©carmine de fazio
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Quando ela começa a remexer as gavetas, resolvo imediatamente alienar-me desse momento. Estou deitado na cama e a janela mostra um céu azul manchado de grandes nuvens brancas. As nuvens passam depressa. Há muito vento lá em cima. Passam da direita para a esquerda, sugerindo as formas que sempre nos remetem à infância. Ora são animais de cara comprida, feito jacarés e elefantes, ora uma espécie de soma dos dois. Aquela ali me lembra uma velha bruxa sorrindo, com um pano amarrado na cabeça, que passa voando e se desfazendo nas bordas. Sei que estão se movendo com rapidez porque há uma mudança de tempo a caminho. O barulho de um trovão longínquo já me alertara disso há umas duas horas. Se naquele momento tivesse chegado à porta da varanda, de onde se vê as serras, teria divisado, com certeza, as nuvens carregadas. Agora já devem estar bem próximas, penso.

O súbito ruído de madeira atritando-se e a pancada seca da gaveta tiram-me do sossego, com um susto. Ela se põe de pé segurando nervosamente um feixe de roupas. Um sutiã cai no carpete. Agacha-se rapidamente, apanha-o e sai do quarto em direção à sala, onde duas bolsas cheias de objetos que lhe pertencem estão prontas para ser fechadas.

Fazia muito a coisa não ia bem. Fica difícil explicar para uma mulher tão amiga, tão linda, que vai ser melhor a gente ficar só. Começou de brincadeira... Tem um samba de bossa nova que fala disso. Tinha sido assim com a gente: "Começou de brincadeira, de uma insinuação, o amor tinha chegado e a mentira sem querer virou verdade". A lembrança da bonita melodia levanta-me o astral. A bossa nova, além do mais, tem tudo a ver com nuvens — com "bandos de nuvens que passam voando", conforme falava uma letra.

Esses pensamentos, porém, são, na verdade, apenas um macete para fugir da realidade. Ela está indo embora. Isso dói. E muito.

Pela janela, um ventinho frio começa a incomodar. As primeiras nuvens acinzentadas surgem. Ela fala ao mesmo tempo em que estala o primeiro grande trovão, que encobre sua voz e não me deixa entender o que foi dito. Como não insiste no assunto, concluo que deve ter sido uma frase que não exige resposta. Melhor assim. Já nos propusemos tudo o que foi possível, e as palavras já nos machucaram o bastante. Nenhuma proposta fora aceita por qualquer dos dois lados. Todas apenas expuseram mais nitidamente as imperfeições de uma relação inviável. Não que uma relação tenha de ser perfeita para sustentar-se. É que as imperfeições dessa tinham extrapolado. Se se comparasse as horas boas com as ruins o saldo seria amplamente favorável às últimas.

O céu escurece rapidamente. Lá fora, daqui a pouco, os carros terão de andar de faróis acesos como se fosse noite. Ela retorna ao quarto e acende a luz — no preciso momento em que um raio faísca. Sinto-me flagrado, duplamente fotografado: pela luz forte e azul do raio e pela lâmpada do teto sobre a cama. E também pelos olhos vivos que me fitam. Nada a dizer. Sei que ela tenta revelar-me algo. No entanto, recua calada, apaga a luz e sai.

As nuvens que passam nesse momento pela janela são negras e cada vez mais baixas. Eu as adivinho a roçar o topo do prédio, a esconder as antenas e a envolver ainda, com mais mistério e dor, essa tarde aflita e estranha. Fico de joelhos na cama, estico-me até alcançar o vidro corrediço da janela e o forço, fechando-a. Isso me protege do vento, mas não dessa sensação maluca de insegurança. Vontade de voltar atrás, de dizer que fique, que talvez valha a pena tentar de novo, etc., etc. Mas temo fazer de nossas vidas um chavão igual a esse tipo de declaração, e resisto.

É quando o barulho familiar da porta da rua se abrindo me chega aos ouvidos. Trata-se do último ato. Um calafrio feito uma corrente elétrica perpassa meu corpo. Em minha mente surge a imagem nítida da porta fechando-se com velocidade. Crispo meus dedos no travesseiro, o estrépito de um trovão funde-se com a batida estrondosa da porta. O apartamento treme, a chuva cai pesada, instantânea, e choca-se contra a vidraça. Chove, enfim. E o meu rosto também se inunda na tarde escura e fria.

 

 

 

dezembro, 2017