tapetum lucidum

 

 

nem queria dizer, mas vou, meu cu

não é problema seu, mas qual o quê,

meu pau não é da sua conta, mas

você quer se meter, quem é você

 

que vem se intrometer, minha xoxota,

meus pentelhos, meu útero, a quem

eu devo confiar as minhas contas,

minha mastectomia, minhas crenças,

 

minhas descrenças, minhas preferências

estéticas, meu histórico do Google,

meu nome social, minha posição

seja de ideias, seja sexual,

 

a orientação, a identificação

de gênero, minha não binariedade,

minha filiação a tal partido,

meu anarquismo, meu salvo conduto,

 

minha lista de compras, minha conta,

o que aprendi na escola, o que ensinei,

a cor da minha pele, meus cabelos,

o nome de batismo, a apostasia,

 

minhas metamorfoses, minhas dúvidas,

meus medos, meu lugar de fala ou falha

meu calcanhar de Aquiles, minhas pregas,

meus filhos no museu, meus outros eus.

 

não queria dizer, mas quem são eles,

não fôssemos às vezes nós fazendo

as vezes deles sem nos entendermos.

as nossas diferenças são iguais,

 

maiores ou menores do que as deles.

nossas pedras jogadas contra nós

e mais as pedras deles enquanto eles

nos catapultam, nossos estilingues

 

bem sabem sermos peças de um xadrez.

não esquecer que se eles trazem trevas

podemos nos mover na escuridão:

justo no breu é que melhor dançamos.

 

(2017)

 

[Esse poema pode ser ouvido aqui]

 

 

 

 

 

 

*

 

modéstia,

aparte o que me cabe

neste latifúndio.

dê-me um canto qualquer

do tamanho do mundo,

nem que seja este

canto

mudo,

mundo

meu.

 

(2017)

 

 

 

 

 

 

volver

 

 

voltar à casa que não foi sua

quebrar a maçaneta da entrada

espirrar com a poeira da sala

 

tropeçar no imenso corredor

assustar-se com a imagem no espelho

embaçado com as mágoas dos dias

 

dar a corda ao relógio de pé

e nas teias de aranha de um quarto

envolver-se e perder-se em memórias

 

sugeridas por vultos que já

não são vistos por olhos descrentes

não são minhas nem suas lembranças

 

nem a casa por que atravessa

só deseja: o permanecer

mientras que no se quede parado.

 

(2017)

 

 

 

 

 

 

assim na terra como no selfie 

 

 

cultuamos idólatras a imagem

de nós mesmos a cada instante em todo

lugar. compartilhar não a paisagem,

mas compor a paisagem, sobremodo.

 

o pôr do sol ao fundo, ao canto, à margem,

riso em primeiro plano, em qualquer modo.

documentar-se a si mais que a viagem,

mais parecer que ser, coisa de doido.

 

fotografar até cair no abismo

— quem dera fosse uma força

de expressão apenas —, o consumismo

 

fez sua lojinha lá no alto da forca.

nosso fetiche-mor: comprar-vender-se,

não esquecer do flash até morrer-se.

 

(2016)

 

 

 

 

 

 

meu canto pras paredes

 

 

o preconceito é uma parede enorme

contra a qual desde sempre me empurraram

mas se tentaram e não me executaram

é que aprendi bem cedo que não dorme

 

o apontado: preto bicha pobre

no paredão cresceu e ficou forte

ainda com a dor que o véu da morte

bem do seu lado alguns amigos cobre

 

e é por eles que não me vitimo

nem quero mais derrubar a parede

apenas canto para além de um íntimo

 

desejo reforçar rizoma e rede

cheia de nós, que não estou só, sou vivo.

picho a parede: verso afirmativo.

 

(2015)

 

 

 

 

 

 

balada do poeta ruim para si mesmo

 

 

os poemas em sua maioria

são ruins, mas, ainda assim, são poemas.

quando li O Demônio da Teoria

 

no item do capítulo do tema

O Valor, cujo mote desenrolo

aqui em terza rima, o problema

 

da oposição entre Dionísio e Apolo,

que antes era vidro, se quebrou.

saquei da minha bolsa a tiracolo

 

— para enxertar a imagem do Condor

sobrevoando a cordilheira dos Andes

blagueando o romantismo nesse voo — o

 

dicionário de rimas de Fernandes,

porque poetas ruins têm instrumentos

ao alcance da mão, se não são grandes

 

porém dignos de pena seus talentos,

para alcançar talvez notoriedade

o joio travestido de frumento

 

precisa ao menos de uma habilidade (1)

1. nota: há classes várias de poetas ruins,

não vou dar conta da diversidade

 

senão restrinjo-me ao que a mim

me diz respeito como poetastro

de uma subclasse de poetas chinfrins.

 

verbi gratia, há aqueles que se arrastam

em torno de quem estiver no poder

e que entre si se brigam e se desgastam

 

tudo fazendo para aparecer.

data venia, me vejo na alimária:

que, embora não despreze o métier,

 

e seja mau poeta, é de outra subárea:

dos que temos alguma vocação,

não pra poesia, mas pra gambiarra.

 

escrita a nota, volto à habilidade:

lançar mão do que está ao seu alcance,

fazer do que é ruim necessidade.

 

que nisso não bastando, não me canse

de escrever, por dia, uma bobagem,

um haikaizinho metido a romance

 

no qual um poeta ruim é o personagem

que vive a farsa tão forçosamente

a ponto de tirar disso vantagem.

 

(2015)

 

 

 

 

 

 

as aventuras de uma capivara estressada1

 

 

as aventuras de uma capivara

fêmea, Lagoa Rodrigo de Freitas,

que enfrentou situações inusitadas:

em pouco mais de um ano Alguém tentou

matar a capivara  duas vezes

mas felizmente ela sobreviveu.

Na quinta feira, uma nova história:

em uma operação de um dia inteiro,

só ao fim da tarde foi pega e dopada

depois que o ambientalista a acalmou.

"O segredo", explicou, "foi declamar

para o animal os versos dos poemas:

"O livro do desassossego", Pessoa;

"E agora, José?", Drummond de Andrade.

"Gosto de conversar com animais

me conhecem e curtem o meu papo".

"Enquanto lia os poemas, ela olhava

em minha direção, olhos enormes,

aos poucos foi ficando lerda e dócil

e assim pode o bombeiro capturá-la,

Segundo o presidente da Ave & Cia.

A capivara requer atenção

porque recém lhe esfaquearam às costas,

sendo ferida por desconhecidos.

Tentaram medicá-la, após o golpe,

com um dardo carregado de antibióticos.

Por não surtir efeito, a capturaram,

manhã de sexta e ela já saudável,

dando alimento para o três filhotes.

As aventuras dela estão famosas,

há mais de um ano ela foi encontrada

na garagem de Osmar Prado, ator,

tendo de lá saído assustada

e capturada pelos traficantes

que não queriam comer, mas devorá-la.

e ao fim Paulo Maia a resgatou.

Ela só escapou da mão do tráfico

por ter um microchip GPS

que a localiza esteja onde estiver.

São nove capivaras na Lagoa,

entre elas, seis adultas, três filhotes,

sendo que ano passado eram dez.

Segundo Paulo Maia, dois morreram,

de causas naturais, um; o outro, ferido

em briga para liderar o grupo.

Paulo Maia esclarece que, no caso

de acontecer uma nova disputa,

a capivara desafortunada

é livre de sofrer novo revés.

E ao fim, nos esclarece Paulo Maia:

"Esse tipo de briga é só entre os machos".

 

1Baseado em https://goo.gl/go1KpT

 

(2014)

 

 

 

 

 

 

o sorriso de Laerte

 

 

porque quando nos sonhos parecia

tudo bem melhor

não era

sonho.

 

parecia

bem melhor

que a vida

e não valia a pena

que escrevia e desenhava

à pena

a duras penas

não valia

 

a vida sem sentido

dá avisos

há vida pulsando

o tempo urge

e às vezes dói lembrar

 

então seguir em frente

desenhando esquinas

com a ponta do salto o pivô

sabendo tudo muito sério

inclusive o sorriso estampado

e a lisura do vestido.

 

a moda agora é sóbria,

nós não podemos ser.

 

é uma questão política:

o contraste é estratégia

de quem milita a alegria.

 

(2014)

 

 

 

 

 

 

versos alexsandrinhos

 

 

fazer ou não fazer: ex-a questão, eu faço

não para me gabar, nem para me esconder.

imagino você achando de fuder

meu ostinato rigore, bem, roubo mas faço

 

poemas e canções são feitos de pedaços

que às vezes eu senti, que às vezes eu menti

mas nunca que eu criei. pra quê? tá tudo aqui,

poemas e canções já feitos. despedaço e

 

não se trata de mim. a matéria que eu uso

é a deles, eu só cometo trocadilhos

com palavras que vêm, carregadas de outros.

 

não pense que sou médium ou um plagiador escroto.

eu apenas sampleio velho estribilhos

com um toque afroamerindianocafluso.

 

(2013)

 

 

 

 

 

 

soneto edipiano

 

 

assim como mattoso, eu amo os pés:

os jambos e os troqueus, principalmente,

e tenho um pé quebrado, que, igualmente,

me faz mancar nas fintas de pelés.

 

é o que eu simulo: verso que não joga

futebol, mas garrincha com palavras

bate bola em amistosos de entressafra

fazendo da alegria os nove fora.

 

embora aqui chulé não se aplicasse

posto que a evidência da parábola

indiscutível nos pareceria,

 

sinto um mau cheiro que não da metáfora:

repetindo o já dito, errando o passe,

peladas sem chulé não haveria.

 

(2012)

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Alex Simões é poeta e performer. Autor de Contrassonetos Catados & Via Vândala (Mondrongo, 2016), (hai)céufies (Esquizo Editora, 2014), Quarenta e Uns Sonetos Catados (Domínio Público, 2013) e Poemot!com (Organismo Editora, no prelo). Colabora em revistas literárias,  em antologias,  em blogues/sites de literatura, com poemas traduzidos para o inglês e o espanhol. Ministra oficinas de poesia, com foco em versificação e ações performáticas em poesia. Recentemente, traduziu o livro Entonces Daniela (Lumen Editor, 2015) e coeditou a Revista Organismo 1. É colunista fixo e revisor da Revista Barril. Dentre as performances poéticas, destacam-se  "você tem seda?" e "a cappella de Waly" (um tributo ao poeta Waly Salomão). Mantém o blogue autoral too bit or not too bit.