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inevitável que não te colha
estandarte comedido
e trilhe teus gestos
e agreste em teu chão
 
inevitável não eximi-lo
deste riso destravado
e olhos de anzol
 
inevitável não ceder ao teu sol
arrebol em meu terreno
mesmo quando nublado
te saber desajeitado
pontilhado humano
e ainda assim mergulhar
na tua mundana geografia
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
um apanhado de senões
embrulhados em papel pão
puro improviso, coisa de iniciante
arranhões que rasuram a tela
 
o amor tem muitas faces
fases cíclicas
sabiá fazendo o ninho
interstícios duvidosos
gozo entre lágrimas
a avidez de sobrevoos
enjoos, golpes do acaso
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
foram enganos curtos
sustos previsíveis
ruídos suportáveis
sempre foram...
 
fora, terremoto feito duracel
pincel sem cerdas
pedrinhas de jardim fora do prumo
regras insuportáveis
e quereres pagãos
 
um coração ao vento
intento de reprise
e reedição
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
indizível é o que sustenta nossas vigas
maremotos e água parada
a habilidade em lidarmos com os descarrilamentos
a porção de lamentos que embrulhamos para depois
quando um mais um é o infinito
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
onírica
minha jugular na tua boca
dois de mentes ensolarados
a soltar chispas
e regar lençóis
 
dois bemóis em sonata cálida
validando a gula da pele
no apelo do corpo
acordo entre suspiros
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
Eu ouço o escuro
somos amigos
menos quando meu avô partiu
o escuro era presença da ausência
o escuro ao fechar os olhos gritava
som ensurdecedor de silêncio
eterna pausa do até breve
 
o silêncio em não ser abraçada
pelo olhar do meu avô
 
o escuro doía-me
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
O rato roeu os caprichos
capítulo de introdução
roeu a estria
frio na barriga
roeu cantigas fora do tom
 
Roeu logo
marcas de alto custo
roeu o busto artificial
roeu a claridade da sombra
roeu o roteiro preciso
de futuros impróprios
roeu rótulos de medicação
roeu alívios imediatos
roeu destroços
náufragos remorsos
 
Esse rato condômino
anônimo lambeu a louça da pia
roeu a agonia armazenada
depósitos de estrada
roeu
os nada
nichos de pequenas coisas
farelos de ontem na foto amarelada
a piada sem graça
a pirraça do espelho
roeu a traça antes da folha
roeu o papão patrão ponto
o canto gelado da cama
as certezas do espelho
o vermelho mangue
sugou o sangue
frio
roeu o que eu era
e o que sou cuspiu
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
Doei todos os meus patuás quando te conheci
queimei papéis em fogueiras santas
engavetei mantras e entoei samba
deletei o que não servia
pra caber na tua história
e sustentar a falida glória
comparsa do dia a dia
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
um trapo gasto e pomposo
onde o puído conforma-se em tramas
e ama se ama se alma
se rasga bonito
e se alinhava em ponto cruz
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
O medo é imperador da rua
da minha
da tua
do puteiro em funcionamento
da construção inacabada
 
O medo é a piada falha
que inventaram
pra multiplicar prisões
com cerca elétrica e campainha
 
O medo na gente é um rio
em que afogados morremos
na burocracia
ou vivemos
à deriva
 
o medo é um osso
que a gente rói
e não quer largar
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
entregar-se a uma deusa, menino
é dose
só fortes cederão
dormirão com pés descobertos e pernas enroscadas
narinas mergulhadas em jasmim
 
tem que ser muito fêmea em sua macheza
pra adentrar no labirinto
de pele em pétalas
península ancestral
 
aventurar-se em braços temperados
ler recados de corpo e timbre de voz
harmonizar o compasso
em suspiros comungados
louvado agridoce
 
porque deusas não são linha reta
esteta algum avalia
maestria tamanha
 
deusas lavam-se em sangue, bebem de bocas,
lobas e loucas defendem suas crias
 
 
 
 
 
 
                            vida
 
 
esta píton enrolada no pescoço
que vai apertando
devagarinho, devagarinho
 
 
 
 
 
 
                            ~
 
Depõe contra mim o desalinho
tão próprio da minha genética
o aparente defeito que me compõe
se compara a crime
não exime minha indulgência
de escolhas mal feitas
 
Sou tão responsável pelos girassóis que não vingaram
quanto a cigarra que optou pelo banjo
e não deu canja ao trabalho
 
Depõe contra mim a humana
demasiada cômoda comoção
o coma, a letargia, a coceira
fruto da alergia incurável de sorrisos amarelos
o estável mundo em que me enquadro
o semiolimpo
a visão embaçada
vaidades ricocheteando em umbigos
 
Depõe contra mim o grão mínimo
que não dividi
as cartas que não escrevi
os obscenos amores sonegados
e o bocado de estrelas que não contei
 
Depõe contra mim o mar
fim extinguido
de um recomeço
 
Sou réu benquisto
cisto aceito em uma tribo doente
a clemência da injustiça me abriga em sua asa
no plano
da pinça em desuso
que cultiva pelos
para esconder os nódulos
 
sol — fora num dia novidade
em que um cogumelo gigante
como despertador de longo alcance
em lance certeiro
desafogará esse ar fatigado
lembrete tardio de que o bueiro humano explodiu

 

 

 

 

[imagens ©dominique fortin]
 
 
 
Nilcéia Kremer é gaúcha, nascida em 1980. Morou em algumas cidades do Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Atualmente, seu porto é Passo Fundo/RS. Nas artes, já transitou por várias linguagens. Tem por profissão a arte educação, e por combustível, a inquietação. Por isso, pensa que a vida é muito, para se exercer um só oficio. Gosta de cozinhar, comer e movimentar o corpo. Participou da coletânea Sobre Lagartas e Borboletas publicada eletronicamente pela TUBAP e impressa pela Scenarium. Tem poemas publicados em revistas digitais e impressas. Em 2016, lançou Kamikaze, em formato digital [issuu.com/nil975/docs/kamikaze] e em formato impresso pela Katarina Kartonera.