CAVALO E CATARSE

ÁRVORES-DO-PARAÍSO

 

 

Quando eu vi o meu pai

Morto no tear da solidão

 

Quando eu vi a minha mãe

Morta no tear da solidão

 

Quando eu não vi o meu pai

Vivo no tear da solidão

 

Quando eu não vi a minha mãe

Viva no tear da solidão

 

Eu repetia ao redor do tear

A mesma ladainha que meu

Pai

 

Eu repetia ao redor do tear

A mesma ladainha que minha

Mãe

 

E perguntei — mas a quem eu

Pergunto se eu também era

Solidão solidão solidão

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

RAIZ

 

 

O coração bateu diferente,

A filha falou em voz alta

Quando ninguém ouvia

 

O coração bateu diferente,

A filha falou em voz baixa

Quando ninguém ouvia

 

Assim, durante anos e anos,

A filha sentia o coração bater

Diferente, feito uma ferramenta

Diferente, feito um instrumento

 

A filha, um dia, cansada de

Ouvir o coração bater diferente

 

Abriu o peito e viu a mãe morta.

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

ESPÉCIE

 

 

A minha irmã escrevia

As letras na parede e

Pedia para eu repetir

Em voz alta as letras

Que choravam a cal

 

A minha irmã escrevia

Os números na parede e

Pedia para eu repetir

Em voz alta os números

Que choravam a cal

 

Eu aprendi não a ler

As letras e os números

Os números e as letras

Na parede a cal mas

 

Aprendi a ler, primeiro,

As mãos de minha irmã

Que exalavam flores

 

E escreviam pássaros

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

A TECELÃ DAS NUVENS

 

 

O que é um tear? Eu devo

Perguntar a quem, o que é

Um tear, eu devo perguntar

A quem, o que é um tear?

 

Eu pergunto, então, aas linhas

Eu pergunto, então, aas roupas

O que é um tear e o que teartear?

E elas, as linhas, me respondem

E elas, as roupas, me respondem

 

Mas quando me respondem o

Que é um tear, elas respondem

Que tear é uma máquina, e não

 

Aquela fazenda com seus tecidos.

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

RUDÁ

 

 

Discursei. E exaltei

Quando falei sobre

As mulheres verdes

Os homens verdes

Os filhos verdes

As filhas verdes

 

O corpo verde

O sexo verde

 

A alma verde

O sexo verde

 

Eu verde

Ninguém verde

 

O paraíso verde

 

Exaltei. Exaltei mais

Quando falei sob

A vaia verde e

 

O cavalo verde

O inferno verde

 

O imaginário verde

 

Acordei com o pênis

Erétil feito sangue.

 

Verde, virei rudá.

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

A CHAMA DO FOLCLORE

 

 

O fogo crepita a lenha

E Maria sem hesitar

Vai pela lenha com

Os pés e suas plantas

 

Hesitam sim todos

Que olham Maria

Que leva pela lenha

Os seus pés e as plantas

 

Os pés e as plantas

Agora crepitam em

Chamas enquanto

 

O fogo se rasga aos céus...

ps. Ou se eleva aos céus

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

AR

 

 

Fui ao jardim de seu coração

E pedi 'água' não para sedar

A minha sede ancestral

 

Fui ao jardim de seu coração

E pedi 'amor' não para saciar

A minha sede ancestral

 

Fui ao pomar de seu corpo

E pedi 'água' e 'amor' não para

A minha sede ancestral

 

Fui ao cerne de seu corpo

E pedi 'alma' não para a fome

E a minha sede ancestral

 

Fui ao mundo de seu corpo

E achei 'água' 'amor' 'água' 'alma'

E nasci verbo

 

E 'água' 'amor' 'água' 'alma'

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

O SÉTIMO CÉU

 

 

Não formulei nada para a cena da morte

 

E como não formulei nada

melhor não gravar a cena da morte

para não grafar a morte

 

A personagem

vai morrer sem preparação corporal

e sem construção de personagem

 

Vai morrer naturalmente

ao debruar da vida

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

HÍMEN

 

 

O autor pediu para esquecer

O protagonista e se concentrar

Nas histórias paralelas

Para entender os coadjuvantes

Que assim entenderia

Porque o protagonista

Não fala sequer uma palavra

Durante a cena das frutas

Sobre o corpo da mulher

Quando a áspide surpreende

 

A todos com a sua língua

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

MULO

 

 

O tablado tinha um cadafalso

Para os atores que atuavam

Apenas com braços e pernas

 

O diretor queria mais e não

Apenas braços e pernas

 

Mas eles davam menos e

O diretor então parou de pedir

Mais que braços e pernas

 

Quando abriu o cadafalso

Que cortou braços e pernas

 

E a peça festejou o drama

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

CILADA

 

 

; Primeiro ele pedia para arrastar

Uma espécie de tecido ou talvez

Um lençol amarrado de nós

 

Ele pedia que repetisse a cena

E eu repetia exaustivamente

 

Uma espécie de tecido ou talvez

Um lençol amarrado de nós

 

Um dia depois de muitas noites

Ele colocou pedras no lençol

 

E pediu para puxar para lá e

Para cá aquele lençol de pedras

 

Uma noite depois de muitos dias

Surrado de tanto ser puxado

 

O lençol rasgou e as pedras

Foram parar pelo caminho.

 

E um par de asas nasceu nos meus pés:

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

O BOI DA IMPACIÊNCIA

 

 

Eu deixei a peça

Um dia antes da estreia

Deixei e fugi da aldeia

Antes de amanhecer

E ver a aldeia surpresa

Com a origem do mundo

Ao vivo sendo comida

Por animistas urbanos

Que se dizem árvores humanas

Apesar da peja de sagração

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

JESUS CRISTO DE GESSO

 

 

Ele queria aquela personagem

Mas aquela personagem tinha

Ator marcado para fazer e ele

 

Não queria dar o seu espinho

Para fazer aquela personagem

Que dava rosas ao espinho

 

Que ele guardava como um

Guardador de relógio interior

 

 

 

 

 

 

CAVALO E CATARSE

LOAS

 

 

Ele — ou era eu — tinha que entrar

E primeiro fixar o olhar no infinito

Enquanto metia a mão no pau

E mexia para mostrar loa loa

 

Ele — ou era eu — tinha que voltar

E derradeiro fixar o olhar no infinito

Enquanto metia a mão no pau

E mexia para mostrar loa loa

 

Loa loa, ele — ou era eu — tinha que

Mirar a imagem no espelho invisível

E pentear os cabelos para loa loa

Todos ficarem loa loa em êxtase

 

Afrodisia para ele — ou era eu ele,

Aquele que dizia enquanto batia

E puxava os cabelos da virgem

O sexo de minha mulher é uma

 

Papoula

 

 

[Poemas do livro Cavalo & Catarse. Editora Penalux, 2016]

 

 

 

[imagens ©djami sezostre]

 

 

 


 

 

 

 

Djami Sezostre, poeta, performer e ativista pró-poesia, nasceu na noite de 30 de abril de 1971, em Rio Paranaíba, Minas Gerais, Brasil. Estreia em 1986 com o poema/livro Lágrimas & Orgasmos, publicou dezenas de obras de poesia, por exemplo, Anu, Arranjos de pássaros e flores, Estilhaços no lago de púrpura, Onze mil virgens, Yguarani, Zut, Cavalo & catarse, etc. Traduzido para o espanhol, francês, italiano, inglês, alemão, finlandês, grego, húngaro e búlgaro. Em suas performances, queimou, rasgou e comeu livros, usou rosas e outros elementos como imagens da natureza em diálogo com o corpo e o espaço. Por seu modo próprio de sonorizar e representar a poesia, criou a Poesia Biossonora, que teve como espetáculos ecoperformances apresentadas na América, Europa e África, além dos CDs Musicacha, Neonão, Tropofonia, Muscai e Zut, que dissolvem fronteiras entre a música e a poesia. Viajou a países lusófonos para pesquisar a literatura produzida em língua portuguesa e publicou em livroDVD a contraantologia Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética, com 101 poetas de Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Brasil. Idealizou e empreendeu durante onze anos o Encontro Internacional de Leitura, Vivência e Memória de Poesia Terças Poéticas, sediado no Palácio das Artes em Belo Horizonte, Minas Gerais, com cerca de 500 edições nas quais se apresentaram artistas e escritores das mais diversas ascendências estéticas. Organizou as antologias O Achamento de Portugal, Terças Poéticas: Jardins Internos, O Amor no terceiro milênio, etc. Participou dos livros Antologia da Nova Poesia Brasileira (Olga Savary), A Poesia Mineira no Século XX (Assis Brasil), Poesia Sempre Minas Gerais (Afonso Henriques Neto), Dicionário Biobibliográfico de Escritores Mineiros (Constância Lima Duarte), Oiro de Minas: a nova poesia das Gerais (Prisca Agustoni), etc. Apresenta o programa de radioarte Tropofonia (Prêmio Roquette-Pinto/2010/ARPUB e MinC), rádio Educativa  104,5 UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

 

Leia também Wilmar Silva e Joaquim Palmeira.