*

 

 

Pétalas de dores

Eu já estou velha de mim

Buquê de flores

de espinhos e jasmim

Lágrimas de sangue

Viver é sofrer sem fim

Náusea sartreana

Fernando

pessoas

em mim

 

 

 

 

 

 

OLHAR CALIBRE 38

 

 

Se tem um olhar

que toda pessoa negra

sabe reconhecer

é o olhar racista.

Desde criança

aprendemos

que somos diferentes

e que vão nos olhar

de forma diferente.

Só não sabemos o porquê...

O olhar calibre 38

atira para matar.

Eu sinto cheiro

de racista

de longe...

é cheiro de pólvora!

 

 

 

 

 

 

A PUTA QUE TE PARIU

 

 

Nasceu.

É menina.

— Que pena...vai sofrer...

— Fura a orelha!

— Veste rosa!

Cresceu.

— Dá uma boneca, casinha, panelinha, tudo rosa!

— Senta de perninha fechada!

Posso correr? Jogar bola?

— Isso não é coisa de menina!

Posso subir na árvore? Pegar fruta no pé?

— Moleca! Eva comeu a maçã e é pecadora!

— Desce da árvore!

— Coloca essa menina no ballet!

Cresceu mais.

— Esconde esse absorvente! Que nojo!

— Põe um sutiã! Bem apertado e escuro para não aparecer o bico do seio!

— Pensando bem, tira do ballet! Vai virar dançarina!

— Hoje tem reunião dançante, menino leva refrigerante e menina leva doce ou salgado!

Cresceu mais um pouco.

— Leva na ginecologista! Tem que tomar pílula e não esquece: leva camisinha na bolsa!

Engravidou.

— Viu? Eu avisei! Anda com essas galinhas!

— Quer abortar? Na hora de abrir as pernas tu gostou, né?!

— Ele não vai casar? Assumir o filho? Registrar a criança? Então, fora de casa!

— Mãe solteira? Vai ter que casar!

— Não quer casar? Agora embala sozinha!

Cresceu, amadureceu.

— Não vai trabalhar? Dondoca!

— Tu é só dona de casa? 

— Não vai ter outro filho?

— Não vai dar um irmãozinho?

— Egoísta!

— Isso é que dá trabalhar fora: levou chifre!

— Separada? Divorciada? Te vira! Na hora de fazer foi bom, né?

Cresceu, amadureceu, ficou exaurida...

Tripla jornada.

O pai do filho só paga a pensão.

Vê o filho só duas vezes por mês.

O pai do filho não paga a pensão.

O pai do filho fugiu.

O pai do filho sumiu.

O pai do filho tem outra família.

O pai do filho têm outros filhos.

A mãe não tem mais tempo para nada.

A mãe não tem ninguém para ajudar.

— Arranjou outro homem?

— Vagabunda!

— Botou homem pra dentro de casa? Com as crianças? Cuidado, hein!

— Vai voltar a estudar?

— Quem vai ficar com as crianças?

— Creche não cuida, babá é perigoso!

— Ele te bateu? Também, saiu com essa roupa! Pediu, né?

— Essas tuas amigas solteiras...

— Por que ela não casou? É sapatão?

— Casou, separou e não teve filhos?

— Ela não tem instinto materno!

Instinto materno?

Santa foi a puta que me pariu!

 

 

 

 

 

 

*

 

 

As negras já estão

na terceirização

são as primeiras

a serem dispensadas

dentro da seleção

Na entrevista de emprego

para boa aparência

não se encaixam, não!

As negras já estão

na terceirização

"Veja bem... olhe..., então...

a empresa está passando

por uma reformulação

e nessa nova fase

lugar para você não tem não!"

As negras são as primeiras

a assinar a demissão

Faça o teste do pescoço

do alto até o chão

As negras já estão

na terceirização

Da senzala veio a empregada

e o segurança veio do porão

em posição subalterna

os negros sempre estão...

O povo negro alcançou

seus estudos já terminou

Muitos também já estão

na desejada graduação

Mas, a linha de chegada mudou

e agora, faltou a pós-graduação...

Empregos informais,

temporários e sem futuro

No fim do túnel escuro

não está a luz, mas a escravidão

remunerada

e chamada

de terceirização!

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Os meninos engraxates

não usam sapatos.

Isso é fato!

Que nossa falta de tato

não deixa perceber:

a falta do sapato

a falta do afeto...

A graxa do sapato

é da cor do menino

e o brilho do lustre

reflete em sua face.

Enquanto lustra o sapato

ele pensa que não há sapatos

para calçar...

E que aquele que está lustrando

não é o seu número!

Não é o seu número!

 

 

 

[imagens ©thandiwe muriu]

 

 

 


 

 

 

 

Ana Dos Santos. Poeta, professora de Literatura e contadora de histórias, gaúcha de Porto Alegre/RS. Formada em Letras pela UFRGS, participou e venceu concursos de Poesia na universidade e recebeu a Menção Honrosa do Prêmio Lila Ripoll na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Escreveu pequenas crônicas no Livro da Tribo (SP) e no livro Brazil by Night (SP). Venceu o Concurso Ministério da Poesia (World Art Friends) onde publicou o livro Flor (Portugal). Tem poemas na antologia Águia 2009 (AmiGos Unidos Incentivando As ArteS), no livro Pretessência — Sopapo Poético (2016), na antologia ELAS (2017), nas Revistas Gente de Palavra e Poesia Sem Medo. Faz parte do Catálogo Intelectuais Negras Visíveis (UFRJ/Editora Malê). Artista independente, criou o jornal digital "Sociedade dos Poetas Vivos" e colou poemas em muros do Brasil, no projeto "As paredes têm ouvidos e sabem do nosso amor". É mãe de Guilherme, seu melhor poema! Blogue: Flor do Lácio.