Afonso Henriques de Lima Barreto, ou simplesmente Lima Barreto, é um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos. Em 2017, teve vida e obra debatidas durante a 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Uma justa e merecida homenagem ao grande Lima Barreto, cuja produção, passados quase cem anos de sua morte, continua relevante e atual. Mas nem sempre foi assim.

 

Durante muitos anos, a crítica literária foi unânime na má vontade e no descaso para com a criação de Lima Barreto, pois estava mais preocupada em apontar improviso no preparo dos escritos e flagrar revanchismo social na temática abordada pelo autor.

 

Acabo de recorrer à monumental A Literatura no Brasil — direção de Afrânio Coutinho, Global Editora, 4ª edição revista e ampliada de 1997 — e, como eu já previra, o criador de Triste fim de Policarpo Quaresma é retratado de maneira caricata e preconceituosa por Eugênio Gomes.

 

Para o crítico Gomes, o escritor carioca tinha fixação na crítica social. Nele, o artista vivia em função do jornalista a fim de que, através do panfleto, pudesse mais facilmente conseguir suas demandas literárias e pessoais. Enfim, "seus escritos, em geral, contêm os resquícios de suas amarguras, de suas decepções e de suas revoltas, quase sempre de maneira ostensiva, o que concorreu para tumultuar sua obra de ficção, infiltrando-lhe elementos estranhos e prejudiciais à realidade do romance".

 

Anos a fio, portanto, os críticos insistiram em denunciar as imperfeições de estilo e de linguagem nos livros de Lima Barreto, vistos como apressados, mal-acabados e até, pasmem, inferiores à produção de escritores contemporâneos como Machado de Assis e Coelho Neto. Negaram o cânone a Lima Barreto, sendo incapazes de ver nele o grande intérprete da tragédia social e política inaugurada na Velha República que, de um lado, beneficiava as elites políticas e, do outro, explorava as camadas populares. Por conveniência, foram incapazes também de enxergar na informalidade romanesca dele o prenúncio do modernismo que, em breve, seria inaugurado com a Semana de Arte Moderna de 1922. (Ironicamente: o precursor Lima Barreto morreria, aos 41 anos, no ano em que eclodiria a revolução modernista no país!)

 

Enfim, a crítica literária da época fez vista grossa para o protagonismo que Lima Barreto desempenhou como intérprete da alma carioca em especial e da alma brasileira em geral. Esse equívoco seria revisto, depois, com a biografia A Vida de Lima Barreto, escrita por Francisco de Assis Barbosa, que também se encarregou de resgatar a obra de um dos nomes mais relevantes da literatura brasileira do século XX. Diversos críticos — como Antonio Candido, Osman Lins, Alfredo Bosi e Beatriz Resende — dariam uma contribuição decisiva para o resgate de Lima Barreto e seus escritos então relegados ao ostracismo.

 

Graças à missão (essa é a palavra certa) de Francisco de Assis Barbosa, Lima Barreto pôde, finalmente, reconquistar seu lugar de honra a que tinha direito na literatura brasileira. De marginalizado social e literário, teve sua relevância literária reconhecida por uma geração de críticos que não pensou duas vezes em reconhecer o caráter crítico-literário das obras barretianas.

 

De resto, como negar a relação — temática e estilística — estabelecida entre a criação de Lima Barreto com a modernidade brasileira? Como negar as imagens literárias do Brasil, sobretudo, da Cidade Maravilhosa, construídas pelo criador de Clara dos Anjos? Como lhe negar, em última análise, o título de grande intérprete da Alma Carioca?

 

Não resta dúvida de que Lima Barreto interpretou como poucos a alma carioca e, por extensão, o jeito brasileiro de ser. Seus escritos estão repletos de tipos humanos interessantes, boêmios e caricatos, que o escritor importou da realidade para a ficção. Com talento, transpôs para seus romances e contos os personagens mais característicos dos subúrbios cariocas, com seus jeitos e trejeitos.

 

§

 

A seguir, vamos passar em revista dois contos de Lima Barreto em que ele, com olhar observador e tato magistral, expõe para o leitor um pouco da alma carioca. Trata-se dos contos "Quase ela deu o 'sim'; mas..." e "Um que vendeu a sua alma".

 

O primeiro narra as peripécias de João Cazu, "um moço suburbano, forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho".

 

Cazu era um bon vivant, um malandro que levava a vida filando um cigarro daqui, dando uns pontapés na bola dacolá e flertando com umas namoradas nos "mafuás" do subúrbio. Enfim, um típico vagabundo para quem viver se resumia a tirar vantagem duns e doutros e das circunstâncias, sem muito esforço ou ambição; um folgado para quem, se este não era o melhor dos mundos, faltava pouco para sê-lo. Levava a vida no melhor estilo "a esperança é a última que morre".

 

A esperança era... arranjar uma mulher, uma esposa, adaptável ao seu jeito descansado, como bem frisou o contista. Alguém para cuidar do seu vestuário, lavando, engomando, remendando, cerzindo. Essa era a maior preocupação do boêmio no momento. Se alguns sujeitos haviam conseguido se casar com moças ricas ou mesmo esposado professoras dignas, ganhando o título de "maridos da professora", porque ele não poderia sonhar com algo parecido? Também era filho de Deus!

 

Um dia, o destino achou por bem colocar um bom partido no caminho do espertalhão. Estamos falando de dona Ermelinda, viúva de um contínuo, dona de trinta e poucos anos, um casal de filhos e um belo chalet... Ela tinha também um montepio, a saber, um pé-de-meia previdenciário.

 

Em resumo: ela lhe pediu um favor, que foi cumprido à risca, tornaram-se próximos, íntimos e namorados, ou quase isso. Com jeito e manha, tornar-se-ia sua lavadeira.

 

Dito e feito. Mas, como felicidade nunca é demais, Cazu resolveu pedir a viuvinha em casamento. Ela não disse sim nem não. Pediu que ele aparecesse na sexta-feira, bem cedo, para receber a resposta.

 

O grande dia chegara, mas, em vez de resposta, dona Ermelinda foi à gaveta de um móvel e tirou de lá uma lista de gêneros e entregou ao pretendente. Que ele fosse comprar na venda ou quitanda, era para o almoço.  Mas comprar com que dinheiro? Cazu ergueu-se da cadeira, saiu e nunca mais voltou!

 

§

 

O segundo também trata de uma questão moral e, também, metafísica. O protagonista da anedota se define como descrente de Deus e do Diabo, desde que perdeu a fé no seu "Lacroix"; desde que deixou de ter a certeza dos sociólogos, florianistas e tolos.

 

Diabolicamente, narra o encontro de um amigo seu com o Senhor das Trevas, em quem, se não acreditava mais, não ousava negar a existência.

 

Certo dia, esse seu amigo amanheceu possuído de um aborrecimento mortal, sentia-se entediado e vazio. Como um "toco de pau, como qualquer coisa de inerte".

 

A causa daquele spleen? Os desgostos, os excessos, as decepções da vida, para os quais agora procurava remédio. A morte não lhe servia nem atraía. A vida... ele queria outra vida! Mas só muito dinheiro poderia lhe assegurar uma existência repleta de beleza e emoção.

 

Eis que o tal amigo se viu numa encrenca: de que meios e modos lançaria mão para arranjar o dinheiro? Furtos, assassinatos, estelionatos? Agindo à maneira de Raskólnikoff ou à de Mefistófeles?

 

Ao fim e ao cabo, decidiu vender a alma ao Diabo. Se o Demo quisesse comprá-la, evidentemente.

 

Nesse momento batem à porta; era o Diabo em pessoa. Tem início um diálogo muito interessante entre os dois:

 

— Que querias de mim? — pergunta o Diabo.

 

— Vender-te minha alma — responde o Carioca.

 

O diálogo prossegue nestes termos:

 

Diabo: "Quanto queres por ela?".

 

Carioca: "Quinhentos contos".

 

Diabo: "Não queres pouco".

 

Carioca: "Achas caro?".

 

A operação emperra. Pro Diabo a alma carioca está muito cara, de modo que não resta saída ao amigo senão reduzir o preço. Cai para trezentos contos, mas o Capeta resiste. Quanto dás por ela? Hoje, filho, recebo tantas almas de graça...

 

Então a alma carioca não vale nada? Com alguma simpatia pelo amigo, contudo, o Diacho resolve dar algum pela alma carioca... Vinte mil réis! O amigo, claro, topa. A alma carioca finalmente é vendida.  

 

§

 

Da leitura dos dois contos acima, depreende-se o caráter social da criação de Lima Barreto. Mais que isso, fica compreensível a opção ficcional dele pelos segmentos populares, pelos excluídos da Velha República, enfim, pela chamada estética da simplicidade.

 

Sendo também um excluído social (era neto de escravos), Lima Barreto viu na literatura (e no jornalismo) a oportunidade de ouro para fazer história, tomando o partido dos seus semelhantes e, ao mesmo tempo, levando esse drama social para a ficção. Seus escritos estão aí para comprovar essa tese.

 

De um lado, crítica social. Do outro, simplicidade e sensibilidade. Enfim, o casamento perfeito entre fundo e forma, temática e nova estética. Eis os ingredientes temáticos e estéticos para o surgimento do chamado artista boêmio, aquele que privilegiou em sua arte os pobres da então capital federal — o Rio de Janeiro. Ao fazê-lo, explicitou o abismo existente entre o Estado e os populares.

 

"Boêmio", nesse caso, foge da conotação literal de indivíduo vadio ou vagabundo, referindo-se a alguém que se rebelou contra uma postura ou um sistema. Enfim, trata-se de um crítico, um contestador. Lima Barreto, portanto, se fez um boêmio carioca naqueles anos iniciais e republicanos. Boêmia literária, assim, era uma forma de militância política, uma maneira de resistir à exploração burguesa.

 

Estamos falando de uma classe de intelectuais, da qual Lima Barreto fez parte, que criticava aquele estado de coisas motivada pela liberdade de idealizar um outro mundo e os meios viáveis para instaurá-lo. Qual o sentido da vasta obra barretiana senão uma tentativa — política e estética — de denunciar o sistema de opressão republicano e, também, de imaginar um lugar melhor e mais justo para os explorados? Os poetas e artistas boêmios, portanto, tinham sede de justiça. Como não deviam fazer justiça pelas próprias mãos, usavam-nas para produzir obras, canções e caricaturas, num permanente exercício de contestação.

 

Que fique claro, a título de ilustração, que João Cazu é um boêmio no sentido literal de dicionário, qual seja, desocupado, interesseiro e vagabundo, levando sua vidinha medíocre e conformada.

 

Igualmente, que não pairem dúvidas de que o amigo que vendeu a alma carioca, por alguns tostões, ao Diabo não se diferencia muito de Cazu. Pelo contrário, eles se parecem, se equivalem moral e sociologicamente falando.

 

Trata-se, enfim, de dois espécimes extraídos do riquíssimo universo ficcional criado por Lima Barreto que ilustram muito bem a chamada "alma carioca", naquele momento e que se estende, por que não, ao momento atual. Ela, aliás, se coaduna com a "alma brasileira" ou com o nosso jeitinho brasileiro de ser.

 

Nos dois casos, estamos diante de tipos boêmios cantados à exaustão por Noel, Moreira, Bezerra da Silva e Dicró, para ficar nesses quatro nomes. Na literatura, porém, coube a

Lima Barreto fazer a opção política e estética pelos boêmios. Isso, a rigor, se dá em dois planos — no do autor e no dos personagens. Estes são boêmios, digamos, por falta de escolha ou por comodismo. Aquele o é por escolha política e estética.

 

A opção de Lima Barreto pela boêmia (ou "boemia" com acentuação oxítona) criativa diz muito sobre a natureza de sua arte e, sobretudo, sobre a militância que empreendeu como jornalista/escritor e cidadão no fim do século XIX e início do século XX, no Rio de Janeiro. Herdeiro do realismo/naturalismo, ele procurou desenvolvê-lo, mantendo as tradições culturais populares, como o carnaval, valorizando tipos e costumes, e inaugurando um olhar crítico sobre tudo isso. Afinal, tanto a cidade quanto seus moradores, naqueles idos, exigiam uma leitura à altura. Uma interpretação social condizente com os novos tempos e seus muitos desafios.

 

A Alma Carioca, naquele momento, carecia de mais que uma meia dúzia de poemas parnasianos, dois dedos de prosas cientificistas e um sem-número de estetas preocupados com a arte pela arte. Urgia uma nova arte comprometida com os fenômenos sociais pulsantes e em ebulição na capital do país, sobretudo, naquele período de transição do Império para a República. Lima Barreto, portanto, se apresenta como o cara, porque havia sido moldado pela vida para essa missão inadiável, como artista e cidadão, ainda que isso lhe custasse um preço muito alto. Era preciso investigar melhor a alma carioca, denunciando o atraso, os privilégios, os equívocos políticos, o comodismo literário, com sua linguagem direta e certeira, enfim, com sua "pena e línguas afiadas".

 

Monteiro Lobato, contemporâneo de Lima Barreto, tocou nessa questão crucial: "O escritor funciona qual antena — e disso vem o valor da literatura. Por meio dela, fixam-se aspectos da alma dum povo, ou pelo menos instantes da vida desse povo". Ele se referia, com efeito, ao autor de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, cuja 1ª edição foi bancada pelo criador do Sítio do Pica-pau Amarelo.

 

Quem mais, além de Lima Barreto, estaria disposto a fixar, anotar, registrar e criticar todos os grandes acontecimentos da Velha República? Quem mais, senão o escritor mulato, pobre e alcoolista, seria capaz de produzir um vasto painel, com "n" ramificações, em que sucederiam os grandes eventos daquele período, quais sejam, a insurreição antiflorianista, a campanha contra a febre amarela, a ação de Rio Branco no Itamarati, o governo Hermes da Fonseca, a participação do Brasil na 1ª Guerra Mundial, o advento do feminismo, as primeiras greves operárias, etc.?

 

Quem mais, exceto o criador do Major Policarpo, se poria a interpretar os caracteres que, de uma forma ou de outra, moldaram e ainda moldam a alma carioca e a brasileira: nossos equívocos e misérias, nossa doçura e grandeza, a mania de ostentação, o vazio intelectual, a ganância dos homens públicos?

 

Quem mais, senão Lima Barreto, endereçaria este ultimato à própria literatura: "A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela"?

 

Quem mais, senão Lima Barreto, seria capaz de nos definir de maneira tão perturbadora e, ao mesmo tempo, desafiadora: "O Brasil não tem povo, tem público"?

 

 

dezembro, 2017

 

 

A. Zarfeg é poeta e jornalista. Preside a Academia Teixeirense de Letras (ATL). Vive em Teixeira de Freitas/BA.

 

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