que percorre desde situações corriqueiras a clássicos da arte, erudita e popular. 

Um mosaico de textos, formado pelos temas preferidos do autor, emerge ao longo do livro, em um diálogo intenso entre formas artísticas. "Se a pintura é conto, a foto é frase...", diz o texto-legenda sob a foto de um tripé de máquina fotográfica, que aponta os paralelismos que ao autor estabelece entre as artes. A música e a canção — Mário Rui é pesquisador apaixonado por Música Popular Brasileira, é objeto de várias crônicas que poderiam passar por crítica musical, como no comovente "noel, não 26, mas 60", em que o autor relativiza a idade do compositor de Vila Isabel.

Nesse diálogo, entram reflexões sobre a literatura e a arte de escrever, a língua do povo, e certa aversão do autor ao rigor gramatical, como em "mis": "Dicionário brasileiro da irritação:... mario (sem acento): diz-se daquele não gosta de gramático". Dedica vários textos, alguns bem-humorados, ao uso coloquial de termos ainda não dicionarizados, de frases fora da norma culta ou em desuso, como "errar sempre": "Atualmente, por causa do futebol e do judiciário, ele (o verbo errar) tem nova preposição, errar "para" alguém. Em favor de. Juízes com frequência "erram para" algum time (e para si próprios, dizem)". E ainda provocações sobre os limites entre poesia e prosa, como "se soubesse o que é poesia poética, saberia talvez o que é prosa poética", em "mas não".

Há também aforismos únicos, como "tatuar-se é opção por nunca mais estar nu", em "tatuagem"; ou "casa que só tem o lado de dentro", em "apartamento". O cotidiano em sua corrosão diária, as coisas aparentemente frugais são matéria substanciosa dos textos. Há uma busca pela luminosidade das coisas simples, como em "jabuticaba": "... E frutifica no tronco e NA RAIZ. Em tudo é como um samba do Nelson Cavaquinho". Ou em "pedaçuda", texto saboroso, quase síntese do livro: "Muita coisa boa vem de pouca mistura... Caymmi. Amor sem explicações. E tem essa da foto. Uvaias cortadas, fora com intrusos, e açúcar. Se é geleia ou doce, não se sabe. É pedaçuda. Vai com queijo branco".

A crítica social está, de forma implícita, em todo o livro, desde a foto da capa — que mostra parte de uma vila destruída, com seus moradores deixados à própria sorte, para a construção de uma avenida, mas de forma explícita no contundente "Escolar": "Os espíritos dos escravizados estão em toda parte. Entre as paredes dos cômodos esquisitos em que serviram e na mata deslumbrante pra onde sonhavam fugir. Na fila do almoço, uma balbúrdia de meninos uniformizados. Os espíritos os olham aflitos: nem um negro".

O cheiro da uvaia no capim é ao final um dicionário particular repleto de insights, de comparações e construções literárias que acrescentam novos sentidos e percepções ao leitor.

 

 

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O livro: Mario Rui Feliciani. O cheiro da uvaia no capim das manhãs de setembro.

São Paulo: Dobradura Editorial/Saracura Casa Editorial, 2017, 130 págs.
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maio, 2017

 

 

Luiz Gonzaga S. Neto, jornalista e poeta, nasceu em Quebrangulo (AL) e está radicado em São Paulo desde os três anos de idade. Publicou os livros de poemas Gaveta dos Corais (1998); Céu Sem Dono (2011) e Capturas, um diálogo entre poesia e fotografia, em parceria com Mario Rui Feliciani (2016). Participou das antologias Vila Lira Rica e Cidades impossíveis, entre outras.