A Bíblia é o livro mais lido, mais pesquisado e mais publicado em toda história da humanidade. Quase todas as línguas já foram tocadas por sua tradução. Ali há história e há ensinamentos morais. Há sofrimento e há redenção a partir da dor. Analisando este ponto de vista, o escritor mexicano Carlos Fuentes declarou, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, que "a dor permite experimentos literários mais intensos. A pessoa que porta a semente do mal, da expulsão do Paraíso, é mais interessante para o escritor, tem mais camadas psicológicas". É justamente por regar a tal "semente do mal" que o livro de José Saramago, Caim, buscou cavar um enredo mais profundo a partir de uma história que todos já conhecem.

O livro é uma grande discussão entre Deus (religião, fé cega) e Caim (a "ciência certa" de Saramago). Caim é para ser lido como parte de um diálogo constante entre ele mesmo, enquanto livro, e o Livro Sagrado, a Bíblia; ou Caim e Abel; entre a admiração e a inveja; ou ainda entre Saramago e Deus. É, portanto, entre dualidades que o autor português propõe que seus leitores caminhem. Neste Caim, ao contrário de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Saramago propositadamente procura ser mais universal, abordando o Velho Testamento e buscando nesta história pontos de contato entre as três grandes religiões: o cristianismo, o judaísmo e o islamismo. O narrador em terceira pessoa (clone da primeira pessoa saramaguiana) não é nada imparcial nesta dualidade. Ele toma partido daquele que assassinou seu irmão. O fratricídio é o tema do livro, e Saramago reconhece em Caim mais virtudes do que em Deus (que, como todos os outros substantivos próprios, são grafados com letras minúsculas, fazendo dele mais um nome comum). O vencedor do Nobel nos leva a crer que somos mais Caim do que Deus, que há uma gota de Caim em cada sangue.

Há violência, há sangue e muitas, muitas mortes tanto em Caim como na Bíblia. Assim como Quentin Tarantino reescreve a História, vingando-se de Hitler em seu filme Bastardos Inglórios, Saramago reescreve o Velho Testamento, vingando-se de Deus em Caim. Não é exagero dizer que Deus é, neste livro de Saramago, a personificação do mal, responsável por um verdadeiro holocausto. O narrador acompanha os passos do protagonista, Caim, por várias passagens bíblicas como se seu foco narrativo fosse a câmera filmando um longa metragem. Saramago pretende dar um "zoom" neste mesmo foco narrativo, como se estivesse ajustando a imagem, antes desfocada, no Livro Sagrado.

Não demora mais do que uma página para o leitor perceber que Deus não é aquela figura doce e amável que criou o homem em sua bondade imensurável. Deus é, aqui, um ser ansioso e, principalmente, violento. Ao perceber que nem Adão, nem Eva falavam (por serem reprimidos pela onipresença onipotentemente "big brotherly" do Criador?), Deus, "num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo". Deus é simplesmente humano e, portanto, é retratado como alguém limitado em suas concepções, egoísta, dominador e prepotente dentro de sua arrogância. Deus estimula a criação de estratégias, por parte de suas criaturas, para ludibriá-los. Em nome da fé.

"O diabo é muito otimista se pensa que pode piorar os homens", escreveu Oscar Wilde, em uma de suas tantas "sacadas" filosóficas. Saramago, ao contrário do escritor irlandês, não tenta fazer com que os homens sejam mais pecadores: tenta piorar Deus. Ele coloca uma espada na mão do "Criador" (é irresistível não mencionar que a dor complementa Deus no substantivo "Criador" — nesta resenha, propositalmente escrito em maiúscula) e o desafia para uma luta. A arma de Saramago é a palavra, o verbo. E verbalmente ataca a existência de um Criador. Veja, por exemplo, esta passagem em que Eva, recém-expulsa do Paraíso, faminta, tenta adentrar, em um deserto, um pomar de frutas guardado por um querubim: "Repito, tenho fome, Pensei que já estaríeis longe, E aonde iríamos nós, perguntou eva, estamos no meio de um deserto que não conhecemos e onde não se vê um caminho, um deserto onde durante esses dias não passou uma alma viva, dormimos num buraco, comemos ervas, como o senhor prometeu, e temos diarreias, Diarreias, que é isso, perguntou o querubim, Também se lhes pode chamar caganeiras, o vocabulário que o senhor nos ensinou dá para tudo, ter diarreia, ou caganeira, se gostares mais desta palavra, significa que não consegues reter a merda que levas dentro de ti".

Tudo é impessoal em Caim. Ao contrário de Ensaio sobre a Cegueira, já a partir do título, Caim, os personagens têm nomes. No entanto, Saramago não nomeia indivíduos, nomeia uma história em que os personagens representam povos inteiros. A personagem Lilith, esposa de Noé, define para Caim (ecoando Mário de Andrade "eu sou 300, sou 350") esta condição, na página 126: "Ninguém é uma só pessoa, tu, caim, és também abel, E tu, Eu sou todas as mulheres, todos os nomes delas são meus". Existe, nesta representação metonímica, uma intenção de enfatizar a totalização, a onipotência de uma autoridade que se sobrepõe aos mais fracos, incorporando-os e aculturando-os. Deus é a metrópole que coloniza na Bíblia. Saramago escreve a história de Caim em terceira pessoa, o mesmo foco narrativo do Gênese. Porém, o escritor português escreve seu próprio Gênese de maneira espelhada, invertendo valores e dogmas, mas não eliminando-os. "Deus não existe" é uma afirmação que Saramago não faz. Ele sugere que Deus existe, mas é pecador, é mau. O autor português, portanto, não é ateu, não o destrói, como Nietzsche, apenas o critica e o humaniza, recriando-o à imagem e à semelhança do homem.

Saramago escreve por meio de uma linguagem leve e que flui entre intermináveis vírgulas, sugerindo um ad infinitum narrativo focado no Gênese, mas que sabemos que aponta para o Apocalipse no final. A leveza de sua linguagem é norteada pela ironia com que é feita a descrição de fatos bíblicos, relendo-os sob o olhar debochado de quem trata Deus e sua história com distância e proximidade que nunca são pautadas pela reverência. Caim é escrito, portanto, por um autor vacinado, com anticorpos em sua pena. Saramago apresenta um olhar nada dogmático de Deus, o que, ironicamente, o deixa mais próximo do Paraíso do que de um suposto Inferno, pois ele não se mascara para abordar o assunto. É um narrador ousado e descompromissado com relação a Deus, um pouco como o personagem do Parvo em o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.

O Gênese é um livro que trata da criação. Caim é um livro cujo autor dialoga com o leitor sobre a história que está sendo escrita, dizendo que irá poupar o leitor de detalhes que sabe que este já conhece do primeiro livro bíblico. É um exercício metalinguístico que trabalha com um protagonista fictício que se passa por real (o Caim histórico) e que se passa por fictício: Caim se apresenta como Abel. O leitor sabe que o Abel da história é, na verdade, seu assassino, que o personifica, dando-lhe a vida que ele mesmo tirou. Há, neste exercício de criação de ficção, a ideia de vida após a morte, de sangue que é vida, da duplicação do ser, da transformação do mal em bem. Uma mentira encenada para enganar quem interage com o protagonista no enredo. Uma mentira que permanece escancarada para o leitor (e para Deus). Caim é, nas palavras do próprio Saramago, uma "bíblia histórica" — uma antítese que remete à dialética, que os marxistas (como Saramago) tanto apreciam.

A proposta de Saramago é ocultar a história "oficial" do Gênese sob a história de Caim, travestida de humanidade. Remete, com isso, à realização de uma verdadeira limpeza, uma purificação (genocídio?) na Bíblia, através de um dilúvio que lava Deus e suas criaturas. O dilúvio em Caim não ocorre com a água de uma incessante chuva; o líquido cuja enxurrada carrega o mal da humanidade é o esperma (de Caim), já que as páginas da "Bíblia" de Saramago são carregadas de sensualidade e de sexo, ao contrário da esterilidade pudica da Bíblia divina. Afinal de contas, a gênese vem dos genes, da criação, cujos genes vêm, no homem, do esperma que produz.

Em Caim, portanto, José Saramago parte do princípio de que o leitor já conhece uma história: a do Gênese. É a partir do diálogo com o primeiro livro da Bíblia que a leitura de Caim se apresenta: lá estão vários dos personagens do Livro dos Livros: Adão, Eva, Abel, Caim, Noé e... Deus. Nenhum deles, porém, é retratado como na Bíblia. Ele prega com a razão dos ateus, mas prega também de maneira emocional, como se estivesse sendo lido por uma multidão de cordeirinhos. O ódio de Saramago a Deus é tão explícito, que ele chega a chamá-lo simplesmente, na página 79, de "filho da puta". Através de Moisés, seu porta-voz, Deus, assim como os traficantes em presídios de alta segurança ordenam chacinas em favelas do Rio e de São Paulo, mandou assassinar milhares de pessoas que adoravam um bezerro de ouro em vez de adorar a Si. Deus, para Saramago, é vingativo. Se vinga de quem não o segue, não o idolatra. E vê Deus que a vingança é boa. Deus é invejoso, autoritário e intolerante em sua onipotência.

Saramago pretende surpreender o leitor, oferecendo outra roupagem aos personagens já estereotipados pelo Livro Sagrado. É do choque entre o velho e o novo no enredo saramaguiano que o ganhador do Nobel de Literatura espera ganhar o leitor. É a mesma estratégia já usada antes. José Saramago faz um "copy and paste" em ideias já abordadas por ele originalmente em obras anteriores, pois escreve Caim como se estivesse pregando contra a fé cega (a cegueira novamente), contra a fé lúcida (a lucidez novamente), contra o evangelho (novamente), duplicando personagens e situações (o duplo de novo). O maior desafio de Saramago (e de artistas que desenvolvem uma linguagem feita em alto nível) é evitar ser repetitivo. A obra da fase final de Saramago aponta, infelizmente, para a mesmice. Entretanto, sendo um escritor consagrado e possuidor de vasto público leitor, já não se preocupava em inovar para renovar seu público. Pôde se acomodar no sucesso (merecido) que obteve em sua carreira. Correu, tranquilamente, o risco de manchar uma imagem que tão bem construiu no auge de sua capacidade intelectual. Com quase 90 anos, Saramago parecia, em Caim, não ter muito tempo a perder.

 

 

____________________________________

 

O livro: José Saramago. Caim.

São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 172 págs., R$ 49,90.

Clique aqui para comprar.

____________________________________

 

 

maio, 2017