©daniele cascone

 

 

 
 

 

 

 

*

 

 

Minha alma é pequena

e minha memória menor ainda.

Não fosse isso estaria mais perto

daquilo que me corrói:

 

o leite derramado.

 

 

 

 

 

 

TRANSFIGURAÇÃO

 

 

Mudas, no papel, as palavras

pronunciadas voam

que nem passarinhos.

 

Será que elas criam ninhos

... nos teus ouvidos?

 

 

 

 

 

 

CORAÇÃO

 

 

No pulso da palavra

Sinto bater

O coração do mundo

 

 

 

 

 

 

A MORTE NA AVENIDA

 

 

O morto na avenida

está livre da sepultura.

 

Não sei se é desaforo

ficar assim estendido

 

no chão. Mas a morte

é a quebra de protocolo,

 

a entrega de uma carta

endereçada ao nada.

 

 

 

 

 

 

HEIDELBERG

 

 

Flutuando

entre o menosprezo

e o desvelo,

esta cidade ressoará.

 

E não será em seu Castelo,

nem em sua ponte medieval.

 

Sítio abençoado

 

Heidelberg ressurge

 

íntegra

inteira

 

no derradeiro encontro

do Verbo com a palavra.

 

 

(Heidelberg/inverno 1992)

 

 

 

 

 

 

CLAMOR

 

 

quero penetrar no silêncio

que ronda as coisas

para saber se você me escuta

 

sei que não adianta bater no tambor

 

você viajou doze horas de avião

e está a mais de 9 mil quilômetros do meu corpo

 

existe um mar imenso

separando nossas vidas e nossas almas.

 

acho que não adianta bater no tambor

 

tenho que me contentar

com esse cinzeiro ou com esse vaso

sem nenhuma flor

 

mas você me escuta?

 

 

 

 

 

 

JANELAS

 

 

Nesta janela aberta

meu olho devassado

meu espírito movediço

 

meu gesto imperfeito.

Nesta janela aberta

minhas celebrações

 

minha província

 

minha referencialidade.

 

Através disso

consagro a travessia:

 

o dever de ir

 

e o devir.

 

 

 

 

 

 

PIETÁ

 

 

Tão longe do meu olhar

fechada em si

e a si mesma devotada

a pedra, na Pietá

adentra o gesto

adensa a face

no apedrar-se da luz

no apiedar-se da pedra

 

 

(Roma/outono 2006)

 

 

 

 

 

 

MOLDURA

 

 

Não se aprende um rosto

contemplando quadros.

O rosto sempre excede

a expressão quadro.

Mesmo quando cede

sua sede de rio

sua sede de água

o rosto incide

a impressão quadro.

Já não falamos moldura

ou outro ornamento

ou outro acessório.

Mas a própria tela

em transbordamento:

aquário seco.

 

 

 

 

 

 

DEDO EM RISTE

 

 

Este poema não diz nada

da mesma forma

que a história não diz tudo.

Língua cortada:

este poema não fala

— falha.

E insiste

— dedo em riste.

 

 

 

 

 

 

A IMPORTÂNCIA DE UM NOME

 

 

Isalina não é nome pronunciável

longe da Vila.

Defronte desta casa

o melhor é calar.

Catar os cacos e recompor os elos

que me prendiam aos teus braços

às tuas tranças, às tuas mãos,

ao teu sorriso.

 

Desapareceste da minha vida

mas não desapareceste de mim.

 

Deixaste um nome e junto dele

uma porção de imagens.

 

Ou será uma poção de imagens?

 

O certo é que quando falo Isalina

Isalina não vem mais. Mas vem

uma longa ausência espiando

sua passagem pela Vila

e pela minha vida.

 

Ela estava no primeiro das coisas:

com seus olhos exatos,

as mãos retas e reticentes,

o corpo grande, inocente.

 

Isalina é território etéreo,

permanência cultivada.

 

É fonte que não foi feita por Bernini.

Mas ainda assim é fonte:

água musical e colorida.

 

Talvez não seja também a Roma negra do Darcy.

 

Mas é certamente a força motriz

da música da minha voz antes da palavra,

água repousando no lago,

lenho queimando, luz no peito

solar, signo indecifrável.

 

No palco della lucce sobram sombras

de tudo aquilo que não existe mais

e teima em existir tão perto

como o parque diante desta moradia nova.

 

Jorge de Lima afirmou: O nome afinal

que importa à essência de um poema?

 

Mais tarde, outro poeta amado

registrou a sua perplexidade:

mas que importa um nome a esta hora

do anoitecer em São Luiz do Maranhão?

 

E eu, poeta bem menor, que nunca passei

pelo fundo do Inferno, nem pelo alto do Purgatório,

que desconheço o Paraíso — celestial ou terrestre,

importo teu nome

para celebrar em sigilo teu contorno inconsútil.

 

Emerges da multidão

mas não visualizo teu vulto.

Sei que não carregas nenhuma oferenda

aos deuses crucificados.

 

Estás viva e muda

diante das três margens do rio

e sabes que a alma

só se lava mesmo é na lama

ou no coração das águas.

 

 

 

 

 

 

¡QUE NO QUIERO VERLA!

 

 

quero que você viaje sempre

e se não quiser voltar — que não volte.

busque outros programas

de preferência algum que seja mais extenso.

e vá visitar os teus museus

e viver nas regiões mais inóspitas:

que tal o Musée du Panthéon National Haïtien?

ou o Museu de Serra Leoa,

em Freetown?

afinal essas viagens

são um imperativo do  trabalho.

e Rodin já dizia: o trabalho é tudo.

sem trabalho as pedras

continuariam pedras

— e os trançados da vida

não estariam aqui

no traço talhado.

o que importa é trabalhar

para transformar nosso olhar

mudar a direção da alma

e viver na concentração do corpo.

não dissipar nada

nem diluir o vinho

nem preservar a esquálida integridade

dos medos e do pouco pão

dividido.

resguardar apenas as funduras desse ser

habitante dos precipícios

e dos despenhadeiros,

neblina da minha alma,

entroncamento de caminhos.

 

não, eu não quero me habituar às tuas partidas

nem às vestimentas cotidianas.

também não quero trajes apertados

nem sininhos no pescoço.

sei que a vida é uma contínua queimação

de etapas,

de imagens

e de clareiras.

Atropelos fazem parte

— e astrosbelos também.

mas quem perde ali

a aliança

não lamenta o fogo

cruzado
nem os colapsos

isolados.

questões sempre postas

nas mesas

nas camas

— e onde a resposta?

perguntas dissolvem-se em soluções

retilíneas.

mas se as retas não existem

e se já não existem os júbilos e as celebrações

o que fazer com essa angústia:

chamar Kierkegaard?

ou afinar os ouvidos para ouvir Holderlin

e a solidão absoluta de Rainer?

claro que a vida não é só proximidade.

encontro

desencontro

reencontro.

faz parte da vida esse capinar sozinho

faz parte da vida esse capinar

faz parte da vida

faz parte

faz

e o que é que eu fiz

diante de você naquela tarde

de desorientadas navegações

bússolas quebradas que retornam

retorcidas

caminhos da minha alma

em agonia

 

(se não fossem os meus erros

se não fossem os teus)

se não fossem

se não

se

não, não há nenhum touro em minha frente.

também não há nenhuma arena em minha memória.

mas por que meu relógio permanece parado

a las cinco en punto de la tarde?

pura coincidência de um verso

que a-tingiu meu universo

de vermelho

vermelho como la sangre de Ignacio

sobre la arena.

ou como tuas unhas pintadas

que eu não quero ver

que eu não quero ver

o aceno de tuas mãos

em mais nenhuma despedida.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Rubens Jardim. Poeta e jornalista paulistano (1946). Publicou poemas em várias antologias, no Brasil e no exterior, e os livros Ultimatum(1966), Espelho Riscado(1978) e Cantares da Paixão (2008).Fez parte da Catequese Poética nos anos 60, participou da 1ª Bienal Internacional de Poesia de Brasília, integra a coleção Poesia Viva do CCSP com a plaquete Fora da Estante(2012)e vem publicando, desde 2011, a série AS MULHERES POETAS... em seu blogue: www.rubensjardim.com.