Hiroshima, 05 de agosto de 1945.

 

 

em otto todas as posições eram de morte. insônia. cama leito. não conseguia dormir, a escuridão não cabia entre as pálpebras, pesadas demais para atingirem o cerrado inconsciente no horizonte. madrugava: todas as posições eram de morte.

levitando, a sombra da noite rompia o silêncio aos gritos. cigarras anunciavam: todas as posições eram de morte. pequena brecha de baquelita, cuidadosamente decorada com o que tira a liberdade, derramava a lua sobre os cantos. olho aberto. cor baixa demais para incomodar o medo, mas indicava: todas as posições eram de morte.

 

 

 

 

A máquina de Borges

 

 

a jovem entrou no coletivo e sentou na cadeira com janela. gostava de olhar a paisagem enquanto moía na mente que não deveria chorar por aquele homem porque tudo, inclusive o choro, apesar de recursivo, era efêmero. ouvia cartola, coisa rara para os adolescentes de sua idade. 17 anos. mais três minutos depois, entrou uma senhora, também de cabelo no pescoço, porém mais claro, com tinta disfarçando o que na face se notava nitidamente.

essa mulher sentou na cadeira da frente, um lugar no horizonte da moça que andava distraída e se assustou calada com o bicho que a atingiu no decote: era um cuspe. nesse momento, a senhora limpava a boca. queria cuspir para fora da janela, porém não teve força o suficiente e acabou por chegar na imagem que estava atrás, sem se dar conta do ato. a moça, com o dedo indicador esquerdo a ponto de limpar uma lágrima, sentiu a baba da velha e, nesse momento, se enojou da própria casa. quis limpar, mas preferiu esperar bater o vento. estava do lado do sol. lembrou da efemeridade das coisas. sabia que chegaria ao seu destino e mataria o animal aquático que a havia atingido. dito e feito. foi o que ocorreu. ela chegou. entrou no banheiro e, mesmo lavando com água e sabão, ainda era habitada pelo cuspe. secou o busto, mas sentia que algo escalava seu pescoço.

um bicho aquático, depois de pregado ao corpo — mesmo que se dê a possibilidade de fuga — não sai na água, passa a habitar as partículas da epiderme. aquela senhora, ainda que se negasse a ver quem estava atrás, ainda que tivesse cuspido no passado, não poderia desafogar o que a habitava: a moça, tão antes distraída.

 

 

 

 

Terra seca

 

 

naquela cidade, a chuva cantava a entrada triunfal da morte. ela derrubava a noite mais cedo. a librina começava quando o corpo descia à camada funda de barro, antes do enterro. para alguns, ela é a única maneira de lavar o corpo depois de morto.

na morte de agostinho, não choveu. o tempo fechou, esperou-se um pingo d'água, porém nada. ouvia-se apenas os gritos de secura de sua família. a única água que lavava aquele homem eram as lágrimas das três mulheres a quem molhou em vida: sansa, maria e catrícia.

sansa foi sua primeira esposa. pequena, tímida e criança inocente, acreditou nas historinhas do malandro quando tinha quatorze anos, fingindo ser quinze, e acabou por não desacreditar nunca mais.

maria era mais velha, mais mulher, já viúva, quando conheceu agostinho. depois de se consolar e perder-se de paixão, descobriu que seu marido havia sido morto por ele, para que o guerreiro pudesse tê-la como espólio na fria guerra por uma quente carne. maria, como uma escrava apaixonada, perdoou seu senhor e decidiu que seria muito mais feliz com ele, até o dito dia em que foi encontrado morto.

catrícia era a vulgar da cidade. por ela agostinho largaria todas as outras. mentira, não largaria, mas ela pensava assim e nunca quis que largasse. interessava-se em dividir o mesmo prato, fartava-se apenas por supor que, se quisesse, seria todo dela.

agostinho tinha fama de matador e não diriam que fosse capaz de assassinar a si mesmo, com tantas mortes mais a serem concretizadas pelo cano de sua arma.

no enterro do falecido, todas começaram a contar as mentiras que ele dizia. "agostinho não era do tipo que se mataria, preferia matar outros que se pareciam com ele para ser único na dor". a pergunta geradora que faziam ao caixão era "por que nos abandonaste?". nada. ninguém sabia responder. um matador que foi morto pelas próprias mãos? não, impossível acreditar. tempo fechado, não chovia.

vozes calavam, calos falavam, suspiros espalhavam-se. e nada. quem dentro dele o havia matado? por que, pelas neblinas, não chovia? passaram-se vinte e quatro horas à espera da chuva. o morto já era sentido. o choro agora era interno. deveria haver espaço para que se falassem pelos olhos. olhos de sangue. que tipo de sangue? ninguém sabia. era sangue de dor, de parto ou de ciclo? o tempo já havia passado. os três sangues eram fases talvez tardias... quiçá atrasadas. sangue frio na dura sala.

velório ainda. clima incerto, corpos quentes de calor, nuvens abafadas, mas nada. clamava-se chuva, o morto não podia sair sem chuva. porém nada, nenhum lixo nadava na rua.

alguns dos presentes agradeciam a morte de agostinho, pois era um presságio de menos mortes matadas. os corações pulsantes dos familiares dos mortos por ele batiam sossegados na porta de um peito que já não batia mais. uns foram pro enterro só para confirmar o ocorrido e, como todos, perguntar o motivo da falta d'água. estes desconfiavam o porquê: nem todo o mar lavaria tanta secura.

hoje, na aridez daquela cidade, era incabível chover. agostinho já dizia que nem todas as mortes devem ser esclarecidas, que depois da morte (ida), os acontecimentos engravidam outras vi(n)das. desde esse dia a cidade foi chamada de sertão nordestino. nunca mais choveu.

 

 

 

 

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um pouco de sombra para dar brilho à íris opaca, mais um bocado de batom carmim que, talvez, ainda seja notado pela juventude. passou também blush, almejando parir vida na pele quase morta. em vão. nasceu sem choro. percebeu: a maquiagem já não servia. estava fora da validade. as cavernas, neste século, já não são mais desenhadas.

 

 

 

 

[imagens ©joshua krecioch]

 

 

 


 

 

 

 

Jennifer Trajano é paraibana e nasceu em 28 de junho de 1996. Graduada em Letras Português pela Universidade Federal da Paraíba, acredita ser a literatura um universo autodesdobrador, por isso o ser humano precisa dela para ficcionalizar. Escreve porque necessita.