©David LaChapelle

 

 

 
 

 

 

 

Engenho econômico

 

 

A despeito da total imobilidade que sinalizava o desespero de seu niilismo obsessivo, ninguém, por incompetência estética ou compassiva, estendeu-lhe a mão.

 

Talvez um tiro na boca lhes reavive a memória — arquitetou, da imensidão solitária das cinco paredes do orçanatório estatal.

 

 

 

 

 

 

Como diz-se

 

 

Ao contrário de tantos outros, estava feliz tanto em sua condição de tijolo quanto em sua posição junto à base da grande pilha desordenada que era o único mundo que já conhecera.

 

Não aspirava a um dia tornar-se muro ou edifício, nem nada que implicasse em abandonar sua tão prezada individualidade, de modo que não perdia seu tempo em idílios ou planos sobre como galgar ao topo, de onde se afirmava ser mais fácil a transcendência.

 

Quando sopraram os ventos da revolução, virando do avesso as certezas e trocando tudo de lugar; enquanto alguns dedicaram-se a exaltar a glória das argamassas e outros procuravam explicações sócio-físio-científicas condizentes com os próprios conceitos; enquanto a grande maioria aproveitava para demonstrar a força de sua fé no Homem, o ser todo poderoso que criara o universo a partir do barro e do fogo — rogando-lhe das formas mais ardorosas que protegesse a si e aos seus; foi que desapareceu.

 

Em meio a tamanho caos, ninguém reparou no destino de tão insignificante figura. Diz-se que partiu-se todo em nome do fim que lhe foi reservado, remoendo-se de tal forma, que cada um de seus grãos, de tão refinados, hoje pulsam em diferentes pontos do centro da essência de tudo que existe.

 

Diz-se que virou ponte, e que de suas lágrimas é que surgiu o rio sobre o qual eternamente chora, sozinho, no mesmo lugar.

 

 

 

 

 

 

Artes Circênicas

 

 

Enquanto todos se enlameavam tentando manter imaculada a sua autoimagem, Sissi flertava com o caos.

 

De puta-bruxa a santa-maconheira, sempre pobre. E: — Oh, mãezinha!, quando lhe achavam rapazote.

 

Seu segredo era sempre dizer a verdade. E já que "a verdade" são múltiplas...

 

 

 

 

 

 

Demonólogo totalitarizante

 

 

Era com o matraquear agourento das curucacas que despertava a cada manhã, imediatamente consciente da própria maldade e do poder de sua magia. Um mal necessário, a única força capaz de conceder-lhe a tão almejada imortalidade.

 

Corpo seco nutrido pelo ódio e conservado em desespero qual espécime preservado em formol, há muito que se distanciara da lógica ou pulsões humanas, sendo portanto mais uma intuição do que uma dedução o que lhe fez ver que algo ia mal, que o desgaste da conservação da própria existência superava já a longevidade gerada pelos sacrifícios e rituais, afetando a memória que habitava a carcaça imperecível.

 

Ciente da concordância de toda a infinita malha que compunha seu "self", acusou seu aceite à negociação há tanto protelada, atravessando logo em seguida os portões do inferno. Resquícios da agonia decorrente do pequeno acerto de contas que aí então teve lugar podem ainda ser percebidos, quase como hoje se percebem as convulsões e estertores do nascimento ou morte de massas estelares incomensuravelmente distantes.

 

Assim foi que, em nome da consciência plena que caracteriza as formas superiores de vida, entregou-se uma vez mais à única força existente capaz de preservá-la na integralidade exigida pela multiplicidade de suas formas, purgando através da dor tudo que pudesse constituir-se em empecilho à continuidade de seu existir.

 

Ao final do processo, infinitas partículas de si nadaram seu nado sincronizado em estreitos fachos de luz que irromperam através de todas as eras, épocas, espaços, tempos, planos, dimensões e universos, felizes por sequer saberem que nunca mais se reconheceriam ou poderiam reconhecer, como, aliás, ainda não se reconhecem...

 

 

 

 

 

 

Xaveco é lalo

 

 

Maçã esperta que era, desde a semente conhecia a antiga história que recomendava às melhores permanecerem no topo.

De seu recôndito galho — enquanto crescia — observava, analisava e concluía. Pois se faz necessário cautela, antes de aceitar plenamente antigas histórias.

 

Assim foi que presenciou o moço, intrépido e valente, galgar o topo da macieira, até, temerariamente alcançando a mais altiva e longínqua das frutas, mordê-la com avidez incontida. Para a seguir, guspi-la e exclamar displicentemente: — Está verde.

 

As melhores maçãs podem até ser as mais inacessíveis, mas nem sempre os melhores pretendentes são os mais ousados.

 

Observou também a maçã que, madura e redonda, docemente esperava. Agüentando o quanto pôde, certo dia cedeu ao peso da própria maturidade e caiu ao solo. Foi devorada por um porco, que ao acaso ali passava.

 

Assim sendo decidiu-se a não estar nem lá nem cá. Manteve-se suculenta, porém acessível, na esperança de ser bem comida.

 

Certo dia foi colhida por bela e alva moçoila — não sabia que mulheres também comem maçãs? — mas resignou-se: Antes os pequenos lábios de uma jovem dama, que o desdém de um aventureiro, ou ainda a rudeza das mandíbulas de um porco.

 

A esperada mordida, no entanto, ainda não veio. Terminou seus dias num parque de diversões, entre tantas outras, vendida sob o nome genérico de "maçã do amor".

 

 

 

 

 

 

Pão e carne

 

 

Chupão na virilha é sinal de compromisso em certas culturas. Hoje sei perfeitamente, mas naquela época eu era jovem e inexperiente nesses assuntos de amor, e nem desconfiava que a mulher no chuveiro já me considerava sua propriedade.

 

Eu dormia inocentemente, sonhando que minha avó fritava pastéis para o almoço enquanto eu me refestelava no sofá da sala, sob o sol que entrava pela janela esquentando a minha cara. Foi duplamente estranho acordar no quartinho do hotel. Por um lado, fiquei triste ao me dar conta que não haveriam pastéis para comer, por outro, feliz em relembrar que nem só de pão o homem viverá.

 

É minha vez de tomar banho, e eu deixo minhas roupas sobre a cadeira. Saio do banheiro para buscar xampu, bem a tempo de ver a doidona trancar a porta e sair vazada com toda a sua bagagem. Mais as minhas roupas. Minha inexperiência não se estende a outras áreas, tais como arrombamentos, e em pouco tempo eu estou pelado no corredor, procurando por algum funcionário ou hóspede que me descole um xampu.

 

O cara da portaria me arranjou uma calça, um par de chinelos e uma camiseta velha, curta demais para mim. O quarto está pago até a uma hora da tarde de amanhã, e eu resolvo passar a noite e esperar pelo café grátis a que os hóspedes têm direito todas as manhãs.

 

 

Lá pelas sete da noite, ouço um barulho na porta quando a guria está voltando, vermelha e ofegante com o esforço de carregar sozinha toda a bagagem.

 

— Onde você foi?

 

— Comprar passagens de volta.

 

— E pra que levar minha roupa?

 

— Sou ciumenta. Vai que você foge?

 

— E pra que levar suas malas?

 

— Sou desconfiada. Vai que você me rouba?

 

— Tudo bem, você está certa. O negócio é esperar até amanhã, e tchau.

 

— Não. Você vai comigo. E mostra que tem duas passagens para sua terra.

 

Ciumenta, desconfiada, impulsiva e possessiva. Fico pensando num jeito de dopar essa guria e levar embora todos os seus pertences. E roupas. Mas talvez, se ela estiver disposta a me sustentar, seja uma boa idéia perder uns dois ou doze anos ao lado dessa magrona.

 

Mas isso eu decido só amanhã, depois do pão com mortadela.

 

 

 

 

 

 

Deus e o Diabo na terra do Tao

 

 

Enquanto o Yin

(escrevendo reto por linhas tortas)

 

enceta mais um lance de sua eterna batalha

 

contra o Yang

(escrevendo torto por linhas retas)

 

o poeta insiste em escrever no escuro

por pura preguiça

de ascender à luz.

 

 

 

 

 

 

Solvente universal

 

 

Daqui

o que sei

que precisarei

 

são minhas aulas de voo

 

a verdade

travestida em sonho

 

e a fria escuridão da madrugada

que à luz de qualquer fogo

transforma-se em nada.

 

 

 

 

 

 

Lanchinho da madrugada

 

 

Pão com alguma coisa.

 

Comer e cagar

é só começar.

 

Pão com talvez salsicha,

puro pão com talvez vina.

 

Rima

essa minha sina.

 

Três maionese por cima!

 

 

 

 

 

 

Palatável reificação

 

 

Sob tantos e tão variados aspectos

morrer ainda é sinônimo de morte.

 

Como o açúcar no fundo das xícaras de café

ou o tempero doce no fundo do pacote de salgadinho

após tanto tempo aperfeiçoando-se na arte de ser a mesma maldita

e, sobretudo,

coisa.

 

 

 

 

 

 

Irrelatividade

 

 

Toda essa descida,

todo esse caminho,

todo esse querer.

 

É o ir e vir nauseante da vida

dando vida ao que não pode ser.

 

Um pedaço de papel,

meio traço de caneta

e nas curvas infinitas

— encontro de todas as retas —

 

deuses desfalecidos

desfazendo obras completas.

 

 

 

 

 

 

Psico-melodrama do vanguardismo arcaico

 

 

Não é de hoje

que não é de agora

que todas as cousas

d'antanho d'outrora

Babau!

quando vão embora.

 

 

 

 

 

 

Drag King

 

 

O Sol é o astro-rei

e o rei tem que ser forte.

 

Mas só durante o dia

que a noite reina a rainha.

 

 

 

 

 

 

Nem isso, nem aquilo

 

 

Não ponho o anel, não calço a luva

não calço a luva, não ponho o anel

 

não faço escolhas

não mudo rumos

nem mando o mundo

tomar no cu

 

posto que não cabe

servir a dois senhores

a quem não se serve

de senhor algum.

 

 

 

 

 

 

Umbigolatria

 

 

Chove sobre minha cara,

posto que não sou pateta, alarmoso nem covarde

para que se me cubra a face frente a nuvens de algodão.

 

Chove sobre minha alma,

pois que não sou violento, grosseiro ou tampouco tolo

para desfraldar bandeiras em terrenos de imaginação.

 

Chove sobre Santiago.

Foda-se.

 

 

 

 

 

 

Olhos de retina, deuses de cristal

 

 

Só mais um nome, sonoro e bonito

quem sabe sabe, penso e me visto,

e espetos e agulhas de gente insensível

que não liga pra você,

nem vodu,

nem cinderelas,

nem nada

ou ninguém.

 

Mas unhas têm dedos e dedos tem dentes

que limpam o rabo e mordem o cu.

E o que nada é peixe

e peixe com dedo

bate o cachimbo,

pequenino,

cachimbo de Belém.

 

 

 

 

 

 

Noite, velha conhecida

 

 

A noite

em sua essência

não me reserva surpresas.

 

Sexo

drogas pesadas

atos de violência.

 

A noite é desesperança

que tapa com mãos de velha

os meus olhos de criança.

 

À noite

— é o que espero —

me embalará em seu seio

me levará para a cama

e me enxergando tão feio

há de mentir que me ama...

 

 

 

 

 

 

Autoestima

 

 

Todo mundo tem seu modo,

todo modo tem seu mundo.

 

Seu lago,

seu narciso,

sua vida,

sua luz.

 

Que se perde num jogo de espelhos,

num segundo suicida de autorreflexão.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Paulo Eduardo Gonçalves (1978). Paranaense de Ponta Grossa. Tem pequenas premiações e participações em antologias locais. Ativo na internet desde 2002, com um livro de poesia auto-publicado e um e-book, que chegou a estar entre os quatro mais baixados da Amazon Brasil, na categoria poesia geral.