©laura makabresku

 

 

 
 

 

 

 

§

 

 

última pétala de junho

descanso

para recompor os pés

soltar os dedos nos fios

perdidos pelos que seguem

o suor escorre transpassa

engorda a madeira

azulejos espelhos manchados

alinhados enfeites azuis

emputecem o teto da sala

inspiro expiro espanto

com um beijo

a mudez do poema

 

na cozinha

descamo cores lágrimas espinhas

lavo frutas da época.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

ele delimita demoras

mantenho firmes os pontos as curvas

todas as partículas suspensas

a lágrima pronta

 

os dentes rentes à porta

amorosamente amolecidos

pela chuva

 

um único lugar várias bocas

sobre o lençol

a fuligem o emaranhado cardíaco

intuem um movimento de cura —

 

sentido úmido estreito

quase infinito como se último

amor.

 

 

 

 

 

 

entrega

 

 

comunicar a plena úmida forma

desarmar a mão que configura a linha

os meios a fratura exposta

munida de efeitos e reflexos

 

extrair o líquido o som o húmus

desalinhar sobre o tecido o corpo

o incomunicante denso verbo tempo:

 

desconhecido umbral guarnecido de horas.

 

 

 

 

 

 

descobrimento

 

 

manter o olhar à beira

de um deslizamento

 

um medo elástico de beber

resignadamente

o peito inteiro —

esse mar de pássaros

 

pender a voz sobre tantos

saber que o voo é corpo

que não se sustenta.

 

 

 

 

 

 

ócio

 

 

céus pousados nos ombros

sais vários temperando o rosto

calando as chuvas

meus ais domingos

antigos cansaços

todos espremidos

no canto da sala

decompondo-se em

tácitos azuis

desenrolo o dia

cotovelos na janela

queimados de sol

e esquecimento:

um fio de cinza

quase beija meu corpo.

 

 

 

 

 

 

infiltração

 

 

denso

meu corpo sintetiza

o absurdo

avoluma-se

 

um filete de mundo

chora irrompe

o centro das mãos

desalinha rio

parapeito beco

encontro

estrada adentro:

 

aceno

pra desaguar a superfície.

 

 

 

 

 

 

bom dia

 

 

amor

é fundo o corpo

e as solidões se debatem

minha língua sem margens

pouca de esguelha

envolve só um lado

da cama

 

produzo

uma mistura soluçada

de sangue lágrimas

e cansaços

 

morro

mas não te acordo.

 

 

 

 

 

 

blue

 

 

misturado às nuvens

um bom dia

para esbarrar nas coisas

reconfigurar as coisas

cheirar todas as coisas

tangê-las

descobrir o hálito

deixado na cômoda

sobre o livro

a marca do copo vazio —

minha sede morta

 

entre as pernas

tuas mãos sujas de tinta.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

mergulhar a face

dissolver o assombro

romper figuras comunicar

olhos ossos ouvidos

soltos sobre o líquido

um pouco mais de cuidado

tocar fundo tocar

pés inabitados sentidos

destilar o choro regressar

 

rente à vidraça

o corpo dentro do corpo

não falha.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

tenho esse olhar

voltado para o norte

centelha à procura

sinal ponte e fuga

 

um oráculo sem origens

retalhando-me o ventre

dizendo seus anônimos

mil corpos mil estrelas

fraturando os vãos as salas

os continentes as esferas

 

hemisfério irrestrito

sorvendo o sal a nódoa a borda

o ar pacífico das línguas:

 

vem

que ainda é doce

amor.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

nada sei

da ausência antes do espaço

dos dedos que não se firmam

 

dissolvo silenciosas pontes

a imagem a fronteira teus braços

dos olhos o azul reincidente

que atravessa o botão a fina pele

a ferida que nomeia o poema

à margem do ato

hidrato os passos de antes

mantenho a fruta acesa:

 

não resisto à palavra que não se fixa —

essa matéria sempre doce.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

te encontrar

amor

devolver o absurdo à palavra sempre

corromper os pelos os cílios o toque

 

seguimos agora maculados sob as árvores

à sombra dos seixos dispersos

entre o ponteiro e o orvalho

 

abaixo

escadas pontes esquinas

acendem uma cidade sem nome

 

por sorte não temos saída

por sorte não quebramos.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Priscila Rôde nasceu em Salvador/BA, em 02 de maio de 1991. Escreve no blogue Mar íntimo. É autora do livro Para que fiques, publicado pela Editora Penalux, em 2012. Tem poemas publicados na revista Samizdat, revista Capitolina Cutural, LiteraturaBr, Jornal Relevo e algumas revistas digitais. Participou da organização da antologia Crônicas de um amor crônico, publicada pela Editora Penalux/2015.