©rachel navona
 

 

 

 
 

 

 

 

xamã

 

 

Citrin é um velho xamã

que vive na Califórnia.

Ele é aturdido.

Ele escuta vozes.

Ele faz temazcal

como um guarani.

 

O bruxo, como a bruma

busca a luz, o fogo

a pedra ardida no meio da tenda

— seu inipe de copal e alcaçuz

sálvia e cedro

suando-lhe as evocações.

 

Seu chapéu é de um feltro

preto encorpado de abas longas.

As vozes violam as abas

a turba o nervo o estribo o labirinto

de seu ouvido sobre o mundo

do zumbido do mundo em seu ouvido

do mundo zunido sob a aba.

 

 

 

 

 

 

san pedro

 

 

flora rara sã

lophosphora lume

abre os Céus

 

na opy de guaranis

o sol é um botão de mescal

 

 

 

 

 

 

lúbrico

 

 

a fé é úmida, quente

e cheia de línguas.

brota da boca

do hipotálamo

ou da sotaina.

 

murmura a oração

a subordinada

inflame conclamação

de anjos, halos

verônicas veladas.

 

em seu altar de água

a fria alva casula

o ungido e obsequioso círio.

os sacerdotes parecem

homens que ardem.

 

 

 

 

 

 

origem

 

 

supra sensível, um demiurgo

vestido de cosseno na cabeça

é uma menina espessa no espelho

 

não ordena o caos

— caótica cósmica

por cossenos

 

o Ser é extraído das Formas

e não há paralelogramo

que o pressuponha

 

nua, a fenda-lua

alinha, da caverna de sombra

o seu grafema de sol

 

 

 

 

 

 

sêmea

 

 

fale-me de Deus

desse quase roxo

místico exortado

entre o amido e açúcar

quando asso-lhe pães.

 

moagem de grão

boca em farelo

incendiando a fome.

 

estamos sós

a vida não é mais

que a tarde finda

declinada de sol

na voz esparsa.

 

poesia-flor, rasura

de signos, o deus

em regresso, fósmeo

do trigo recendido.

 

 

 

 

 

 

res extensa

 

 

nada fora de mim

e em mim, ainda

o corpo desdobrado

do corpo, sucedâneo

 

sensório-roxo croma

violetaflor carnada

da violeta, evasiva

tinta manuscrita

 

corpo a ocupar-se

voluto ergo sum voluto

desabitado de cogito

: violeta vazada de sentidos

 

 

 

 

 

 

amarelo por dentro

 

 

A tua letra é amarela

como a nêspera, a gema

o fruto em véspera e ocre

saltando da árvore, da página

da costura no dobrado do paletó.

Devolveu-me a vida enquanto escrevias

e sublinhavas o termo, a epígrafe

a semântica clara de cuidados.

Trouxeste o castiçal, o sol

a última literatura.

O teu amarelo a escorrer-me

por dentro.

 

 

 

 

 

 

estêncil

 

 

Te passei em estêncil

fiz o traço, o desenho

o decalco do teu olho a céu aberto

para a minha letra confusa

e sem cuidado.

Outubro nos comovia o coração

e, em claves de chuva fina

fiz mil cópias do teu violão.

Essa mania de afirmar o outro

com as minhas próprias mãos

ainda me fará perder as luvas!

 

 

 

 

 

 

vigília

 

 

Havia ternura:

a cor da fruta

sombreava as palavras

o cavalo-marinho

ia de amarelo

e  sem ver

todos os nossos

braços suspensos

em tempo irregular

de afago e festa.

 

Então, reinventarei

por necessidade

novas guardas.

 

Trazes o crisântemo

a ófris esquecida

e a alma

desalinha-se no leito:

minhas horas são feitas

de inseguro tear.

 

Antecipas o agosto

em tempo hábil

e o talha em jaspe:

a melifluidade

do amor raro

resvala sobre a pedra.

Tuas mãos cheiram

a silício e abandono.

 

Nenhum louva-deus

nenhuma flor imprevista

salta das letras.

De madrugada

assim tão tarde

nem as tangerinas maduram

nem o céu responde.

Sua metafísica monitora

o fólio, a promissória

e a minha poética insiste, azul

como anil dissolvido na água.

 

 

 

 

 

 

miração

 

 

bebe-se a luz, o deus

escaldado da folha

númen infuso

 

fosfeno cipo-

licromado de faúlha

 

sarça feito hoasca

que não cresta

 

pacha de amor projetado

em fliperama quéchua

 

 

 

 

 

 

elegia

 

 

A criança alada

com um archote caído

veio da Antiguidade mítica.

A doença inventada

pretexto de zodíaco

atravessado no tempo

— signo em desalinho

netuno em seu percurso.

 

A criança alada

levou a criança sã:

invejava-lhe o vestido

invejava-lhe a mãe

invejava-lhe o colo.

Ofereceu-lhe a morte

e uma de suas asas.

 

 

 

 

 

 

dor

 

 

Se já não estivesse

na carne

estaria, certamente

nas folhas

de vermelho translúcido

das amendoeiras.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Iolanda Costa (Itabuna/BA). Editou, artesanalmente, os folhetos de poesia Às canhas as palavras realizam mil façanhas (1990), A óleo e brasa (1991) e Antese (1993). Tem poemas publicados em jornais, antologias, revistas impressas e eletrônicas e blogues. Participou do Livro da Tribo (2013/2018). É autora de Cinema: Sedução, Lazer e Entretenimento no Cotidiano Itabunense (2000), Poemas sem nenhum cuidado (2004), Amarelo por dentro (2009), Filosofia líquida (2012) e Colar de absinto (2017). Coordena a coleção de plaquetes Pedra palavra (2012-2017).