©brossa | 1989

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

Com o título "Literatura digestiva", José Castello publicou no "Estado de S.Paulo" (27/12/2015) artigo em que analisa a mediocridade da produção literária do Brasil na atualidade. Em resumo, diz o crítico que o que se tem hoje é "literatura para vender", pautada na "padronização" com "as vantagens da repetição" e "um evidente desprezo pela diferença". Acrescenta Castello que "essa literatura" se baseia "pelo desejo de agradar e de não errar", pois o autor hodierno "não se interessa mais pela dissonância, pelo risco", tudo escrito conforme "a influência declarada da linguagem ligeira e bruta da internet", donde os jovens escritores se chamarem agora de "produtores de textos".

Diz ainda que hoje há, na literatura, "uma falta de direção", quando a criação literária é "uma terra de ninguém", com modismos da web e "desabafos ligeiros" numa "psicologia rasteira" importando "os pequenos dramas amorosos e as experiências radicais" "sem maiores compromissos" e com "lucros de superfície" sob a influência "do mundo das celebridades". Conclui o crítico haver nessa literatura — prosa e verso — a sensação do "está tudo bem", "um evidente desinteresse pelo trabalho de linguagem e pelos exercícios experimentais." Com um "modelo à ausência de complicação e objetividade que desenham o ideal das cartas comerciais", pois agora "escreve-se para dizer alguma coisa, e isso basta".

 

O avesso da mediocridade

 

O contrário de tudo isso faz o jovem poeta itapecericano João Evangelista, em sua estreia com o livro Divertimento em fá menor. O poeta é, com certeza, o avesso do medíocre que grassa a produção poética nacional. Para começar ele tem consciência crítica do seu ofício e o honra com um show de criatividade mediante compromisso latente com a linguagem.

Isso significa que ele conhece bem as figuras de linguagem e os meandros complexos da poética, o que pulsa em seus poemas com o frescor da inovação. João Evangelista faz o novo, não novamente. E o faz com o compromisso épico de escrever para sua época, com referenciais que denotam o pluralismo cultural de hoje. Essa intenção precípua tem em sua tessitura orgânica o conhecimento teórico da poesia, donde seus textos serem ricos de releituras e de experimentações com a palavra.

O livro é resultado de quem lê muito e pensa com inteligência conteúdos de naturezas diversas como um "empório de humanidades" e um "glossário de rabiscos" que justificam uma linguagem inventiva, nova, envolvente, universal.

Do concreto ao discursivo, de releituras a ousadias inteligentes, da lírica a uma historicidade crítica pós-moderna, Divertimento em fá menor é uma gratíssima boa surpresa poética, livro que excede em qualidade, estreia brilhantemente fulminante contra a mediocridade que perpassa a maior parte da produção contemporânea brasileira. João Evangelista começa sua luterária dando bom exemplo, com uma dicção madura e própria, pronto para surpreender leitores exigentes.

Suas frequentes incursões semântico-linguísticas, aliadas a uma inventiva úbere de resultados fartos de analogias autorizam uma leitura enriquecedora, seja através das concreções ou seja pelo texto escorreito em que predomina a discursividade logopeica. O livro é por tudo isso exceção no regime produtivo atual, dialogando com um aprendizado muito bem assimilado e resolvido, que permite inclusive ao autor alçar caminho próprio com absoluta segurança.

 

Contato com o poeta

evangelista.joao78@gmail.com

www.hibiscometodo.wordpress.com

 

 

 

©felipe loreto

 

 

O que têm em comum Jesus Cristo, Karl Marx, Dom Pedro II, Ulisses e Lula? A barba. Pelos na cara denotam história, motivos, identidade, expõem o instinto animal, estabelecem conceitos sociais. Houve épocas em que a barba serviu para enfeitar a cara de terroristas ou hippies velhos, mas antes disso representou inteligência, status e poder. Na Grécia antiga era associada à sabedoria, vide os filósofos, por exemplo. Na antiga civilização romana ela dava status político. Dos 7 anões, somente Dunga tem a face lisa. A mulher com pelos faciais era considerada bruxa.

Os anos 90 baniram barba e bigode e decretaram a hegemonia da "cara limpa". Recentemente, os atores George Clooney, Sean Connery, Tom Cruise, Brad Pitt, Leonardo di Caprio, José Mayer, e os escritores Tolstói, Salman Rushdie, entre outros, são vistos ostentando barba. Dessa preferência dos famosos veio o modismo da barba com seus mais variados tipos, como a short boxed beard, bem feita e alinhada, a full beard, barba cheia, a ducktail, adaptada, e a stubble beard, barba rala. William Shakespeare na peça Muito barulho por nada diz: "Aquele que tem barba é mais do que um jovem, e aquele que não tem barba é menos do que um homem". Em 1859, o inglês James Ward escreveu "A defesa da barba" com 18 razões por que um homem deve deixar a barba crescer, a não ser que fosse ele indiferente ao fato de ofender a Deus e ao bom gosto. Os homens frequentemente faziam juramentos ou promessas por suas barbas. Um fio de barba ou do bigode já serviu de aval para negócios entre os homens e comprovação de honradez. Houve época e lugares em que raspar a barba era um símbolo de desgraça. Uma guerra foi declarada por causa da barba, em conflito que envolveu Hanum, filho de Naás, e Davi, como relata Samuel, 10:1-7. Ter o rosto barbeado e liso era marca de ser um escravo e servo de outro homem. Conhecia-se se um homem era pagão ou cristão pelo corte de sua barba. Na Bíblia, a barba representava vida, liberdade e dedicação a Deus e significava as Suas bençãos sobre Seu povo. Antigamente a barba era tirada somente durante o luto ou uma calamidade.

Deus é retratado de barba e esta representa vida para Deus. Nos tempos bíblicos beijar a barba era um ato de amizade, devoção e respeito. O dístico "pelas barbas do profeta" pode ter vindo desse hábito. Basta dizer que Judas traiu Cristo com um beijo na face. E o traidor é quase sempre caracterizado em pinturas como glabro. Os hebreus viam a barba como a "glória e orgulho do homem". A barba distinguia a dignidade e a honra, por isso a palavra para "ancião" em hebraico é "zaken", que se refere a barbudo.

Muitos dos antigos acreditavam e ensinavam que Deus deu ao homem a barba para distingui-lo da mulher, o que justifica, então, ser um erro raspá-la. Entre os cristãos primitivos, Clemente de Alexandria provavelmente escreveu mais sobre os males de raspar a barba, dizendo que nunca era permissível raspá-la. Escreveu também que "procurar beleza na face lisa e sem pelos é pura efeminação". Diz este autor: "Ao homem Deus adornou como o leão, com uma barba". Assim, a barba tornou-se a marca do homem, sendo ela mais antiga do que Eva e, portanto, seria uma atitude ímpia profanar o símbolo da masculinidade — os pelos, acrescenta Clemente.

Os egípcios não gostavam dos pelos faciais. Fora do contexto religioso, a barba na arte egípcia indica a nacionalidade estrangeira de um indivíduo. Os inimigos do antigo Egito são sempre retratados com barba, donde a popularidade da prática de se barbear. Na mitologia greco-romana toda gravura de um falso deus tem a face lisa. O 4º Concílio de Cartago, em 398, decretou: "O clérigo não deixará seu cabelo crescer, nem removerá sua barba".

O certo é que na natureza humana masculina barba acaba sendo muito mais do que um mero adorno do rosto. Nirlando Beirão, da revista "Brasileiros", é de opinião que hoje em dia os fios do rosto têm compromisso apenas com uma coisa: a vaidade. Modismo ou não, pelo que representou na história, é sempre bom deixar a barba de molho.

 

 

 

 

 

William Shakespeare trabalhou como escrivão, jardineiro, cocheiro, marinheiro, tipógrafo e agiota, além de ter sido um tremendo pão duro. Ele mexia também com negócios imobiliários, emprestava dinheiro a juros e processava as pessoas para receber de volta. Lord Byron, o libertino Don Juan mais festejado da Europa, além de gostar de mulheres casadas e dos jovens rapazes, adorava animais. Sua coleção incluía cavalos, gansos, texugo, raposa, papagaio, águia, corvo, falcão, crocodilo, pavões, galinhas d'angola e uma garça-azul egípcia. Quando estudante, em Cambridge, Byron manteve um filhote de urso em seu alojamento e numa carta ele chegou a ponto de sugerir que o seu companheiro urso se candidatasse a uma bolsa de estudos. Honoré de Balzac era um robusto glutão, tinha comportamento vulgar, comia direto na faca. Certa vez, quando jantava num restaurante em Paris, ele devorou uma dúzia de filés, um pato com nabos, um linguado-da-normandia, duas perdizes e mais de cem ostras. Quando criança, Edgar Allan Poe foi literalmente educado em um cemitério; aprendeu matemática somando e subtraindo as datas gravadas nos túmulos. As irmãs Brontë moravam numa casa cercada em três lados por cemitérios. Henry David Thoreau, "pai" americano da desobediência civil, raramente tomava banho, nunca penteava os cabelos desalinhados e se vestia com trapos; nada disso o impediu de inventar o pão de uvas passas e a lapiseira. Quando não estava escrevendo poesia, como seu livro Flores de relva, ou criando rapsódias sobre o seu amor por Abraham Lincoln, Walt Whitman refestelava-se durante horas na banheira, espirrando água por toda parte e cantando o hino nacional norte-americano.

Leon Tolstói era considerado aluno medíocre, passou a maior parte da vida contraindo doenças venéreas, era totalmente obcecado pela morte, gerou 13 filhos, sofria, entre outras doenças, de reumatismo, enterite, dores de dente, malária, flebite, febre tifóide e teve uma série de derrames. Depois de renunciar ao sexo, à bebida, ao tabaco e à carne, passou a dedicar-se a uma vida de anarquismo cristão. Lewis Carroll era tímido e gaguejante, fotógrafo e um fértil criador de neologismos. Inventou o triciclo e um sistema mnemônico para lembrar nomes e datas, conhecido como Memoria Technica. Mark Twain, autor entre outros de As aventuras de Huckleberry Finn, certa vez proferiu uma palestra inteira sobre o ato de expelir puns diante de uma plateia que incluía a rainha Elizabeth I. Em 1909, ele previu corretamente que iria morrer quando o cometa Halley retornasse. Dito e feito. O cometa retornou em abril de 1910 e Twain morreu no dia seguinte. Oscar Wilde não era nada atraente, não obstante ter sido um espirituoso lendário: o que mais horrorizava em sua aparência eram os dentes, escuros e fétidos, por causa do tratamento com mercúrio a que foi submetido para aliviar os sintomas da sífilis, que ele contraiu no final da adolescência. Quando conversava sempre cobria a boca com a mão, para evitar que os dentes apodrecidos causassem nojo em seu interlocutor. Apesar de homossexual, casou-se com uma mulher e na semana que antecedeu seu casamento ele ficou obcecado com os detalhes finais do vestido da sua noiva. O famoso criador de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, espiritualista profundo, acreditava que pequenas fadas com asas eram reais e poderiam ser encontradas se se olhasse para elas com a força necessária. H. G. Wells, autor de A máquina do tempo, foi  pioneiro em criar os primeiros jogos de guerra em miniatura, mesmo afirmando ele ser um pacifista. Jack London bebia uma garrafa de uísque por dia. E aprontava todas. Virginia Woolf era maníaco-depressiva; certa vez ficou tagarelando por 48 horas seguidas; mesmo tendo sido casada, foi uma das pioneiras em assumir o lesbianismo e tinha grande interesse no suicídio: matou-se por afogamento e seu corpo, carregado de pedras para afundar mais rápido e não emergir, foi encontrado três semanas depois no Rio Ouse. Tinha um hábito incomum: só escrevia em pé. James Joyce, para muitos o maior escritor do mundo de todos os tempos, escrevia cartas eróticas à sua amante Nora Barnacle, expressando seu desejo de ser espancado, açoitado e maltratado por ela. Franz Kafka frequentava um spa para nudistas, mas recusava-se a tirar as calças. Agatha Christie tinha uma rara doença chamada disgrafia, que a incapacitava de escrever de maneira legível, razão de seus romances todos ter sido ditados. William Faulkner trabalhou como agente postal até perder o emprego depois de ser pego diversas vezes jogando correspondências no lixo. Por ter experimentado mescalina, Sartre sofreu com bizarras alucinações por quase um ano. J. D. Salinger, autor de O apanhador no campo de centeio, bebia a própria urina pelos seus supostos benefícios medicinais.

 

 

 

 

 

Quando se aposentou é que descobriu que gostava de rotina. Ia dar aula e era sempre tudo muito igual. A rotina faz bem, não causa estranhamento, é companheira da ordem, mantém a harmonia, tem resultados previsíveis e faz bem à saúde, dizia. E completava: Quando preciso variar, faço a mesma coisa de modo diferente e assim justifico minha máxima ousadia. A vantagem é que a rotina não tem arroubos, é tudo muito light, cheia de experiência e segurança. Quem varia muito acaba ficando sem chão, sem referência, sem história. O novo é sempre carregado de surpresas e nem sempre, porém, o que é inusitado é o melhor ou recomendável. A rotina é a mão e a luva. E já disse um filósofo: o homem pensa porque tem mãos. Pronto. A rotina tem a ver com a ordem, o equilíbrio, o saber-fazer, o respeito à integridade, mas não com a mesmice, a repetição mecânica, a pobreza de espírito, a chatice de ser idêntico naquilo que exige criatividade ou jogo de cintura.

Então ele começou a observar o que era igual em dias diferentes. Primeiro ele fazia a barba. Era também o dia de trocar toda a roupa do corpo e de calçar os sapatos confortáveis, como se feitos para quem dava aula em pé. Depois conferia o material que ia lecionar, limpava bem os óculos, vestia uma blusa de lã, se o tempo era frio. Se chovia, levava um guarda-chuva. Despedia-se como se saísse para uma viagem, desejando que Deus ficasse com os familiares. Não dispensava nunca a proteção divina e, ainda assim, insistia com os seus para manter a porta da rua à chave.

Nunca alterava o itinerário até à escola, tampouco o seu horário de saída. De posse de uma pasta preta cheia de livros e papeis, ele quase que pisava os mesmos espaços públicos. Por isso, conferia sempre, nos estragos das calçadas, os mapas da Itália com seu formato de bota; dos Estados Unidos com sua forma retangular comprida, caminhos de rios e até perfis de animais e gente desenhados pelo tempo nos passeios antigos. Um asfalto rachado, uma árvore torta, um gato riscando o ar rumo a um telhado cinza.

E já sabia que impreterivelmente se encontraria com o dono do cinema, logo ali no meio da avenida, agora com as luzes acesas e repleta de alunos voltando para casa ou indo para escolas. Porque também o aprendizado é uma rotina.

Em seguida se encontraria, pela ordem, com a moça da farmácia (descendo), com a dona da loja Romeu & Julieta (subindo), com um colega do cursinho noturno (entrando no Prepara), com o cara da sanduicheria (abrindo), com o ronda da construção quase pronta (a postos), com dois ou três cachorros (fuçando lixo). A alegria da surpresa estava em de vez em quando se encontrar com alguém que não via há tempos, trocar rotineiras palavras (Está sumido(a)! Bem de saúde? Apareça lá em casa. Vai com Deus. Abraço.), e seguir em frente com a convicção de não ser um desconhecido.

Na descida, ele lançava olhares cheirosos para o que ficou da pastelaria do Pastel, para o Recanto da Empada, para a limpeza do açougue escorrendo carne nas narinas, para o vendedor de churrasquinho na ponte da Rua do Sapo, para o odor de eucalipto vindo da academia e o cheiro transeunte do córrego Maracanã, que no verão fedia.

Como de hábito, conferia também se o barbeiro estava assentado na mesma cadeira, televisão ligada em um jornal, à espera de algum freguês retardatário, antes de fechar; se o ônibus de Belo Horizonte estava atrasado; se a turminha da pelada já estava gritando "passa a bola" na quadra defronte à rodoviária; se o terno de Congado ou a fanfarra da Mário Campo e Silva havia começado o ensaio; se as mesmas pessoas estavam fazendo caminhada; se os moradores do bairro das Graças iam de volta aos lares levando o pão de cada dia.

Ao chegar à escola, ele sempre dizia: Agora vou escalar o Everest de três andares, e subia até à secretaria, onde pegava material de aula e a lista de chamada. Houve época em que teve até 35 alunos só numa turma. Agora era bem menos, mas o mesmo entusiasmo, a mesma vontade de plasmar gente para a vida cada vez mais difícil por causa dos políticos do país. E sentia um grande alívio por ser útil e cumprir uma rotina.

 

 

setembro, 2016

 

 

 

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