Perdendo os Cílios

 

 

"Caminhar por uma cidade desconhecida

é tomar a vida de alguém emprestada".

Diego Vinhas

 

 

I

 

 

a estrada

que criamos

junta-se

ao barro

quando a dor

nos pés descalços

supera o caminho

que continuamos

a seguir

 

 

 

 

II

 

 

cortar a margem do rio

com os olhos distantes

ter o corpo no trânsito

em que as imagens suspendem

o movimento para levar

estes mesmos olhos passantes

para a chuva ou cigarra

de uma tarde sem fim

cortar o rio com os olhos

e o próprio movimento

suspenso para conseguir

novamente mover o seguir

 

 

 

 

III

 

 

cinquenta e sete e oito

e nove rostos diferentes

nenhum é o seu o meu

como o padeiro o trocador

que fazem parte da vida

em qualquer canto

sessenta e um e dois

a sensação de estar

sendo empurrado a todo tempo

é a única familiaridade que existe

pagaria para caminhar em ruas

desertas pagaria com o silêncio

a teria em mim como um viajante

carrega no soslaio de sua direção

a lição da solidão

sua imagem de costas a ganhar

distância e três e quatro e cinco

 

 

 

 

IV

 

 

"Sua imagem, em estado de carta, foi meu

guia portátil de como perder cidades".

Diego Vinhas

 

 

a neblina que invade a cidade

alcança a reza e os olhos

dos santos sobre a mesa

o modo de ser

sentir

vacilam enquanto pavio

de uma mesma vela

terra batida gravilhões

paralelepípedos

a neblina é a única didática

da vida

agora

os pés descalços a tabuada

os passos marcados no corpo

somando subtraindo

ante ao

meio-dia

 

 

 

 

V

 

 

desprotegidos há tempos

somente estes dez segundos

cinco para lembrar e cinco para esquecer

existe nas entranhas um registro

que insiste em bagunçar

dentro deste pequeno caos individual

que aproxima todas as dores

dez segundos para viver

dividir entre lembrar e esquecer

 

queria perder alguns cantos

 

o último assento do lado direito

do elétrico Jerónimos — Cais de Sodré

a fumaça das sardinhas como névoa

o sopro que antecede o metrô

a chuva no miradouro do Adamastor

 

queria o que cresce nos mínimos

 

 

 

 

 

 

Amar aqui é coisa de silêncios

 

 

"A pessoa que mais amo

é feita desse mirante,

dessa época do ano,

do perto desse instante".

Carlito Azevedo

 

 

 

o que cresce de nós

é feito deste movimento da tarde

sobre as nuvens

as cores tornando as dores

impassíveis dentro de mais um suspiro

um fio de melancolia de braços abertos

de nós o que cresce

é o antisilêncio no peito

e se calamos é para entender

todas as vozes

e se calamos é para aceitar

que ainda existem

libertas nas formas de afeto

o que cresce de nós na distância

enquanto escorre a lágrima

do rosto da criança

que exaurimos ou expulsamos

em um pensamento triste

 

 

 

 

no final são só os contornos do tempo

 

 

com palavras e as mãos atentas

às linhas dos contornos contornos

que há um momento alguns digamos

que palavras e mãos se tornam iguais

com sombras e marcas iguais até

que ponto uma palavra pode pesar

deixar seus contornos e pesar retas

paralelas sem balanço algum

retas somente retas

palavras mãos atentas ou não

ao peso que acessou às suas curvas

para sentir nas nuances a veia

pulsante nos contornos dos dias contornos

que há um momento tênue momento

em que as palavras são esvaziadas

como as retas servem para encurtar

há desses em que só o silêncio

consegue relaxar as formas devagar

recolocar cada curva em seu desalinho

cada reta em descordo com o chegar

para sentir a brisa pele dos contornos

 

 

 

 

/

 

 

ter o tempo

mais nada depois

ter tempo fim

para não aceitar

mais e mais

até restar o tempo

nada mais depois

ter o tempo

os olhos voltados

para fora dele

 

 

 

 

entretom ou um beijo

 

 

desde que não deixe a tampa do vaso

no lugar da maçã entre nós

e a toalha molhada não esfrie

a cama ou macule a última

desarrumação dos lençóis

depois da última tampa do vaso

no lugar da maçã

uma voz sorvendo o silêncio

depois as mãos depois do olhar

vazando o que não é possível

ver quando os olhos se fecham no gozo

e a respiração engole qualquer som

no início flores e tatuagens e alfabetos

desde que não deixe a tampa ou não

as ruínas ganham claves de sol

e cantamos sádicos e modernos

as nossas velas apagadas não pelo sopro

pelas pontas dos dedos embebidas daquela saliva

desde que não deixe a tampa tomar

o título da crônica de domingo

e caindo sobre ela estejamos

como âncoras a apelidar a alegria a dor

desde que não deixe a tampa

a vida para comprar neosaldina

ela sussurrou em meu ouvido

 

 

 

 

amour

 

 

tenho nas mãos o m

de medo tenho a morte

nas mãos o m e nada

mais como o céu para

tocar com o m das mãos

tocar o céu tocar as mãos

nas mãos e nada mais

mesmo que nada aconteça

tocar as mãos mais e mais

o mundo se abrindo quieto

tenho em minhas mãos

o próprio mundo perdido

no m das mãos da nossa

sorte ou das marcas

sem fim e o seguir

 

 

 

 

praManu

 

 

observar a sua mão enquanto falas

o movimento do seu eixo sobre a dança

de um boxeador entender o porquê

de quando piscas de duas em duas

acelerada e melódica

quando falas sobre a música do rádio

da rua do vento de tudo que parece

saltar aos olhos soltar as mãos

chegas e começas a ensinar ao dia

a não ter pena do que ficou

enquanto moves as mãos

porque falar com as mãos cruzadas

é não dizer o que interessa

quando não cabem sorrisos

lanças as contas para o ar calma

você foi a sorteada deste mês rindo

perfeita dentro dos rumores do orvalho

e nunca ninguém foi tão feliz

perceber com o gole secando

como se a cada cena passada

os créditos ganhassem mais a tela

 

 

 

 

22.11.2016

 

 

se alguém

perguntasse

responderia

depois

ficaria pensando

na relação

de poder

que há

em também não

as ter escrito

 

 

 

 

23.11.2009

 

 

há um segundo e meio

indo e vindo

você lendo Rakushisha

diluindo os rompantes flutuantes

no movimento dos olhos

enquanto volto a faixa

trem das cores: balanço

os dois lados da moeda

um segundo e meio

uma vida inteira

 

 

 

///

 

 

quando voltar falamos um tanto

falamos sobre precisarmos falar

falamos precisamos falar

tudo bem falamos um tanto

minutos seguintes terminando

o dia a noite o único flagrante

possível um pouco antes

uma voz quando a luz  

despencava seu silêncio

a noite sempre tão linda

 

 

 

 

 

"Atravessaremos juntos as grandes espirais

A artéria estendida do silêncio, o vão

O patamar do tempo?"

Hilda Hilst

 

 

não sei se talvez deixarmos as meias sob a árvore

a fazer um coro para o brilho que vem de cima

destacando a nossa capacidade de esquecer

do próprio trânsito de tudo não sei

talvez tenhamos as mãos suadas

a escorregar por entre os dedos

mais uma vez só mais uma

repete estas palavras

com a boca cheia e continua

entre garfadas a balançar a outra

mão a espantar uma ou duas moscas

 

 

 

foi indo e ficou dentro de algum pensamento

capaz de terminar um livro quis assim

via-se na liturgia em suas pálpebras

jamais gozará como antes mas

pensará em sexo indo para o trabalho

mergulhando os pés na água quente

uma ou duas páginas e engole

um pouco do menor para as palavras

ficarem em seus devidos lugares

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Tiago D. Oliveira, de Salvador/BA, professor e pesquisador, estudou Letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Nova de Lisboa (UNL). Tem poemas publicados em blogues, portais, revistas e jornais especializados no Brasil e em Portugal. Publicou os livros de poesia Distraído(Pinaúna, 2014) e Debaixo do vazio (Córrego, 2016). Escreve o blogue Perdendo os Cílios.