Há poucos anos, ao ler os primeiros poemas de Germana Zanettini — os primeiros de toda a sua vida, já que iniciou a escrever poesia moça feita — percebi logo que tínhamos poeta. Alguns estão aqui, no volume que principio a abordar, como "Ao Lauro do telemarketing"e "Se eu ainda soubesse o seu CEP de cor". Diga-se que a então desconhecida aspirante classificou um projeto de livro, base deste Eletrocardiodrama (2017), entre os cinco finalistas de poesia no Prêmio Açorianos de Literatura, um dos mais importantes do Rio Grande do Sul.

Assim, o primeiro livro individual de Germana Zanettini, lançado pela editora paulista Laranja Original, nasce para o público com história e período de maturação, ao buscar o pulso de uma época. A desenvolta abordagem do que recorta, aliada à crítica pelo humor, à profusão de recursos sonoros e à irrupção do inusitado — através do que vamos chamar, sem medo da redundância, de sacada inteligente — angariam imediata empatia, da qual é testemunha a consagradora repercussão dos poemas de Germana nas redes sociais.

A referida sacada dá ganhos de estilo e qualidade à obra, basta ler o poema inteiro atento a trechos como "viver/ é só para/ principiantes" ("Leme"), "pratica/ saltos/ ornamentais" (Eletrocardiodrama), "o amor/ é touchscreen" ("Não tire teus dedos"), "vingativa,/ eu invado/ o teu lado/ do colchão" ("Olho por olho"), "pra garantir/ que eu volte/ sempre// de alma lavada" ("No meu fundo de poço"), "adquira-a/ agora mesmo/ em apenas/ dez vezes/ sem juros/ no cartão" ("As mulheres da televisão"). A força dessa poética reside precisamente na sua conexão com as relações humanas reais, sendo que a unidade de sentido tende a ser a estrofe ou o poema inteiro, não o verso tomado isoladamente, muitos de uma só palavra.

Vejamos em detalhe um poema que se multiplicou na internet e virou cartaz de poste fora do controle da autora, "Oito de março": "uma vez por ano/ um homem/ apanha flores// a cada cinco minutos/ uma mulher/ apanha". Se o duplo sentido do verbo apanhar, marcado pela potência sonora do /p/, é o que imprime força a esse poema repleto de sons nasais, tal se dá porque a crítica se dirige não apenas à violência contra a mulher, mas também ao embuste do problema. Se qualquer poesia terá alguma relação com o mundo, esta oscila do involuntário apagamento à revelação de suas contradições. A poesia de Germana, nesse âmbito, busca o melhor modo de interferir, não o evitamento do real, sendo a um só tempo lírica, contundente, lúdica e humorada, sua inolvidável conquista.

Ainda que os sons das palavras surjam na leitura silenciosa, trata-se de poesia composta para ser ouvida em voz alta. Se rimas, aliterações ("tecia/ o tempo/ nas contas/ do terço"), assonâncias ("o corpo,/ horto/ do sonho") se fazem ouvir, também há paranomásias ("sentir os pormenores/ dos pronomes" e raso-rasgo, nuca-nunca, rimas-rímeis, habitei-habituei, mercê-merecê-las, lábios-lábia, conto-contas) e uma notação bem característica, constituída o mais das vezes por um monossílabo que sai de ou se insere em palavra de maior extensão (felicidade-fel, balbucio-cio, pó-pólen, poro-evaporo, céu-escarcéu, véu-véspera). Isto, no entanto, seria pouco se não contribuísse para aquela sacada inteligente que dá o tom dos poemas. Em "Através de meus lábios", essa poética é delineada: "quero a escrita lasciva/ ser seiva pra saliva/ almejo a palavra viva/ dita em voz alta/ no lampejo da língua", para "te fazer refém/ de um verso/ que te deixe/ mudo".

Além do relativo ao som, há belos versos imagéticos: "você podia ter chegado/ quando eu era chuva/ e o sopro frio do outono soerguia/ a relva das terras da minha nuca" ("Você bem que podia") e "nas mãos,/ um cansaço de âncoras" ("Réquiem").

O leitor permita uma pequena enumeração de portentos: a extraordinária surpresa possibilitada pelos finais de "Miragem"e "Se eu ainda soubesse o seu CEPde cor"; a desmontagem de uma situação chatíssima com leveza e comicidade, em que avulta a crítica à financeirização da vida, "não me fale sobre os juros, não quero saber sobre juros/ eu quero as juras, lauro, apenas as juras de amor!", em "Ao Lauro do telemarketing"; a tomada de distância para ver melhor em "Leia antes de usar", "Leme" e "Direito de resposta"; a crítica ao atraso masculino em "Frete", "Isto não é uma poema de amor", "Parei de inflar teu ego", "Corte", e ao atraso inculcado no público feminino em "As mulheres da televisão", mais o poema que engloba as duas proposições, o citado "Miragem"; o quase inexcedível poema de amor em prosa, "Afluente"; a audácia do número percentual que inicia "Dos naufrágios do amor"; o desenho de um rosário com as letras da palavra d-e-s-a-c-o-n-t-e-c-i-a, em "Vó Dalila", à milenar maneira árabe, retomada por Apollinaire e Pagu; as cenas de sofreguidão vistas com graça em "No meu fundo de poço"e"Se a queda é iminente".

Poesia não se explica, mas se lê como quem toca o outro e sente esse toque na própria pele, extraindo das palavras de outrem algo de significativo. E é da multiplicidade de leitores e leituras que o poema vai ganhando sentido e função social, por vezes além do que imaginou o poeta, sendo essa leitura e discussão contínuas o que mantém a obra viva ante o vasto cemitério das tentativas literárias. Portanto, as letras miúdas do contrato são aquelas que precisam ser lidas, ali costuma estar o que se pretendeu esconder e assim se revelará, como é reveladora e desveladora a poesia nua e sem véus de Germana Zanettini.

 

 

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O livro: Germana Zanettini. Eletrocardiodrama.

São Paulo: Laranja Original, 2016, 104 págs., RS$ 35,00

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dezembro, 2017

 

 

Sidnei Schneider. Poeta, ficcionista e tradutor em Porto Alegre. Publicou os livros Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012), Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997) e Poemas 1987-1992 (Artesanal, 1992). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), O melhor da festa 1 e 2 (FestiPoa Literária, Porto Alegre, 2008 e 2009), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011), Poesia Gaúcha Contemporânea (Assembleia Legislativa-RS, 2013) e outras antologias. 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM, 1995; 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS, 2003; Prêmio Açorianos de Divulgação literária, Prefeitura de Porto Alegre, 2008. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

 

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