Tito Leite - Começo essa entrevista falando do seu primeiro livro, Geografia Íntima do Deserto. Manoel da Costa Pinto diz que é impossível lê-lo, sem pensar em João Cabral de Melo Neto. No entanto, você já apresentava uma caligrafia própria. Para o mesmo crítico, uma das suas peculiaridades é anexar ao árido continente cabralino um território corporal e sensual. Fale um pouco dessa intrínseca relação: Cabral e Arcoverde em sua poesia.

 

Micheliny Verunschk - De fato, João Cabral é uma das grandes influências daquele livro e uma influência que segue em minha vida. Foi um dos primeiros autores com os quais me identifiquei, menos pela paisagem, digamos, geográfica, mas pela busca pela palavra exata e pelo rigor na construção do poema. Sobre Cabral, aliás, tenho opiniões divergentes das dos críticos. Onde veem o antimusical, eu percebo uma música incessante. Onde veem aridez, sinto o corpo e o erotismo (basta citar "Jogos Frutais" e "A Mulher e a Casa", por exemplo). Claro que a imagem do poeta como engenheiro e como arquiteto tem a ver com um certo momento histórico e com as filiações bauhasianas e suas vanguardas, entretanto percebo em Cabral mais do que essas etiquetagens repetidas perpetuamente, há ali mais carne do que número puro ou talvez existam ambos na mesma medida.

 

 

TL - O poeta Manoel de Barros não acredita nessa coisa de inspiração, ele diz que poesia é o belo trabalhado. Sua poesia é marcada pelo rigor: poemas com versos enxutos, imagéticos e certeiros. Em sua primeira entrevista, ao Diário de Pernambuco, quando ainda vivia em Arcoverde (sertão de Pernambuco), em uma das suas respostas, você falou que "como alguém que lida com a poesia eu não posso exigir de mim menos rigor". E sobre a inspiração disse: "Acredito na elaboração. Um poema pode estar se gestando há anos e um dia ele chega até o papel como se fosse de uma tacada só. Aí muitos dirão que é inspiração, mas, que nada, ele já estava sendo feito há muito tempo". Pode falar um pouco sobre o seu processo de criação?

 

MV - Hoje sei menos sobre o meu processo de criação do que antes. Escrevo muito e penso sobre isso, sobre o que escrevo, o tempo inteiro. Sei que imagens desencadeiam poemas, sei que como poeta sou suscetível a elas, mas sei pouco sobre o modo como as sinapses se dão. Em geral, eu sento e escrevo. Lapido por anos às vezes. Nunca considero nada acabado. Ultimamente tenho prezado por duas coisas mais do que antes: a música e o argumento. Assim tenho uma safra de poemas mais musicais e uma outra de poemas mais "equacionais", digamos assim, em que habitam pequenas narrativas.

 

 

TL - Você é uma das autoras mais originais que li na atualidade. Arrisco-me a dizer que está próxima do que Ezra Pound chamava de "Mestre" — aquele que seleciona as melhores inovações e contextualiza para sua época. Entretanto, o que mais temos na literatura e, de modo especial, na poesia, são os "Diluidores" — uma imitação dos mestres, quase sempre, sem brilho. Para colocar pimenta, digo: pouca musa e muita mídia. Em nossa literatura, tivemos grandes "Inventores", aqueles que trazem inovações e abrem novas veredas. Na sua opinião, novos "Inventores" e "Mestres", nos dias de hoje, são aves raras?

 

MV - Não sei sou mestre. Claro, é um elogio, mas, sobretudo, uma grande responsabilidade. Quando digo "eu escrevo", estou me definindo como pessoa, não como uma profissão que escolhi, ou como uma ocupação que exerço. É mais do que aquilo que faço, é o que sou, alguém que escreve. Se sou ou vou me tornar mestre não sei; sei que tenho uma responsabilidade sobre o que escrevo e publico e por isso sou, eu mesma, minha primeira crítica feroz. Sobre a questão da diluição, não vou lançar pedras à super-produção e exposição de livros e textos poéticos, mas a uma debilidade do exercício da auto-crítica por muitos autores. A ideia de que somos geniais é, a meu ver, desastrosa. Tenho lido poemas iguais de autores diferentes, o que é trágico e é cômico. No entanto, tenho lido também coisas incríveis. Então acho que precisamos de mais leitura (sim, por incrível que pareça), mais critérios, mais lucidez. No meu caso, creio que preciso estar sempre atenta para não repetir fórmulas que deram certo. É uma tentação.

 

 

TL - Gosto quando você afirma: "O que quero é fazer bons poemas. Não quero me tornar uma escritora profissional. Enquanto achar que há um poema bom, continuo a publicar. Se não, não publico". Sua história mostra que não publica por publicar, e você acaba de lançar um livro novo, Aqui, no coração do inferno. Quer falar sobre ele? E do que a levou, depois de três livros de poesia, a publicar dois romances?

 

MV - Eu sempre escrevi prosa, desde criança, mas por algum motivo, o qual não sei precisar, me dediquei mais à poesia e deixei a prosa como exercício, primeiro em textos curtos, depois em textos mais longos. Talvez por exigir de mim uma atenção focada a aspectos exteriores, como a pesquisa, por exemplo, a narrativa entrou em processo de amadurecimento mais tarde. Depois do primeiro romance acho que peguei o jeito.

 

 

TL - Na obra Nossa Teresa — Vida e Morte de uma Santa Suicida, aparece uma das marcas das suas obras poéticas anteriores — o inesperado — em sua genuína capacidade de causar estranhamento. Afinal é a primeira vez que é explorado o suicídio e a santidade no mesmo personagem. Em seu novo livro, como você espera surpreender os leitores?

 

MV - Esse segundo romance conta a história de uma menina de cerca de 12 anos que descobre segredos ao remexer as gavetas do pai, um delegado de polícia destacado no interior. A narrativa se passa em fins dos anos 80, no período da redemocratização e lida com alguns temas da ditadura militar. Para além da personagem, que é uma menina da pá virada, desbocada e intrometida, creio que o leitor se surpreenderá com as outras vozes que habitam essa personagem.

 

 

TL - Você é uma escritora premiada, no ano passado, ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura 2015, embora já fosse uma escritora reconhecida. O que mudou da poeta que escreveu Geografia íntima do deserto para a romancista de Aqui, no Coração do Inferno?

 

MV - Acho que pouca coisa mudou, ou talvez as coisas tenham mudado e eu não tenha percebido. Mas dentre o que mudou, destaco que amadureci, tenho mais noção do que faço, do que é bom ou razoável e do que não é. Isso me dá mais lucidez para julgar o que escrevo e também para compreender aquilo que é criticado por terceiros. E ainda não temo mais os períodos áridos, em que não consigo escrever ou terminar um poema, uma frase. Tenho mais paciência com os processos e comigo mesma dentro deles.

 

 

TL - Os pensadores da Escola de Frankfurt, acreditam que a arte exerce um papel subversivo, ao trazer para o observador tudo que está esquecido no cotidiano: ao revelar uma nova realidade destituída da realidade vigente. Assim, a função da arte seria a de transfigurar a realidade. Num país cheio de temeridades como o Brasil, como surge a capacidade de subversão na sua obra?

 

MV - Não sei. Para mim a arte é subversiva ou não é. Espero mesmo que a minha seja. É para isso que trabalho cotidianamente.

 

 

TL - Na orelha de Aqui, no Coração do Inferno, escrita por Maria Valéria Rezende, ela diz: "Arme-se o leitor, portanto, de imaginação e coragem para empreender esse árduo caminho em busca da verdade, o caminho que nos resta". Sua obra fala de fatos recentes: "bandidos e heróis podem trocar de papel de um jeito que, às vezes, a gente pode não saber mais quem é quem". Nessa direção, o leitor também é convidado a olhar a realidade com um senso crítico. Pode falar sobre isso?

 

MV - Sou exigente com meu leitor. E acho que toda literatura que se preze deve ser. Somos herdeiros de um século de ruínas, que foi o século XX, e marchamos, nesse século, lado a lado com o horror. A literatura não nos salvará, pois não acredito em salvação, mas há que ser útil para se imunizar contra o torpor, para ajudar a criar novas possibilidades. Essa é a subversão que espero, voltando à pergunta anterior.

 

 

TL - O essencial de uma obra de arte é o seu fazer, criar e produzir. Quando ela é produzida, trazida à existência, supõe-se que houve uma finalidade. Contudo, essa produção não tem a mesma finalidade de "utilidade", porque ela aparece de maneira gratuita, mesmo quando há interesses por trás. Nas suas entrevistas, você deixa claro: seu interesse é estético e o que surgir é acréscimo. Como você vê o frenesi pelas premiações e as mídias da indústria cultural: isso seria também o Labirinto de Creta, do qual você fala em seu romance anterior?

 

MV - Eu acredito que as premiações têm a sua importância, especialmente em um país de tão poucos leitores. Elas chamam a atenção (que deve ser sempre para a obra, nunca para o sujeito, a pessoa civil), elas dão indicativos (sim, se escreve aqui, se escreve agora). Entretanto escrever pensando nas premiações, ou pela ideia de acesso um falso glamour que o "status" de escritor possa oferecer, é um contrassenso. É entregar a cabeça ao minotauro. Ganhei um prêmio, fui indicada em três, nada mudou, continuo exercendo meu ofício, humildemente tentando aprendê-lo, aperfeiçoá-lo. Se vierem outros prêmios, ótimo! Se não, não há problema, não é para eles que existo.

 

 

TL - Há momentos descomunais em que sentimos que somos muito mais do que a própria roupa, os livros na estante e o emprego. Esse sentimento é, muitas vezes, considerado místico, mas para outros é artístico (para os poetas e escritores, por exemplo). O que te move a escrever?

 

MV - Sou um animal que escreve. Isso me move. Como a cheia dos rios na África movem as manadas de gnus ou como a chegada do inverno desloca os bandos de aves migratórias. Sou levada a isso da hora em que acordo até o momento em que deito a cabeça no travesseiro.

 

 

setembro, 2016

 

 

Micheliny Verunschké autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Foi finalista, em 2004, ao prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia Íntima do Deserto. Publicou, em 2014, seu primeiro romance Nossa Teresa — Vida e Morte de Uma Santa Suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2015 e, em 2016, pela Patuá, Aqui, no Coração do Inferno. É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

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Tito Leite [Cícero Leilton Leite], Aurora/CE (1980). Poeta, possui graduação em Filosofia - Licenciatura Plena pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (2005) e especialização em Filosofia da Educação pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras - FAFIC (2007). É mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de ensino de Filosofia, com ênfase em Filosofia, Filosofia Política, Ética, Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Vive em Olinda, onde é monge no Mosteiro de São Bento.

 

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