©thomas leuthard

 

 

 
 

 

 

 

te escrevo logo

 

 

nos dias como hoje também penso

na distância, e mais do que isso

na ausência, por isso quando chegar

em casa a primeira coisa que vou fazer

depois de falar com os gatos é te escrever

ainda não sei bem o que, talvez sobre como parei

de beber e de tomar remédios, tu vai ficar

alegre, sim, eu espero, e agora enxergo as coisas

com mais clareza, sim, mas também com mais melancolia,

melancolia em tudo, eu vejo

onde antes era tristeza agora é só ardência

descobri que as coisas ardem, mas não necessariamente ferem

quando o sol se põe tudo parece fazer sentido

pena ninguém enxergar como nós, eu penso,

porque às vezes tenho vontade de chorar

tu sabe, eu sempre disse isso, eu precisava encontrar

pelo menos outra pessoa pra ouvir essas bobagens

mas tu sabe que procurar é um hábito estéril

acho que numa fábula Esopo disse que o Bem tentou

se inserir no meio dos Maus, e portanto foi condenado a

sempre andar sozinho, é por isso que

o Bem demora tanto pra chegar, porque ele vai

de pessoa em pessoa, e eu espero

espero ávido por ele, por isso

te escrevo logo, que a ausência é uma

das ardências que dói mais

 

 

 

 

 

 

§

 

 

afago tua cabeça como a de um animal

sublime. te ajeita numa posição impraticável

mesmo assim te recosta no meu ombro

seguramente, com os ouvidos de aço,

escuta o meu coração de areia, intempestivo e imóvel

bipolar, como diagnosticado, mas nada mais

te espanta. o carinho, por ora, é uma solução

e não duvidaremos disso.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

gosto de pensar que as aves

são feitas de madeira e cada vez

que alguma bate nos vidros que

rodeiam a casa de minha vó

eu possa ir lá colar suas farpas

 

uma pena suas asas

serem feitas de uma matéria

que costura a brisa

coisa que eu nunca aprendi

a construir

 

 

 

 

 

 

§

 

 

enquanto minha mãe dirigia o carro

contava como quase foi fechada

por um caminhão na descida da serra

eu sentia a brisa da janela e viajava

dentro da viagem

 

desfocava o olhar e via as luzes

contornadas de um jeito diferente

dava vertigem

e eu tinha vontade de rir

 

eu não sabia da morte

a não ser entre os animais

pequenos

e isso não me dizia nada.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

tenho pensado em comprar um guarda-chuva

 

tenho pensado em comprar um guarda-chuva

há três semanas que você foi embora

e desde então não para de chover

você sabe que eu me abrigo nas marquises

e que não tenho pressa em esperar a chuva passar

mas há três semanas a chuva não cessa

 

você sabe que não sei usar guarda-chuva, minhas

mãos não o comportam, não sei abrir,

nem fechar um guarda-chuva

algumas pessoas não sabem desenhar ou

costurar blusões; eu não sei

manusear um guarda-chuva

 

mesmo assim, tenho pensado

todos os dias quando tomo a rua

e vejo todas as pessoas tão certas de que voltarão

para casa o menos molhadas possível

e que encontrarão alguém para

perguntar-lhes "se molhou?" ou

"pegou chuva?"

 

tenho pensado em comprar um guarda-chuva

porque nunca se sabe quando

você vai voltar

 

 

 

 

 

 

§

 

 

me acostumei com teu cheiro dentro de mim

com tua vontade de beber qualquer coisa depois de fumar

me acostumei com tuas calcinhas estendidas no banheiro

tuas chaves balançando na porta ao sair

 

e quando tu acorda com pressa e não consegue

vestir a roupa direito

e fica o dia inteiro tentando se ajeitar

sem nunca saber o que tá errado

 

impossível determinar em uma linha

quando eu me acostumei contigo habitando

esses espaços metafísicos que eu prefiro não mexer

 

impossível determinar em que ponto tu vive

em que ponto só eu te faço respirar

 

me acostumei a te procurar —

em qualquer avenida movimentada levanto a cabeça —

e procuro com desespero o teu rosto no meio

da Oswaldo Aranha

 

 

 

 

 

 

§

 

 

apago um cigarro

no braço

dói

 

nada supera

porém

a dor

de ser apagado

da memória

 

apago arquivos

como quem deixa

a lata de lixo engolir

utensílios

 

te guardo numa foto

que nunca tirei

 

 

 

 

 

 

§

 

 

quando você encontra o amor

da sua vida não toca

nenhum jazz ao fundo

woody allen não comanda os

seus atos e muito menos seus diálogos

você pode vomitar a qualquer momento

ou tropeçar e derrubar seu latão

de cerveja bem no meio do decote do seu amor

 

quando você encontra o amor

você é só mais um babaca na multidão

que acha que é especial e que a vida

é realmente prazerosa e alegre

você não consegue se ver de fora

mas eu vejo e tenho certeza de que

em algum momento

alguém vai baixar suas calças

e rir de você

provavelmente esse alguém seja eu

 

 

 

 

 

 

§

 

 

se a ciência explicasse tudo

seria um nobre desfecho

para a poesia

 

notinhas em jornais

diriam: a poesia está morta.

todos já sabíamos

 

em hipótese seria

novidade: os poetas já falidos

com seus versos embaixo dos braços

 

não se espantariam.

eles, tirado o peso de codificar o mundo

no outro dia

 

bendizendo os cientistas,

distribuiriam seus currículos

em companhia.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

tenho medo

e por isso faço confissões

subliminares

 

se te abraço, quero,

por exemplo, correr contigo

por arrabaldes desertos

até dizermos chega

 

se te olho, por muito

tempo, a minha vontade

é a de te levar na garupa

numa noite tranquila

 

se, por vezes, esquivo

os olhos, porque também

sou tímido, mas te ouço e

compreendo o que dizes,

se te encaro dessa maneira,

quero te olhar mais, até

tua beleza ficar sem sentido,

como uma palavra repetida

muitas vezes.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

distante, com um copo na mão

te percebes como um único solitário

nessa plêiade de concreto, não precisas

de espelho para enxergar as veias que

correm por tua testa ou teu olhar opaco

tua consciência te projeta muito mais

nítido do que és. divisando entre as pessoas

vais com o passo lento ao banheiro.

aqui, não podes fumar. vê teu rosto e

parece pálido. a única opção é ir embora.

mas ir embora é sair da cabine, atravessar

uma longa sala de espreita, ouvir alguns

ruídos e por fim ganhar a rua.

mas esse ir embora é pífio para ti.

o que tu desejas é um ir embora ainda

inacessível.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Rafael Iotti. Poeta, nasceu em 1992, em Porto Alegre/RS.