©masha sardari

 

 

 
 

 

 

 

OCIDENTE

 

 

Volta e meia

este dilema: sigo em frente ou viro à esquina?

Este impasse: prosa

ou poesia?

Vida

ou

arte?

 

Em verdade,

nascemos cindidos —

desde Sócrates

ou Agostinho: céu e lama, êxtase e fastio.

 

Volta e meia esta luta:

corpo insone,

mente insana

e esta lua...

 

E este verso, meu Deus,

que sempre volta, no fim da linha,

ao seu começo,

cheio de ecos

cacos

e tropeços.

 

Volta e meia,

meia-volta...

 

(No entanto, do outro lado da rua,

o guardador de carros

não tem dúvida: se não descolar vinte pratas,

dorme na rua.)

 

 

 

 

 

TORQUATAMENTE

 

 

quero morrer

sem espalhafato

 

sem dor

sem alardes

sem reclames

 

para dizer adeus

não é preciso gestos

altissonantes

 

basta saber viver

tranquilamente

todas as horas do fim

 

se a vida foi um drama

sair de cena

não precisa ser

necessariamente

um escândalo

 

melhor sair à francesa

sem cenas

sem dar bandeira

 

quero morrer

assim

sem ênfase

sem ênclises

 

só um bilhete:

pra mim, chega

 

simplesmente

fecho a porta

abro o gás

e vedo as frestas

 

quero morrer

assim

sem espalhar o fato

 

sem dó

sem alardes

sem vexames

 

como Torquato

 

 

 

 

 

 

ALEPH

 

 

Quisera

a palavra inaugural do paraíso

mas minha voz

— já sem fôlego —

está cheia de ecos

e cacófatos.

 

Não falo por mim.

Tampouco por ninguém:

não tenho clã nem urbe,

nem sou profeta de algum deus.

Mas em minha voz

— já sem fôlego —

repercutem as vozes todas

desde Adão.

 

Quisera

o senhorio de minha própria voz

— já sem fôlego —

o domínio de meus solilóquios,

o narrador onisciente que me narra,

que abre travessões quando falo

ou aspas quando cito.

Saber que ao menos uma palavra

(esta: eu)

fora minha...

 

Se não uso clâmide

nem burel, não sou apóstolo

nem apóstata,

ao menos pudesse ter de meu

uma aposta:

esta voz

— já sem fôlego —

com que me falo

agora

na ágora vazia de meu crânio:

cálix onde dou de beber aos deuses mortos

a história

que me escoa.

 

Ah, quisera

nomear os seres todos,

descrever as cores do levante,

elucidar o sabor dos frutos ou a autonomia do vento

nos cabelos dos viventes.

 

Mas minha voz

— já sem fôlego —

veio rouca,

quase um fio,

e reboa,

cheia de ecos, cacos e cacófatos.

 

O pior é que não há ninguém

que a decifre.

 

 

 

 

 

476 d.C.

 

 

fica decidido:

não haverá

segunda época

 

o monopólio

dos ímpios

nos é negado

 

roto

o louco

não dançará mais na avenida

 

mas o cego continuará

a pedir moedas

na esquina do shopping

 

perdi os ingressos

do cinema

perdi as chances

do remorso

 

fica

decretado:

o choro é livre

não inútil

porém ridículo

 

rememoro

no fim

a manhã primeva:

a sagração

o sangramento

da terra

sob o disco

ático

de apolo

 

agora

quando a noite cai

e todos os bêbados são pardos

meus olhos se fecham sem ternura

mas com lágrimas

 

caiu a grande babilônia

 

a mesa está posta

com a cabeça do batista

o sol se põe

sobre o nilo

e as águas do eufrates

são vermelhas

como sangue

 

hermes trimegisto ri

 

não haverá

segunda chance:

o ocidente

era um mito

mas não foi um acidente

 

 

 

 

 

PERJÚRIOS

 

 

Neste banquete onde a loucura é servida

como jogo de enigmas,

sentei a beleza no colo

e a achei estúpida. No deserto,

para onde fugi, sob um sol brilhante

e mudo, inscrevi na lousa o meu destino

de ourives cego. Não há remédio

para quem nasceu inverossímil

e busca sob a pele rota do tempo

o mapa estapafúrdio das lisonjas.

Agora eu sei: o mundo inteiro se perdeu

quando os deuses se levantaram contra mim.

 

 

 

 

 

TEOFANIA

 

 

De repente,

caí como morto

aos seus pés.

Arrastado por correntes,

esquartejado por punhais.

 

Foi tamanha a luz!

 

A sua cabeleira rubra.

A sua boca rubra.

A sua vulva rubra.

(Salamandras de fogo, corcéis incendiados nos céus.)

 

De repente,

no meio da rua,

uma menina cega me fazendo sinais:

ela me conduziu pela mão

a uma catedral de mil absides,

onde eu vi

com meus olhos impuros

o corpo estigmatizado

do Apóstolo.

 

Foi como se eu tivesse

subitamente nascido

e não soubesse pronunciar palavra alguma

na língua dos homens.

 

Meus cabelos ficaram brancos. E pretos novamente.

 

Chorei a noite toda.

 

De repente eu compreendi,

como num sonho:

tudo já aconteceu, só que invertido.

 

Quando dei por mim,

estava na casa de meus pais, coberto de incisões,

com um nome sagrado

tatuado no testa: Al Mutakabbir.

 

(Tudo é unânime. Tudo é hieróglifo.)

 

Hoje sei que viver pode ser glorioso.

 

Mesmo no mais abjeto

quarto de hotel.

 

 

 

 

 

 

TUDO É DESERTO

 

 

Como os santos e os profetas,

de repente eu me vi arrastado para o deserto,

atraído pelo seu poder de síntese e solidão: pedra e cal, sol e lua.

 

E lá eu me vi compelido a compor meu poema

apenas com os elementos que me estavam à mão:

a cal do tempo, a ilusória estabilidade da pedra,

a inclemência do sol e o espetáculo da lua

— cheia, enorme —

a nascer detrás das dunas onde há pouco estacionara uma caravana de

[magrebinos.

 

Meu poema:

margens em branco

(vacuidade, plenitude?)

e

no

meio:

traços, linhas, pontos

— signos de uma língua

extinta há milhões de anos

e cujo sentido

oculto ou aparente

eu jamais compreenderei.

 

Como aos anacoretas,

o deserto foi a minha iniciação.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, capital, em 1967. Depois de uma passagem por Porto Alegre, radicou-se em Curitiba, em 1982. Em 2006, foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond. Em 2008, foi contemplado com uma Bolsa para Obras em Fase de Conclusão da Biblioteca Nacional e, em 2010, recebeu a Bolsa Funarte de Criação Literária, com as quais, respectivamente, produziu um romance e uma novela, ainda inéditos. Em 2012, foi o vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia, com o volume Desacordes. Doutor em literatura pela UFPR, leciona atualmente na PUCPR e no pós-graduação stricto sensu da Uniandrade.