©laura makabresku
 
 
 
 
 
 
 

Olhos de manhãs

 

 

Passada a semana santa, sua vida é um gerúndio de vésperas. Espera, sem pressa, pelo próximo domingo de ramos.

 

Acorda ao romper dos primeiros raios de luz, tira a barba de trezentos dias, banha-se com água de lavanda. Veste-se com seu terno de linho cor de nácar, guardado há um ano. Abre as grades dos seus desejos e corre para o pátio da igreja.

 

Ela vem, colorida em seu vestido de festa, ancas bailarinas e olhos carregados de manhãs.

 

Sai da missa com o maço de palmas benzidas, come um potinho de creme de milho verde na barraca da mulher gorda com cara antiga e encaixa-se nos braços de seu marido. De mãos dadas, desaparecem na esquina, no fim da rua. Então, respira fundo, ajeita o linho amassado nas articulações e toma o caminho de casa.

 

Onze meses, três semanas e alguns dias começam a ser marcados. Dia após dia, no calendário de folha única, pendurado no lado de dentro da porta de seu guarda-roupa.

 

 

 

 

Mudança de hábito

 

 

Guardou por anos o vestido com estampa floral. Lembranças em tom pastel das alegrias vividas no tempo em que seus contornos se ajustavam aos recortes e fendas da exclusiva peça de roupa daquela grife que não existe mais. Foi fechada quando o seu estilista se atirou do décimo terceiro andar do edifício onde morava.

 

A intenção de fazer dieta agoniza na malha de urgências e a esperança de voltar a usá-lo, exausta de adiamentos, se ajeita na incômodo encosto da resignação.

 

Na mão esquerda, a marca da aliança e a sacola com roupas para doação. Na mão direita, a agenda com boletos bancários vencidos, o folder do restaurante de massas e o cartão do analista.

 

 

 

 

Outono é quando o sol se muda para os plátanos

 

 

Há dores que se curam com os avanços da ciência, há dores que se curam no colo de mãe, de pai, de irmão. Há dores que se curam no aconchego de um ombro amigo, há dores que se curam no autismo voluntário, em passeios etílicos ou viagens para a Toscana. E há dores que, conscientes de sua missão, só se curam sozinhas, no recolhimento e respeito de seu anfitrião. Do contrário, rebelam-se em embates sem fim. Parágrafo único, escrito com caneta tinteiro, na primeira página do seu diário, um caderno azul, com todas as folhas em branco. Na contracapa, presos por um minúsculo clip verde metálico, a entrada para a Galeria Tate, de Londres, e um cartão postal com a foto da escultura Hope, de Frederick Watts.

 

O desafio, e recorrentes fracassos, é decifrar a natureza do corte que o assolava. Que dor era aquela para a qual nada era alívio e tudo era fomento? Que dor poderosa o impedia de sentir alegria em coisas simples?

 

Engole o choro e desvia o pensamento. Em seus braços, à maneira de segurar um bebê, o caderno azul e a escultura de bailarina feita em acrílico transparente, cor de conhaque.

 

Havia dois meses, desde a última vez que se falaram por telefone.

 

Outono é quando o sol se muda para os plátanos ele disse ao descrever o dourado das árvores, nas alamedas de Bella Vista, bairro boêmio de Santiago, capital chilena.

 

Folhas em matizes safáris balançam em seus devaneios e abstraem da angustiante sensação de perigo nos solavancos da aeronave, em suposta proximidade da Cordilheira dos Andes. Zona de muita turbulência, murmura o passageiro do banco ao lado. Ela finge que não ouve e segue contemplando o lençol de gelo que fascina e apavora. E na silenciosa brancura da contemplação, indaga para si mesma sobre os anos do seu castelo de intenções.

 

Que veneno tem a saliva da ambição? Qual é o seu efeito quando somos inoculados? — Questionamentos invadem a sua mente, mas não mudam o script. Não mudam o fato de haver sido deixada por um salário duas vezes maior e o cargo como representante da corporação para a América Latina. A boa posição que tinha no escritório de São Paulo garantia invejado nível de vida e a estabilidade no casamento, o projeto de ter dois filhos, a promessa de férias nas Ilhas Maurício. Promessas. E suas trapaças. 

 

Volta-se para a concretude da pasta com os documentos pessoais entregues pelo gerente do Flat, a rescisão do contrato de trabalho e o envelope contendo as diretrizes para o acerto de contas. Homem de caráter irrepreensível, pensou em tudo. Não deixou um cílio fora do lugar.

 

Indiferente aos olhares e ao zelo dos comissários, ela abraça a bailarina, um presente a ela nominado, entregue pelo assistente do projeto em que ele trabalhava.

 

A sala fria, o branco marmóreo das mesas e a imobilidade facial dos funcionários do Instituto de Medicina Legal são lembranças que fluem lentas em sua memória. Não se lembra de ter vivido experiência tão dolorosa quanto a de reconhecer um ente querido, guardado em uma geladeira.

 

Ela chora. Chora a eternidade dos três últimos dias. A despeito do pesadelo real pela morte súbita de um homem forte, jovem e com tanto a realizar, o luto é adiado. Ela chora pela vida e as impossibilidades do ter sido.

Nos insondáveis de seus sentimentos, vagueia o verde do corpo inerte. Nas suas mãos, o impregnável frio da pele rija.

 

Do outro lado das montanhas nevadas, o sol brinca nas folhas dos plátanos.

 

 

dezembro, 2016

 

 

Maria Balé é pós-graduada em Comunicação Corporativa pela PUC-São Paulo. Produtora de textos, cronista, contista e fotógrafa. Tem curso de Extensão Universitária na disciplina Diálogos entre Filosofia, Cinema e Humanidades (PUC-São Paulo) e de Roteiro de Curta-Metragem pelo Espaço Unibanco de Cinema, curadoria do roteirista Di Moretti. Integra o elenco das antologias Damas de Ouro & Valetes Espada, 1 e 2 (Editora Mguarnieri), Hiperconexões — Realidade Expandida (Patuá). Venceu, por 4 vezes, o primeiro prêmio Acesc de Literatura São Paulo, categorias crônica e conto.

 

Mais Maria Balé na Germina

> Contos