O demônio, quando quer, fica bonito

 

 

— É minha irmã. Ela morava com ele faz quatro anos. Ele matou ela. Não foi com revólver, não. Esmagou a cabeça dela na parede. Quer ver?

— ...

— Deu um murro que os dois olhos saltaram e ficou um roxo só. O homem da funerária disse que deu para disfarçar um pouco com a maquiagem, mas ainda está tudo preto. E na cabeça então, atrás, tem um buraco que dá pra enfiar o dedo. Depois de bater a cabeça dela na parede ele ainda bateu com ferro da construção. Tenho pra mim que ele ia enterrar lá mesmo, tinha até feito um buraco, acho que depois resolveu chamar a polícia e falar que ela tinha caído da escada...

—  ...

— A polícia não prendeu ele, não. Levou ela pro IML primeiro. De tarde ele veio aqui no velório, queria enterrar rápido pra família não ficar sabendo direito o que tinha acontecido. Mas eu não deixei. Falei pra ele que o enterro tinha que ser amanhã. Pra gente poder passar a última noite com ela. Ele deve estar rondando por aqui, mas não entra porque sabe que se ele entrar, eu chamo a polícia e agora vão prender ele, porque já sabem que ela não caiu coisa nenhuma... Foi ciúmes. Ele é louco por ela.

— ...

—  Quando ela largou o marido para ir viver com ele, todo mundo dizia que ele não prestava. Mas ela estava apaixonada. Largou o marido que era um homem bom e foi. O marido de verdade ainda gosta dela. Nunca deixou de mandar dinheiro, cuidava das filhas. Mas ela ficou apaixonada pelo demônio e não quis mais saber dele. Logo que ela foi morar com o demônio, já começou a apanhar. Ele tinha ciúmes dela e aí batia muito...

— ...

—  Ele gostava dela. Quando ele riscou os peitos dela com a faca, eu falei pra ela largar dele, que ele não prestava. Ela falou que gostava dele e que ele fazia assim porque gostava dela. Ele é o demônio, dona, e o demônio, como o pai dizia, quando quer, fica bonito. Se o pai estivesse vivo, ela não tinha deixado o marido para morar com esse cusaruim. Teve uma vez que ele cortou a barriga dela com a faca, de fora a fora, ela se escondeu no banheiro e ficou segurando para a barrigada não cair, até desmaiar. Foi a vizinha que viu o sangue e chamou o resgate. Costuraram ela.

— ...

— Não prenderam, não, ela não deu queixa. A delegada falou que ela tinha que dar queixa, porque ele ia acabar matando ela. Ela não quis. Ela gostava dele. Eu, agora, só tenho mais uma irmã. O meu irmão, que morava com ela, se matou. Faz dois anos. Foi depois que o pai morreu. Ele entrou em depressão, tomava remédio forte, fazia tratamento com psiquiatra. Eu também fiquei com depressão depois que o pai morreu. Tomo remédio de receita presa e vou no postinho. O pai tinha os defeitos dele, mas depois que ele morreu nossa vida desgovernou. O pai sim gostava de nós. Ele protegia os filhos. Ai se alguém relasse a mão na gente! Quando a mãe largou o pai, a gente foi com ela porque o juiz mandou. Mas não deu certo. O pai foi buscar. A mãe não queria deixar a gente ir. O pai falava que a mãe era louca. Eu não achava que a mãe era louca. Ela era só triste. Quando o pai levou a gente embora, a mãe ficou mais triste e no dia seguinte se matou. Pôs veneno de rato no café. A polícia queria prender o pai, falaram que ele tinha colocado o veneno no café da mãe porque ela tinha ido na polícia fazer queixa dele. É mentira! Nunca que o pai ia matar a mãe. Só uma vez que o pai bateu na mãe. Foi no dia que ela veio mais cedo do serviço e o pai tava em casa com a minha irmã.

— ...

— É. Com essa minha irmã que morreu hoje. Então, a mãe ficou com raiva do pai e  foi na delegacia falar mal dele. Aí uma moça lá da polícia conversou comigo e com as outras duas minhas irmãs, perguntando o que o pai fazia com a gente. Nunca que eu ia falar mal do pai. Ele sim gostava de nós e protegia os filhos. A mãe falou que eu tinha de falar a verdade pra moça. Eu fiquei com medo que o pai fosse pra cadeia só porque gostava de nós. Minhas duas irmãs também não contaram nada pra moça. A gente tinha jurado pro pai que não ia falar.

— ...

— Não prenderam ele, não, graças a Deus!

— ...

— Quando a mãe morreu eu tinha sete anos, a minha irmã mais velha tinha nove, essa que morreu tinha cinco e meu irmão tinha só quatro. Se o pai tivesse vivo ele não ia deixar o demônio fazer o que fazia com ela. Foi o pai que escolheu o marido pra ela. O meu também foi o pai que escolheu. Gente de confiança dele. O meu marido é bom. Nunca me bateu. Nem quando eu fiquei de surto.

— ...

— Quando acordei hoje e vi que ninguém em casa tinha ido trabalhar, achei que tinha acontecido alguma coisa. Meu marido jurou que não, minha filha disse pra mim tomar mais um comprimido e voltar dormir. Eu fui. Mas fiquei pensando que alguma coisa tinha acontecido. Mas não pensei nela, pensei na minha outra irmã que tem problema no coração, tem pressão alta. Eu ouvi então o barulho da moto do meu sobrinho, levantei meio zonza e ele falou: — Tia, você precisa ser forte. A Maria morreu. O Adão matou ela.— Só não desmaiei porque não sou de desmaiar. Mas a visão escureceu e eu precisei sentar. Eu não achava que ele ia matar ela, eu sabia que o demônio era ruim, mesmo quando quer ficar bonito, mas ele gostava dela. Matar não ia matar. Ele não sabia viver sem ela. Por isso que ela não largava dele.

— ...

— Pode ser que ela tinha medo, porque ele dizia que matava se ela fosse embora. Eu falava pra ela ir na Delegacia da Mulher que iam proteger ela. Ela só foi na delegacia quando ele jogou ela debaixo de uma moto que ia passando e o motoqueiro contou pra polícia. Lá no hospital eu disse pra ela que ela precisava dar queixa, que ele ia matar ela. Eu fui com ela e a delegada chamou ele lá, prendeu ele quinze dias. Depois soltou. Ela disse que não ia querer mais ele, mas a senhora sabe, dona, o demônio quando quer, fica bonito. Teve um dia, depois disso, que a minha sobrinha chegou pra mim e disse: — Tia, o pai comeu a orelha da mãe. Não conte pra ela que eu falei pra senhora senão ela bate em mim. Eu queria ver se era verdade. Aí comprei um brinco na banca e levei pra ela. Falei pra ela experimentar o brinco. Ela disse que estava com a cabeça doendo e aí eu vi sangue seco grudado no cabelo dela, pus o cabelo pra trás e tava mesmo faltando a parte de cima da orelha. Então ela contou que era desejo dele comer a orelha dela. Ela amava ele, deixou. Falou que doeu um pouco só.

— ...

— Aí, como eu estava contando pra senhora, quando o meu sobrinho falou que a Maria tava morta, fui lá no IML, não me deixaram ver porque o marido já tinha ido lá pra liberar o corpo. O homem da funerária falou que era melhor deixar o caixão fechado de tão feia que ela estava, eu não deixei. Esse negócio de caixão fechado só serve para aumentar a ignorância do povo. Vai ficar todo mundo imaginando o que ele tinha feito com ela. Vão achar que ela ficou deformada. A cabeça dela tá inchada porque ele esmagou na parede, além de bater com o ferro. Mas o homem da funerária quase conseguiu esconder os roxo com a maquiagem.

— ...

— Agora todo mundo foi embora, meu marido e meus filhos queriam que eu fosse pra casa também. Eu falei que ia ficar aqui até amanhã cedo, porque se eu fosse com eles, tinha que tomar o remédio pra depressão e se eu dormisse muito pesado, podia perder a hora do enterro, que vai ser às oito horas.

E também porque tenho certeza de que o demônio tá rondando por aqui, se ele vê que ela está sozinha, é capaz de fazer uma bobagem... Judiar dela no caixão.

Eu vou ficar pra proteger ela.

 

 

 

 

Galinhada

 

 

No fogão de campanha um grande caldeirão ferve litros de água.

O fogo alto é alimentado por uma mistura de gravetos, carvão e poucas toras de lenha verde que esfumaçam a noite fria, sem estrelas.

Penduradas, de cabeça para baixo, duas galinhas destroncadas ainda estrebucham, embora seus olhos já estejam embaçados pela morte.

Do prego ao caldeirão fervente basta um passo.

O mestre cuca não usa toque, apenas um lenço amarrado à moda dos piratas que tenta segurar os fios revoltados, teimosos por encontrar um espacinho e cair sobre os olhos do cozinheiro, que os afasta com os mesmos dedos que apertaram o pescoço dos frangos há poucos minutos.

Há também na cozinha improvisada uma bacia de arroz, cebolas a serem descascadas, duas cabeças de alho, alguns tomates e um maço de ervas colhidas ao acaso, além de uma grande faca pontiaguda.

 

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As pequenas luzes que circundam o espelho denunciam as primeiras rugas mais profundas ao redor dos olhos e que a atriz se esforça em esconder sob uma grossa camada de maquiagem.

Atribui à fumaça que vem da cozinha a vermelhidão de seus olhos, que ressalta ainda mais o verde claro das íris. Esquece-se das noites insones e do baseado cotidiano.

Levanta a alça do soutien, com a expectativa de que levante também os seios e os torne mais atrativos.

No colo espalha o creme hidratante, assim como nos braços e nos ombros.

Lamenta não ter alguém para espalhar o creme também nas costas, até lembrar-se que estarão cobertas pela musseline transparente e colada ao corpo e que, de longe, passará a impressão de nudez.

Sente-se tentada a não usar nenhuma roupa íntima por baixo da musseline, nem calcinha, muito menos o soutien que a aperta e que revelam as gordurinhas extras.

Que diria o público quando as luzes coloridas a atingissem e pudesse vê-la inteira através do tecido?

Corou. Encalorou-se. Despiu-se. Abandonou o espelho da penteadeira e olhou-se de corpo inteiro.

 

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O ruído do amolar da faca na pedra, que também serve de apoio à bacia usada como pia, indica que os trabalhos na cozinha estão, literalmente, a pleno vapor.

Vapor que também se condensa na testa do cozinheiro e sobe na forma de fumaça até o camarim da diva decadente e se desfaz contra o teto baixo da lona desbotada, que tal como a mulher já viveu dias de glória.

Os frangos agora já estão boiando no caldeirão. A fumaça com cheiro de penas e de morte penetra nos narizes, aguçando o apetite das feras: um leão magro e desdentado, uma onça parda, idosa e encardida, os quais com seus urros provocam o chimpanzé, cujos guinchos unem-se aos latidos dos poodles e aos relinchos dos dois cavalos brancos, os mesmos que  à noite trotam no picadeiro com penachos coloridos e durante o dia servem de montaria ao dono do circo e ao seu imediato.

 

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Sem parar de picar vigorosamente a cebola, as ervas, o tomate e amassar o alho com o cabo da faca, o cozinheiro coloca dois dedos na boca e solta um longo assobio.

É a senha para que os animais se calem e o anão chegue ofegante para começar a  arrancar as penas das galinhas, depois que a água do caldeirão é dispensada em uma valeta, providencialmente formada pela forte chuva do dia anterior.

O anão cantarola o refrão: a galinha pintadinha e o galo carijó. A galinha usa saia e o galo paletó, enquanto depena e brinca com a galinha morta, balançando o pescoço e fazendo com que os pés da ave dancem sobre tábua...

Vez por outra o cozinheiro lança ao anão um olhar reprovador, mas não diz palavra. Por sua vez, o anão finge que não percebe e continua a cantar até que uma penugem entre em sua boca e provoque um acesso de tosse.

Com cara de "bem-feito", o cozinheiro continua picando cebolas, mal se importando com o anão quase tão roxo quanto os pés da galinha.

 

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Todas as luzes já se acenderam. A bilheteira com ar cansado confere a fila formada por meia dúzia de gatos pingados. Algumas crianças, mal vestidas e de chinelos, circundam a lona, esperando o momento de distração dos "zeladores" para conseguirem passar por baixo dela.

O homem do realejo, assim como seu periquito, aguardam a ansiedade de alguma mocinha sonhadora.

O nada respeitável público acomoda-se nas arquibancadas, come pipoca, masca chicletes, enquanto as últimas caixas do mágico estão sendo colocadas no picadeiro.

 

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Acendem-se as luzes do palco. A bandinha, composta por um trombone, dois trompetes e duas caixas toca um dobrado, puxada pelos metais, enquanto  homens enfastiados, vestidos como soldadinhos de chumbo, marcham ao redor do picadeiro, sendo seguidos pelo mágico e sua cartola, pelo domador e seus leões encoleirados, por Tarzan e seus micos e por último a adestradora e seus poodles, além, é claro,  de dois palhaços tristes com suas risadas pintadas nos rostos, que fingem não achar seus lugares na fila.

A plateia assiste o desfile sem aplaudir nem sorrir. Não se manifesta nem mesmo quando a pomba escapa da casaca do mágico e voa em direção ao saquinho de pipoca da criança magra da primeira fila.

Não aplaude o domador e seus leões infelizes, nem o Tarzan que voa nos trapézios como se fossem cipós, acompanhado pelos macacos de chapeuzinhos vermelhos e azuis.

Os poodles entram saltitando atrás de uma bola grande e colorida, e a adestradora, com um apito e alguns petiscos, os convence  a saltar por bambolês tão gastos quanto a musseline da roupa  que encobre seu corpo sem atrativos.

Há muito não ouve um "fiu-fiu" do público. Respirou aliviada por ter recobrado o senso crítico a tempo de vestir o collant cor da pele por baixo da roupa de trabalho.

 

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Os pedaços de galinha já estão fritando no caldeirão absorvendo os temperos e lentamente se bronzeando no fogo baixo.

Em uma lata ficaram as tripas e os pés que irão para os cachorros. As cabeças serão misturadas à carne destinadas aos leões e as penas, depois de lavadas e deixadas ao sol de muitos dias, encherão travesseiros.

O cozinheiro agora joga no caldeirão o arroz que aguardava na bacia e depois de uma mexida vigorosa com um cabo de vassoura que faz a vez de uma colher de pau, despeja o restante da água fervente sobre o arroz e o frango, extraindo dali o chiado da água sobre o óleo quente e mais uma nuvem de vapor temperado.

Pronto. Basta esperar a água secar e a função terminar.

Tira o lenço da cabeça e com ele seca o suor do rosto. Ajeita a tampa do caldeirão, para que fique apenas semiaberto, e senta-se observando a fumaça com o ouvido atento aos movimentos do picadeiro.

O dono do circo, de fraque e cartola, anuncia que esta foi a última sessão na cidade, não arrancando um único "ah" do público.

Poodles voltam para suas gaiolas, leões para suas jaulas, assim como os micos, agora sem os chapeuzinhos.

O elenco se reúne ao redor da panela, novamente em fila, agora com os pratos nas mãos. Não há palhaços, não há mágicos, não há adestradores. Não há conversas sobre o espetáculo, não há risos nem sorrisos.

Há tristeza e cansaço. Há a frustração de quem viveu muito e não chegou a lugar nenhum.

Há um circo para ser desmontado e uma nova cidadezinha a ser visitada, mas primeiramente há uma galinhada a ser degustada com apetite.

E rápido.

Antes que alguém dê queixa do furto dos galináceos...

 

 

[Conto publicado na antologia Respeitável Público — Histórias de Circo e Outras Tragédias]

 

 

 

A Velha da Sacola

 

 

Todas as segundas-feiras o ritual se repetia.

Saía de casa por volta das dez da manhã, carregando aquela cesta de lona listrada, que tinha ido à feira por décadas, e seguia, dirigindo o próprio carro, em direção à periferia, onde escolhia, ao acaso, uma família que recebia o presente.

Na cesta, um tabuleiro com lasanha ao molho branco, uma peça de lagarto ao molho de madeira, uma cumbuca de salada mista com molho de maionese. Separada, em um saquinho desses de supermercado, outra vasilha continha pudim de leite condensado.

Na primeira vez, a chegada da velha senhora oferecendo comida surpreendeu os moradores daquele bairro pobre. Na semana seguinte, quando estacionou o carro debaixo da amoreira, as crianças da família presenteada anteriormente já chegaram mais perto do automóvel, sorrindo e tentando descobrir o que havia na sacola.

A mulher não correspondeu aos sorrisos, passou por elas e ofereceu o conteúdo a uma moça que a observava da janela.

E assim, escolhendo ora uma família, ora outra, mal se importando com a procissão de famintos que a seguia, como se ela estivesse carregando um andor e não apenas uma sacola velha, é que a oferta se dava.

Se as famílias não se repetiam, também as refeições eram variadas: tutu de feijão, arroz, lombo de porco assado e couve na manteiga eram acompanhados por manjar branco. Quando o cardápio continha massas e frango assado, a sobremesa era pudim: de leite, de coco, de chocolate ou de frutas.

No dia seguinte ao Natal levava peru ou tender, acompanhado por arroz com amêndoas e champanhe e uma grande mousse de chocolate. No dois de janeiro de cada ano, além do leitão ou bacalhau (nunca aves, pois ciscavam para trás), levava lentilhas, para trazer fartura, e distribuía folhas de louro aos membros da família escolhida, dizendo que as conservassem dentro da carteira durante o ano todo e assim o dinheiro não acabaria.

Na sacola também sempre havia refrigerantes e, eventualmente, algumas latinhas de cerveja.

Porém, naquela segunda-feira, anos depois da primeira, as pessoas estranharam quando outro automóvel parou debaixo da amoreira. Diferente do carro branco a que se acostumaram, o que chegou ali foi um táxi prateado, do qual saltou a senhora de sempre, com a sacola de sempre.

Como de hábito, não sorriu, nem falou com ninguém. Apenas entregou o farnel: macarronada com brajolas, salada verde e mousse de maracujá. Deixou ainda um litro de Coca-Cola e algumas latas de cerveja.

Voltou ao táxi e nunca mais apareceu por ali.

Nos primeiros momentos, moradores do bairro especulavam entre si se a velha da sacola tinha desistido deles ou simplesmente tinha morrido. Bastou a ausência em poucas segundas-feiras para que a esquecessem.

No entanto, a história voltou a correr de boca em boca, anos mais tarde, quando um daqueles meninos cresceu, se tornou jornalista e foi designado para uma matéria em um dos asilos da cidade. E foi lá que ele reencontrou a Velha da Sacola.

Embora não tivesse sido reconhecido por ela, que mal olhou em seus olhos e ainda se recusou a contar sua história, ele se lembrou das mãos de unhas bem tratadas que, um dia, apresentaram a ele um manjar dos deuses: mousse de chocolate!

Ali, naquele quarto de asilo, depósito de abandonados, quase podia sentir um cheiro de sobremesa vindo daquela mulher. Disse isso a ela, mas não a demoveu de seu voto de silêncio.

Foi por intermédio de uma das empregadas mais antigas do asilo é que soube parte da história e deduziu a restante.

A mulher se internara lá, por contra própria, há muitos anos. Resolveu sozinha os trâmites burocráticos, transferindo ao asilo a aposentadoria que recebia mensalmente. Também pediu a um tabelião para alterar o testamento, deixando a instituição como única beneficiária de seus bens, pois, disse ela, não tinha mais ninguém para deixar a herança.

Ainda, segundo a empregada do asilo, soube-se depois que sim, ela tinha família. Mas optou pelo asilo, após esperar, todos os domingos, por anos a fio, a visita do filho com a nora e netos, a qual, invariavelmente, era substituída por telefonemas.

 

 

 

 

[imagens ©FieldCandy]

 

 

 


 

 

 

 

Henriette Effenberger é sócia-pioneira, ex-presidente e atual diretora da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). Publicou, em 2002, o romance A Ilha dos Anjos, em dupla com Maria Dulce Louro. Em 2008, o livro de contos Linhas Tortas e o infantil As aventuras do SuperAgora. Como memorialista publicou Aeroclube de Bragança Paulista — uma trajetória nas asas do tempo (2006), Sociedade Sinfônica de Bragança Paulista — 80 anos de acordes em harmonia (2011) e Sindicato do Comércio de Bragança Paulista — 70 anos de história (2013). Em 2009, foi a vencedora do Prêmio João de Barro, de Literatura Infantil, tendo o conto Vida de Sabiá — que sabiam os sabiás além de assobiar, editado pela Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte e, em 2016, do Prêmio Manaus de Literatura Infantil, com o conto O menino que engoliu um furacão, ainda a ser publicado.