A MOÇA NA PRAÇA
E A TRAÇA ENAMORADA
Discretamente
Esgueirando-se aqui e ali
Por onde ninguém passa
Aí vai ela: Maria da Graça, a traça.
Tem uma coisa que a traça adora:
Não pode ver um livro
Que já o devora.
Tadinha da Maria da Graça!
Não sabe o que a aguarda.
Quando estiver prestes a abocanhar
Aquele específico exemplar
Vai se apaixonar sem demora
Pelo garoto triste da história.
Que tragédia para uma traça!
Pobre de Maria da Graça...
Mas espere aí!
O que é mesmo uma traça?
Onde se encontra?
Como se acha?
Por trás das paredes,
Embaixo do piso,
Nas gavetas de roupas
Ou dentro de livros,
Ali é que elas escapam.
São bichinhos bem brilhantes,
Habitam algumas estantes.
Essa tal Maria da Graça
De quem já falamos antes —
Pra você ver!
Até aprendeu a ler.
Numa noite fria e escura,
Ela já entediada
De ficar sem fazer nada
Engatou na leitura
De uma obra-prima
Da literatura russa
E por dias e dias se viu espantada
Com o enredo que avançava.
Mas quando menos previa
Sentiu que o livro se mexia.
Acontece que a moça
Que sempre lia na praça
Também adorava um bom romance
E aquele título ali na estante
Chamou-lhe tanta atenção
Que logo veio parar em suas mãos.
Agora a traça
Maria da Graça
É só ansiedade.
Dentro da bolsa da moça
Sacoleja pela cidade.
Mais exatamente:
Ela cambaleia
Entre o mar de letras
Que se misturam.
Parece um marinheiro
De primeira viagem
Numa grande aventura.
Enquanto que a moça
Noutra coisa não pensa
Senão em chegar logo na praça
E conhecer de uma vez
O tal moço russo,
tão triste, tão sério...
Andando nas ruas
Envolto em mistérios
Numa tarde de forte ventania
A grama valsava
E as folhas caíam.
Bem distraída
A moça se achava
Com os olhos correndo
As linhas das páginas,
Nem reparou
No que se passava:
Havia uma letra que ali não estava.
Na curva delicada de seu colar
O peixinho de prata preso entre os dedos
Deslizava pra lá e pra cá.
Então justo naquele dito capítulo
Enquanto sussurrava cada palavra
Ela conteve um grito
Impressionada
Nem percebeu
O A que ali não estava,
Esse mesmo que engordava
A enorme pança
De Maria da Graça.
E assim os dias passavam...
Numa outra tarde, de muito calor,
A moça retornou à praça,
Ajeitou-se na grama e voltou ao autor
Do tal livro que a dominava.
Lá adiante, avançando outro tanto
Já longe do começo,
Com muito espanto
Em cheio, quase no meio
Da palavra CAMINHO
Outro furo, muito sutil.
Tanto, que a pobre moça nem viu...
Não viu, pois estava
Quase transtornada
Com a história do garoto russo
Que seguia um destino absurdo
Nas ruas de São Petersburgo.
Enquanto os olhos iam em disparada
Seus lábios sorviam um sorvete de nata
E sem nada poder fazer
Por aquele rapaz de feições delicadas
Que agora era todo o seu mundo
Ela deixou escapar um suspiro profundo...
Mas nem se deu pelo M que ali não estava,
Este mesmo que mais engordava
A enorme pança
De Maria da Graça.
E assim os dias passavam...
Numa tarde de frio intenso
Ali mesmo, naquela antiga praça
Já quase no fim do romance
Tomada de grande pavor
Foi que ela bem observou
Havia um espaço vazio na página
Onde devia estar grafada
A palavra HORROR.
Duas letras faltavam:
O R no final e antes dele o O!
Ooooooooooh!!!!
Olhando melhor, ela então percebeu:
No livro, quatro letras faltavam.
Que coisa esquisita!
Que trama macabra!
Teriam elas sido
Engolidas
Digeridas
Devoradas
Estraçalhadas a machadadas
?
Por dentro sentiu uma coisa engraçada
Como podia estar assim enamorada
Por um personagem que um autor criou?
Talvez isso fosse um tipo de A M O R
Foi isso que a moça pensou...
Atravessando a praça
Abraçada ao livro
(Quase esmagando Maria da Graça
que lá dentro também suspirava)
A moça seguia o caminho de casa.
E as quatro letras que ali não estavam
Dentro do coração palpitavam...
[imagens ©simon allan / happy finish] |