©marcus møller bitsch
 
 
 
 
 
 
 

J. da abertura constante

 

 

"tudo de amor me é só

simulacro de amor"

 

e após expor

nosso coração para que o cocem

por dentro com facas de magarefe

restam-nos da goela ao púbis

essas feias

suturas de açougueiro

 

uma sucessão de

anéis de noivado

atirados no bosteiro

 

porque antes não o sabíamos

: um sentimento de cão

viralatíssimo

indo de rabo abanando para

o ritual de eutanásia

 

 

 

 

 

 

I. açougueira do ímpeto incontível

 

 

aquele grunhir agônico

de quem faz com seu cio

uma chacina no chiqueiro

um redemunho na penumbra

 

(os porcos esfaqueados no sovaco

os amantes unhados no miocárdio)

 

sem sujar o vestido

sem desmanchar o cabelo

 

é da estirpe das que não

discernem as rezas

de antes de comer das

de depois de gozar

 

 

 

 

 

 

W. dos poemas pobres

 

 

são sempre aqueles pregos

que nunca se convertem em trens de ferro

é sempre aquela âncora enferrujada

que nunca se transmuta em borboleta inefável

 

vejouça: sussurrangem penadas

as almas dos versos

fenecidos em sua gênese

 

todos aqueles poemas

de pedigree sem-vergonha

não aguentam

que se lhes batam os pés

que se lhes mostrem

os dentes da exegese

 

 

 

 

 

 

tio B. do velório

 

 

na sala exígua — a casa

aquele

cheiro de confinamento —

: quadros de santos entre

retratos de almas-já-penadas

 

adoça-lhamansa a morte

a fotografia (da

adúltera alcoólatra amásia)

ser sepultada consigo

 

esses desejos já-fósseis

epitáfios testamentos vaidades

coisas que nos consomem de

dentro para fora o fôlego

 

: uma vida inteira de alegrias

recitadas em sotaque de silêncio

num idioma ainda não-nascido

numa língua extinta há muito tempo

 

 

 

 

 

 

D. do antijúbilo

 

 

as mãos macias do obstetra abortífero

moscas varejeiras

circunsobrevoando o ventre

da noiva prenha

do amante

 

 

 

 

 

 

L. B. da insônia

 

 

o amor lhe é

: noites rasgadas de

rimbaud aberto

de vitrola acesa: unhas

de piaf a lhe arrancar

o coração pela goela

 

a vida lhe é

: a casa limpíssima

(discos livros em austera

ordem alfabética

 

a louça asséptica

intactalva

 

— mas nenhuma carne onde

exercer a fome)

 

 

 

 

 

 

Z. B. sorveteiro da autoincineração

 

 

porque não se suborna

o mundo com

algodão-doce e sorvete

 

então querosene!

 

de-va-gar deixar

que os silêncios mais lentos

por dentro de si se

queimem

 

que a metade miocárdica

desusada confira

suas trincas suas

escaras

 

que a metade

gasta afirafague sua

metade que falta

 

 

 

 

 

 

padre L. das homilias despojadas

 

 

a doutrina ensina

 

"diabos nos compram a alma

sem que tenham como

quitar suas dívidas"

 

e deus —

apesar de nossos

intestinos miseráveis — não

nos admoesta

os orgasmos infeccionados

o livre-arbítrio desgovernado

 

só nos ordena que

lhe roguemos menos

que gastemos nossas velas

apenas com bons defuntos

 

 

 

 

 

 

F. do amor transvertido

 

 

como quem adorna com

flores de plástico o vazio

 

(silicone salto-alto brincos

kikalvarenguianos) —

e apesar do ato-fal(h)o

e de nenhum óvulo — o

próprio corpo como

um oratório

farnesandradeano

 

mas o mundo lhe engenha grotas

lhe engendra no peito peçonhas

 

uivos de paz precária

entremeados a rogos

de deus-te-(a)pague

 

então jura amar de novo

só quando aprender a

converter esterco em ouro

 

 

 

 

 

 

P. do noivado casto

 

 

se te me vieres em júbilo

tira

os restos de bosta de porcas antepassadas do sapato

 

te juro para depois do

deusbençoe uma

donzelice

 

ígnea

abrasiva

 

uma bucetinha muito das mais doces

capaz de tornar um

coração incauto

um torresmo

 

 

 

 

 

 

D. da iniciação com o primo

 

 

depois que cólica-de-ventre

inaugurou-me eva

na pássara púbere

compus casal de primos

e sua recorrente cópula

fugaz feroz

detrás da casa

 

— enquanto dentro

parentes e visitas

rezavam novena

rogavam por perdão

lavoura farta vida longa

futuros filhos-e-netos sem defeitos

 

: não sabiam — não

suspeitavam! —

aquela ternura perturbadora de

ora-pro-nóbis

roçares de açucena entre

pés-de-roseira na penumbra morna

 

 

 

 

 

 

T. da travessia desértica

 

 

nesta vi(d)a por vezes

há muita miragem ilusão

de que são potáveis os brejos —

resguardamos as águas

para quando de sedes

que de fato as mereçam —

e de repente eis

águas muito velhas

que perderam o

poder de saciar

 

e então — dentro onde

o árido se alastra —

pulsa disrítmico

um negócio já duro

(diamântico

paralelepípedo

nervura apenas)

ninguém conseguirá mastigá-lo

com dentes ainda-de-leite

 

 

dezembro, 2016

 

 

Wilson Torres Nanini, autor de Alcateia (2013) e Escafandro (2015), ambos pela Editora Patuá, é mineiro de Poços de Caldas (1980) e vive em Botelhos/MG.

 

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