©aitor frias & cecilia jiménez

 

 

 
 

 

 

 

Tempestade

 

 

Ela tinha aquele tipo de cabelo que podia ser vermelho ou dourado, você nunca teria certeza. Conforme se movia sob a explosão de luzes coloridas, os fios longos pareciam estar em chamas, mecha a mecha, como se a garota fosse um cometa seguido por uma cauda em combustão. Seu corpo ondulava ao som da música, e cada músculo se entregava como se soubesse o que estava fazendo. Mesmo rodeada de amigas, funcionava melhor sozinha. Era como se fosse o sol de um universo particular, com todos os outros planetas em sua órbita, a seus pés. Cambaleou, atingida pela mistura exótica de álcool barato e saltos Jimmy Choo. Era o deplorável clichê da esbórnia, rindo de seu próprio tropeço etílico e voltando a seu trono imaginário. Ninguém se importava com um deslize na pista de dança grudenta. Uma mulher como aquela tinha a festa dentro dela, e seus súditos banais a admirariam com olhos hipnotizados mesmo se a enxergassem como o espelho a refletia a mais absoluta catástrofe de vinte e poucos anos.

 

*

 

Ele ajeitou a jaqueta preta, sobreposta à camiseta de uma banda com a qual ninguém se importa, e mordiscou um cigarro apagado sob o olhar atento daquele segurança loiro. A primeira vista, era dono de toda a glória do entediante clichê americano. Sentiu o próprio suor umedecer o couro cabeludo escuro e arregaçou as mangas até a altura dos cotovelos, sem dinheiro para o guarda-volumes. Engoliu em seco, sentindo a garganta arder prelúdio de outra gripe ou consequência da fumaça branca que saía de algum lugar do teto. Pigarreou. Precisava de líquido. Enfiou as mãos no bolso da calça jeans e agarrou duas notas amassadas, pensativo. O valor correspondia a uma bebida e um troco de algumas moedas prateadas, ou, ao táxi que o levaria de volta para casa. Apenas uma das opções, como sempre. Deu de ombros. A resposta era óbvia.

Encostou-se ao bar e sorriu para o rapaz do outro lado do balcão, o cigarro ainda pateticamente preso entre os dentes da frente. Inclinou o cardápio plastificado na direção do atendente e indicou a tequila mais barata. Menos de um minuto depois, a bebida cor de cobre queimava sua garganta já arranhada. Recusou o limão, mesmo retorcendo os lábios numa expressão desgostosa. Detestava atenuantes. Girou os calcanhares e alinhou a cabeça ao ângulo perfeito, seu par de olhos se prendendo a mesma visão que pelo menos outros dois ou três naquele local.

Timing é mesmo uma coisa engraçada. Se tivesse olhado para a direita ao invés da esquerda, ou para o chão ao invés das portas duplas grosseiramente pintadas de preto, que se abriam para a área externa do bar, talvez nunca a tivesse visto. Ela caminhava graciosamente, flutuando entre a multidão como um ser superior, oscilante entre o angelical e o demoníaco duas faces da mesma moeda do desconhecido. Seu sorriso se perdia no gargalo de uma garrafa de vodca parcialmente vazia, e reaparecia em seguida, transbordando pela pista, ricocheteando nas paredes e ecoando pelo mundo. Na relatividade do tempo, ela passou por ali como um raio, numa sede de viver típica das onze da noite; já para ele, a garota era uma estrela cadente rasgando o céu em câmera lenta, num lembrete do universo que, por mais bonitas que todas as outras estrelas fossem, estavam mortas há muito tempo. Uma menina como aquela pulsava vida e dava sentido aos poemas mais mórbidos; fazia um segundo parecer um ano inteiro e um ano inteiro parecer uma bobagem; era o que você espera durante toda a sua existência e deixa de existir sem encontrar.

 

*

 

Ela jogou a cabeça para trás, explodindo numa gargalhada harmônica que se fundia a música. Seu joelho nu se recostava docemente no jeans dele, construindo uma intimidade frágil e tímida sob as estrelas da área para fumantes a céu aberto.

Então, você estuda medicina? Ela perguntou, divertida. Não queria acreditar numa palavra, mas a cada sinapse, seu cérebro abraçava mais a história.

Eu não diria que estudo Ele comentou, bebendo outro gole da segunda garrafa que os dois partilhavam naquela noite Estou matriculado.

Ela assentiu, sorridente, enquanto girava o piercing de argola do próprio nariz, num gesto distraído e puramente habitual.

E o que você quer fazer quando crescer?

Ele pensou brevemente, enquanto estendia a garrafa azul para ela.

Escrever. Sugeriu para si mesmo, num fio de voz incerto E você?

O olhar dela se perdeu por um longo tempo, fixando-se em nada em especial, enquanto a ponta de seu dedo seguia o formato curvilíneo da garrafa.

Eu vou transar com um roqueiro famoso até minhas pernas ficarem bambas e morrer aos 27.

Ele fitou os próprios pés. Uma grossa camada de barro havia aparecido na sola de seus tênis em algum momento desconhecido.

Parece um bom plano.

Ela suspirou e bebeu mais um gole.

 

*

 

Ele se inclinou e cobriu o vão entre o isqueiro e a ponta do cigarro com a mão direita, enquanto ela deslizou seu polegar pelo botão prateado duas vezes, até que a chama fraca fizesse seu trabalho.

Uma tragada longa. Outra. Ele encostou a cabeça na parede e soltou uma cortina preguiçosa de fumaça. Nenhum dos dois saberia precisar quanto tempo ficaram ali, perdidos em um silêncio cúmplice e acolhedor.

Por que você carrega um isqueiro se não fuma? Ele indagou, sem olhar para ela.

É uma boa maneira de fazer amigos. Em festas, alguém sempre pergunta se você tem um isqueiro. E aí, você conversa.

Parece solitário. Ele pontuou.

E desesperado. Ela completou, sorrindo para si mesma.

Ele olhou para a garota de soslaio e, finalmente, percebeu a cicatriz longa e fina que ela ostentava na têmpora esquerda. Cogitou perguntar por um instante ou dois.  A covardia venceu a curiosidade. Morreu sem saber do que se tratava.

Por que você não carrega um isqueiro? Ela perguntou, um tom metálico de desafio em sua voz.

Ele refletiu, intrigado. Nunca tinha pensado nisso. Fazia uma vaga ideia do motivo, mas esperou tempo demais para falar, e desistiu de dizer.

Inconscientemente Ela começou, triunfante Você sabe que não ter seu próprio isqueiro é uma boa maneira de fazer amigos.

Ambos se alojaram no conforto do silêncio pelo intervalo de uma tragada.

Parece solitário.

Ela assentiu.

E desesperado.

 

*

 

Desesperado.

Era uma boa definição para o movimento que o corpo dela fazia, se comprimindo cada vez mais contra a parede e puxando o garoto para junto dela, numa dança instintivamente coreografada. Ele a acompanhava numa ansiedade desenfreada, como se acreditando que, de alguma forma, pudessem se fundir e se tornar um só, desafiando a física, o tempo e o espaço. As mãos de ambos deixavam um rastro de eletricidade por todos os lugares, enquanto suas línguas brigavam por espaço num misto de raiva, selvageria e pena.

Era o beijo mais fantástico e triste daquelas duas vidas.

Os dois rostos finalmente se separaram, ofegantes, ela com o rosto queimando em um tom de vermelho suave. O álcool fazia a cabeça dele rodar, mas ele morreria jurando que a culpada era ela.

Eu amo você. Ele murmurou, tropeçando nas palavras curtas.

Ela sacudiu a cabeça negativamente, rindo.

Não, não ama.

Não. Ele concordou Mas poderia. Facilmente.

Os lábios dela se fecharam, mas sustentavam o sorriso internamente.

O amor é só uma suposição. Ela pontuou.

A frase se perdeu em meio a música alta. Ele não entendeu uma palavra, mas balançou a cabeça afirmativamente e sorriu.

 

*

 

Habilmente, ele abriu as duas cervejas com a ajuda da quina da mesa e estendeu uma garrafa para ela. Ela bebeu um longo gole, sentindo apenas o sabor amargo do próprio enjoo.

Por que você me perguntou o que eu quero fazer quando crescer?

Ela mordiscou uma das longas unhas vermelhas, distraidamente.

Porque eu queria saber.

Não. Ele se corrigiu, sacudindo a cabeça Por que você não perguntou o que eu quero ser? É uma questão linguística.

Ela sentiu uma necessidade desesperada de beijá-lo, mas não o fez.

Porque não temos nenhum controle sobre o que vamos ser. Você é um conjunto de experiências e sensações que transcendem sua vontade. Ela fechou os olhos brevemente, tentando organizar as ideias na cabeça embriagada Nós somos desconstrução. Um desmoronamento diário, entende?

Não. Ele não entendia.

É como se fôssemos mudas. Ela prosseguiu Plantadas no solo, regadas com promessas e conceitos sólidos para criar raízes fortes e saudáveis. Mas, nossos galhos crescem, e, conforme viramos árvores, essas certezas desabam como frutas, uma a uma, até que não sobre mais nada.

Faixas escandalosas de luzes verdes e roxas iluminaram o rosto dela, e, por um segundo, ele teve certeza que ela estava chorando.

Mas novas frutas sempre nascem. Ele sugeriu, gentil De novo. E de novo.

Ela se encostou a parede, desnorteada em seu próprio reino.

Nascem. E amadurecem. E caem. Ela sussurrou, baixo demais para que ele pudesse ouvir na balbúrdia da festa De novo. E de novo.

 

*

 

Ele brincava com os dedos dela como se suas mãos nunca tivessem pertencido a outro lugar. A cabeça repousava no ombro dele, sonolenta, acreditando que o mundo girava rápido demais enquanto eles morriam, juntos, um pouco a cada instante.

Me fala alguma verdade que seja só sua. Ela sussurrou com a voz rouca, agredida pela fumaça e pelo álcool.

Ele pensou longamente. Confuso, percebeu, aleatoriamente, que precisava do beijo dela e de um cigarro, tudo ali, naquele agora, ao mesmo tempo.

Eu tenho medo de ir para o inferno.

Depois de morrer?

Depois. E antes. Numa dessa, o inferno está dentro da gente.

Ah.

Ele passou o braço em torno dos ombros dela, e ambos souberam que estavam destinados um ao outro. Ainda estariam quando todas as frutas brilhantes que ostentavam enquanto árvores jovens e prepotentes caíssem no chão, e só sobrassem galhos secos.

Eu tenho medo do escuro. Ela confessou, escondendo o rosto no pescoço dele, envergonhada.

Ele riu.

Eu odeio Laranja Mecânica.

O livro?

O filme. Ele deu uma pausa de meio segundo E o livro.

Ele sentiu o sorriso dela debaixo de seu queixo.

Eu também.

Eu odeio beijar garotas que usam gloss.

Eu também.

Já tentei me matar.

Eu também. Duas vezes.

Eu, três.  Mas só queria morrer mesmo em uma delas.

Estou feliz que você não tenha conseguido.

Ele beijou o alto da cabeça dela.

Eu também.

 

*

 

Ele a observava, enquanto o corpo dela serpenteava no ritmo da música eletrônica. Com as mãos miúdas, ela afastava mechas de cabelo molhadas de suor, que teimavam em cair em sua testa. Todo o corpo dele formigava, e ele soube que a amaria para sempre, enquanto a noite durasse.

 

*

 

Eu nunca li Dom Casmurro.

Eu sei todas as falas de Titanic.

Eu tenho medo de cachorros.

Eu, de gatos.

Tenho vergonha de ir ao cinema sozinho.

Quero muito ser mãe.

Odeio minha mãe.

Eu não conheci a minha.

Meu pai foi embora quando eu tinha quatro anos.

Meu pai é meu herói.

Meu avô é o meu.

Que bonito.

É.

 

*

 

Talvez tenha sido o tempo de um abrir e fechar de pálpebras; de meia música; de uma garrafa de cerveja; da fila do banheiro. Ele nunca saberia. Em um minuto ela estava lá, mexendo os quadris de um lado para o outro, e no seguinte, não estava. Como um furacão imaginário, ela o apavorou, virou do avesso e destruiu. Então, desapareceu ao amanhecer. Ele passou as mãos pelos próprios cachos escuros, desesperadamente, como se tivesse perdido algo que nem sabia que possuía. Era ridículo. Estava bêbado, enjoado e só a conhecia há seis horas.

Mas aí estava.

O inferno queimava dentro dele.

 

*

 

Meu avô vai perder o apartamento mês que vem.

Eu vendi o meu. Vou estudar em Miami.

Quero largar medicina.

Não quero ir para Miami.

Eu quero ir para qualquer lugar. Só quero ir embora.

Eles estavam ofegantes, com os lábios secos e amargos por algo que talvez fosse falta de água e excesso de cerveja, unidos a uma decepção a mais e outra a menos. Então, os olhos dela encontraram os dele pela primeira vez, e ele soube que carregaria um pedaço dela enquanto respirasse.

Minha ex-namorada fumava Ela disse, o peso da dor delineando as curvas das letras de cada palavra O isqueiro era dela.

Nada mais existia, exceto um, o outro, e a longa pausa que se seguiu.

Minha ex-namorada morreu de fibrose cística. Ele umedeceu os próprios lábios com a língua Eu não podia ter um isqueiro.

As íris castanhas de ambos se perderam uma na outra, igualmente cobertas por uma camada rasa de lágrimas, mesclando-se num riacho chocolate. As dores que flutuavam naqueles olhos eram, também, exaustão. O sofrimento do abandono havia acertado a ele e a ela, de diferentes formas que queimavam em uníssono. Aquele encontro de almas danificadas, entretanto, era tragicamente esperançoso. Os dois souberam disso quando sorriram sombriamente, possuídos por seus próprios fantasmas.

Como numa junção de tempestades, explodiram em uma gargalhada esganiçada, maníaca e frustrada. Riram, riram, apoiando os braços nas paredes do bar e sentindo os estômagos doerem enquanto projetavam seus corpos para frente, quase convulsivamente. Lágrimas de puro prazer molhavam seus rostos. Em contrapartida, seus pulmões ansiavam por ar. Riram, riram.

Ela enterrou o rosto na jaqueta dele e ele a abraçou, suas gargalhadas se misturando em um coro peculiar. Logo, as risadas histéricas se transformaram em soluços altos, que subiam e desciam no centro do peito, mas escapavam de um lugar mais profundo. Os dois choravam copiosamente, um nos braços do outro, como as crianças que ainda eram. Dando vazão a suas tristezas, exorcizavam, juntos, seus maiores demônios. Transbordaram.

 

*

 

As primeiras nuvens lilás e cor-de-rosa, delicadamente estragadas pela poluição urbana, atravessavam o céu, acompanhadas do canto dos pássaros. Com a cabeça encostada no vidro gelado do táxi, ela sacolejava junto com o carro, abraçando os próprios joelhos e rezando para não vomitar. Fechou os olhos, tomada pela confusão. Não sabia como tinha saído da festa, suas pernas apenas a tinham guiado para onde queriam ir. Tentou lembrar o nome dele. Aquilo sim, era mais importante que tudo. Sentiu uma pontada fina na cabeça. Se esforçaria novamente quando estivesse em casa, na cama. Balançou a cabeça afirmativamente, concordando consigo mesma.

Sentiu um nó na garganta, que nada tinha a ver com o gosto de bile que saía da boca do estômago. Era absurda a necessidade que já sentia de um garoto que tinha conhecido naquela noite. Esboçou um sorriso e buscou pelo nome dele, novamente em vão. Esperava, pelo menos, que tivessem trocado telefones. O nó apertou. Ela gemeu, de frio e dor, antes de se encolher no banco. No fundo, sabia por que ficava tão triste quando pensava na possibilidade de encontrá-lo de novo.

Aquela era a mais absurda tragédia alcoólica de um amor que nunca existiu.

Permitiu que a cabeça escorregasse pelo vidro enquanto caía, lentamente, na escuridão tranquila do sono. Antes de deslizar para a própria inconsciência, recordou a maior lição que a vida lhe havia ensinado.

Tudo é devastador. Tudo, entretanto, é temporário.

Tudo é tempestade.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Victoria Tuler (Curitiba/PR, 1995). Escreve ficção desde os oito anos. Já foi estudante de jornalismo, web designer, entregadora de comida, professora particular, desempregada e estagiária de agência de publicidade. Hoje, só é.