"garota acidentalmente de vermelho"

 

 

eu tenho há dias uma garota

encalacrada

nas retinas:

 

uma garota

acidentalmente vestida de vermelho

da cabeça aos pés

um rastilho quase invisível

de pólvora

decantando a cada um

de seus passos andaluzos

 

ela é a minha garota

verdadeiramente plutônica

ela tem mais daddy issues do que eu

suas cartas de tarot

são lançadas displicentemente

no fundo da bolsa,

junto com sua nécessaire

de maquiagem

e as chaves de casa

e os planos de uma vida longa

e feliz na medida do possível

— porque feliz feliz ninguém é

não o tempo todo

não como um todo

não por tudo

 

e sobretudo: não porque

 

a garota está acidentamente vestida

de vermelho sangue

ela tem ~acidentalmente~ no peito

um alvo

à prova de setas e tiros

mas a garota está propensa a acidentes

— disseram —

"acidentes" de natureza obscura

como em romances policiais

ou programas de mistério na tv a cabo

 

a garota está acidentalmente vestida de vermelho

ela tem 28 anos e um laudo de necropsia

para decifrar

mas nem a esfinge da medicina forense

ou nenhum oráculo se atreveu a antecipar

sua morte

ou seu salto

 

eu tenho uma garota

acidentalmente

presa às retinas

ela está vestida de vermelho

e isso não é um poema

isso não é uma notícia de jornal

isso é uma elegia:

a garota veste vermelho

 

e não é um acidente.

 

 

 

 

 

 

"missão dama de copas"

 

 

esse, meu bem, é sobre o acaso

que nos pôs aqui

nesse claro concubinato

vendo carnificinas onde não existem

cultivando tempestades domésticas

de estimação

em aquários calefados

a verdade é que acredito na cigana

nas linhas das suas das minhas mãos

e nos gêmeos profetizados — eu & você

o garoto dos cascos

sonhei esta noite que éramos um casal

em pelo menos dois universos paralelos

[o que claramente denota um destino]

 

[o que denota

que o giz

riscado no chão

era mesmo um pacto

de muito muito antes]

mas o fato

é que eu tenho uma coisa com gatos

 é que tenho um nome secreto

que você desconhece

uma tremenda tolice — é claro,

~um nome de dança~

que recebi aos dezessete anos

quando eu fui odalisca

de beira de estrada

numa cidade litorânea

do interior do estado

 

[ e o mistério

que fica mesmo

é como pode uma cidade

ter essa existência dupla:

ser litorânea

e ser interior

ao mesmo

tempo

no mesmo estado]

 

 

 

 

 

 

 

"a morte de katherine mansfield"

 

 

ana c. está farta:

da materialidade embrullhada do signo

da metalinguagem narcísica dos poetas

do texto de espelho em punho

revirando os óculos modernos

 

[ana, quero também

a página

apinhada de abajures

a legião antidiluviana

invadindo

pelas margens

mas sem

ocupar efetivamente

o coração

do texto]

 

mas ana c. deseja

sobretudo

esse enamoramento

letal

por

abismos

anacrônicos

 

e seu erro planejado de cálculo:

   ancoragem   ancorar ancorar

  ancorar um navio no meio-fio

[o navio encalacrado no espaço]

 

          ****************

 

ou uma sequência interrupta

de naufrágios?

 

mas há que se considerar

a pausa perigosa

nos pulmões

 

a pausa perigosa nos pulmões

de katherine m.

 

como é possível, ana

     traduzir bliss

se o estado de graça

há de desembocar

sempre

numa pausa?

 

tu trocas

a  beleza desmedida

da 33a poética

[o desejo secreto

do poema]

pela  serenidade

de quartzo

como têm

as saudáveis mulheres campestres

de mansfield com seus rostos lunares

seus braços fortes

o busto substancial

seus rebanhos de ovelha

[as mulheres de mansfield

prontas para a colheita]

 

as mulheres de mansfield

 

e a pausa perigosa

nos pulmões

 

 

 

 

 

"paisagem com mulher ao fundo"

 

 

não ouso mesmo te revelar

do desejo insincero de ser outra:

pele e vísceras singradas,

sopro, soluço

— uma outra.

não sei mais o que esperar

do risco

e eu queria mesmo voltar a ser aquela

que sabe usar o silêncio como uma adaga

de cinco pontas e 22 cartas de baralho —

a mesma que você embebedou tantas e tantas vezes

com o consentimento das pessoas perigosamente enamoradas,

de pernas cruzadas, unhas precocemente descascadas,

cabelos em desalinho, bochechas rosadas,

essa outra.

 

porque, percebe, em torno de mim tudo sempre gritou 'provinciano'

em neon, piscando, mesmo que eu soubesse ser elegante

como uma concubina chinesa com ascendente em imperatriz-to-be

embora eu ainda saiba usar de sofisticação a meu favor como se usa

uma nuvem de perfume caro com a naturalidade letal

que neutraliza os sapatos gastos comprados a prazo

 

mas não esconde uma vergonha íntima tão antiga

que já não se encontra nem a matriz

e tampouco o fim

 

e o que você chama de paisagem, meu amor

eu chamo mesmo de uma bela cicatriz

 

causada por outros e inúmeros impactos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

"casamento entre céu e inferno"

 

 

não há diabo de centelha

que bruxuleie trêmula

nesta pequena órbita

de micropeixes

 

sombras ~

é o que temos

espalhado feito moluscos

que tingem

sua rota de fuga ao permitir-se

uma escolha inexata

de preto

 

porque o meu amor

tem a apreensão de um tigre

na antecipação do salto

meu amor

é feito de naufrágio

[ entre peito aberto

e âncoras excessivamente

precoces ]

o que há de se fazer se tenho

velas içadas nos pulmões

minivulcões eriçados nos dedos

como cavalos marinhos

sentidos

 

 

asas — um destino

de cada

vez

 

 

 

 

 

"evil twin"

 

 

me assusta a capacidade não domesticada

que tens de acender outros olhos; a parte

escura da tua língua estala ao meu lado

e o corpo relembra dolorido

a forma dos teus cascos

no dorso encoberto dos novilhos.

esse núcleo duro que te consiste

me aliena em diferentes criaturinhas afônicas

e eu cato tuas guimbas para que não sofras

represálias e não te possuo, não te possuo

nem um pouco, sequer conheço a origem

do súbito suor nas tuas têmporas e os gestos

agudamente cirúrgicos — o aguilhão no teu discurso

apontando para mim.

como computar o que se subtrai? — sem que

o apagamento encubra os olhos, a brasa docilizada

cessa e não te possuo, não te possuo sequer

na memória dos dedos que seguram molhados

o copo de vodca no início dos tempos e o cigarro

que não se fuma nunca: esses pulmões que mal

se abriram gelados para o primeiro fôlego.

 

 

 

 

 

 

 

"breve nota sobre o fogo"

 

 

esta noite, torno-me

antiga no mundo.

invoco o teu nome,

enxame de quadris

 

 

estreitos,

mar no início, fim e meio

em minha     caixa miúda

povoada  de emails.

essa pequena conjuração

ao teu nome de fogo:

contemporânea,  con

tudo  milenar

que te traz    de novo

como aparição

altissonante

holograma de carne

que vai de um ponto

ao outro,

do meu primeiro   sonho

à cosmogonia

do  s o m   e do  monstro.

nesta noite,

nada se perde,

aspiram-se homens

tão perdidos

que criam

pátrias nocivas

em si mesmos;

que cres c e m     guelras

sob a pele

e bocas em   seus dorsos;

que sobrevivem

aos francos  tropeços

e cantam       por aí.

 

imploro por uma  clave

de sol

:  um dreno  prodigioso

para   secar

permanente  mente

a minha respiração

— um sopro.

 

esta noite, torno-me

um pouco

a parte de você

que tenho  sido,

que tem sorvido

o sexo  oculto,

mas intacto

chamuscado

em  lótus aberto

direto

da atmosfera

silenciosa

para  tuas mãos.

 

 

 

 

 

 

"manifesto dos coelhos na cornualha"

 

 

quando saímos à noite

eu: um coelho selvagem

em cruzeiro atlântico

você: um surfista nativo

de uma cornualha rochosa

em suma em suma

~ não há habitat natural

possível para nosotros ~

 

 

            *********

 

e tenho me perguntado

a respeito da memória

que restou dessa luz infeccionada

a emitir padrões na pista de dança

como algoritmos infinitos

de perversidade estroboscópica

— pequenos eventos de led

a percorrer outros corpos absortos

em   batidas   binárias

e localizo no tempo enquanto

ensaiávamos alguns passos de dança

essa microvilosidade luminosa

de um único ponto

que insiste

em mirar o teu peito feito seta latejante

[ homicida — eu tenho certeza ]

como quando

um primeiro objeto perfurante

acertou em cheio um alvo

e

viu

escorrer

um filete

crescente

de

sangue

 

eis que retornamos finalmente

ao largo fumegante

onde nunca

nunca mesmo

caiu nenhum floco de neve

 

saiba portanto

que eu dedico

esta grave infâmia :

a todos os cômodos

que falham em caber

dentro de uma casa

a todos os móveis

uranianos i n d i s c i p l i n a d o s

que se rebelam diante

da geometria incansável

de paredes

criando arestas

e ilhas de resistências

no assoalho

formando ângulos indivisíveis

e  arcos    e  arcos        e arcos

e ocupações inabitáveis

dentro de todo e qualquer

confortável seio doméstico

 

é preciso situar

o verdadeiro perigo

justo onde

ele parece autorizado

a provocar pequenos

acidentes    por pouco

imperceptíveis

desastres calculados

na parte hidráulica

da cicatriz

para envelhecer  o  poema

onde ele quase margeia

a membrana

do tímpano

e a impenetrabilidade

da pedra

 

 

 

 

 

"demônio-meridiano"

 

 

beibe, meu fuso-horário

está errado, e ainda tenho

neve embargando os trilhos.

adormeço quando estás

acordando e sinto a vida

despertar enquanto pendem

pesadas suas pestanas de

índio sulamericano. quem sabe

o nosso moderno feitiço de áquila

urbano não encara um final melhor

do que esse daguerreótipo de euforia?

meu fuso-horário em permanente

descompasso, as estações

por aqui estão alinhadas com outros

hemisférios: a neve doce afunilando

os trilhos e um jet lag amoroso que

de tão incurável, fez-se congênito, pior:

hereditário. deixei passar o último

comboio de retorno solar. fui comunicada

que a translação tem coberto umas quatro,

cinco ruas apenas, os bairros arredores e o bairro

peixoto.          [quando é que foi que inverti

os meridianos?]

beibe, tem algo errado com o meu fuso-horário,

eu como nos horários certos e durmo como

um anjo: oito horas a invejar os bebês contemporâneos

com TDAH. programo relógios para me darem sus-

tos em momentos diversos, mas tenho intervalos

amnésicos e sei que ando por aí, desacordada,

praguejando em línguas mortas. tem um problema

com o meu fuso-horário, um problema grave.

tenho milhas geográficas e uma vasta quilometragem

nos sapatos: nítida certeza de um cansaço ancestral

de eras e círculos fechados.

beibe. meu. fuso-horário.

está. quebrado.

eu salto continentes em cantorias, atravesso oceanos

a nado borboleta, mas permaneço aqui

na decalagem, esperando o resto do mundo acordar.

 

 

 

 

 

"canção para salvar um morcego"

 

 

essa é para você,

que permanece

em revoada, debatendo-se

no telhado, porque sabe

[e eu sei] que voou demasiado

alto. tenho um poema cheio

de estrelas fixas e nenhuma

ideia de como seguir a vida.

você equilibra-se a custo

na crista, como um jovem

netuno precocemente envelhecido

e nós sabemos que isso é mais um

dos seus prodígios. você voa alto,

e tem mar no início e eu estou à procura

do teu poema fundamental, da ideia que

brilhe no escuro, que salve tuas asas de um

arremate prematuro, trágico. talvez eu precise

de ajuda. tenho escrito como sonâmbula, possuída

de uma pequena loucura, com alprazolam, sob efeito

de uma engrenagem que é tua. estou à procura

da ideia original, o experimento magnético que

polarizou nossas cargas tão explosivas e

essa é para você, que bate de encontro ao telhado,

porque voou demasiadamente alto. porque o teu

nome tem mar no início e enquanto decidimos,

costuro uma saia de bailarina e pinto as unhas de

vermelho, porque isso sempre é um alento e eu

prometo que a grande ideia virá, como virão

as estrelas no meu antebraço e os naipes de baralho

nos pulsos.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Rita Isadora Pessoa nasceu no Rio de Janeiro, em 1984, é graduada em Psicologia e não graduada em Estudos de Mídia. Estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e é, atualmente, doutoranda em Literatura Comparada (UFF), onde estuda o duplo em sua modalidade animal. Trabalha como tradutora, revisora, astróloga e taróloga. Seu primeiro livro de poesia — a vida nos vulcões — foi lançado em agosto de 2016 pela Editora Oito e Meio.