©mira nedyalkova
 
 
 
 
 
 
 

CIRCE

 

 

Porque eu os amava

me encerraram aqui

nesta ilha

neste corpo

 

Transformo-os

no seu melhor

mas não posso beber

do meu próprio veneno

 

Por anos esperei

no topo deste penhasco

 

Ele não voltou:

 

ensinem-me algo do seu mundo

que eu ainda não saiba

 

 

 

 

 

 

EM TERRA

 

 

Me chamam de algum lugar de dentro.

Som de ondas, de mar batendo em vão contra as pedras,

de ferros se chocando no fundo do oceano.

Fora, as plantas crescem.

 

Sob minhas unhas ainda há terra

com que semeei os mortos.

Eles vingaram.

No quintal dão frutos doces

mesmo quando não maduros.

Nos vasos — pequenos —

estendem os caules e as folhas

num emaranhado confuso de liberdade

que as mãos

— antes de serem raízes —

não puderam tatear.

 

Nunca lhes falta água.

 

 

 

 

 

 

A chat with Chet

 

 

Gosto mais de sua voz agora

grave, baixa, pesada

pela força de atração da terra

sem aquele caráter flutuante de quando você era

um rapaz bonito e perfeito.

 

Gosto da economia de suas notas

e da sonoridade que elas adquiriram

depois que você perdeu os dentes.

Gosto mais de você sem dentes

e dos sulcos que surgiram das profundezas de sua face

depois que a máscara uniforme de garoto se quebrou.

 

Queria ter podido afagar todo esse seu rosto verdadeiro

quando você caiu daquela janela em Amsterdã.

 

 

 

 

 

 

Poeminha criacionista

 

 

                   Para Marcelo Donoso

 

 

Pisava com leveza nos presságios

Tocando cada lugar de sua ausência

Onde não há água para respirar

 

Todos os seres têm seu rosto

Inclusive o menino estrangeiro de cabelo mapuche que pela primeira vez

[me beijou na saída da escola

 

Me leve para o seu deserto

Para o meu elemento

Lá onde céu nenhum "nos protege de nós mesmos"

 

Abri a janela dos seus altiplanos

Para nadar nos seus olhos:

Faz frio demais quando estamos sozinhos

 

O que você vê nos olhos de quem olha?

Atrás de mim me espreitam três mil páginas de Bolaño

 

Trancarei o medo em meus braços

Com a chave que usou para abrir a jaula onde me esqueceram desde o

[século XIX

 

Sobrevivo há muito tempo

Das lembranças que não tivemos

Porque éramos coisas de outros donos 

 

Agora moro em um novo altar

 

 

[Cartagena de Chile, 1948]

 

 

 

 

 

 

Recreio

 

 

Não tenho pares.

Só ímpares.

 

 

 

 

 

 

Mudança

 

 

Os objetos nas caixas

urdem uma vingança

que se dará sem som

e sem movimento

 

Os objetos nas caixas

transpiram entre folhas de jornais

enquanto esperam com paciência

serem arremessados no vazio

pela janela do mais alto andar

por quem um dia há de arremessar

também

a si mesmo

 

 

 

 

 

 

Caminho de Bashō

 

 

O que diz respeito à montanha

Aprenda da montanha

 

O que diz respeito ao vulcão

Aprenda do vulcão

 

 

dezembro, 2016

 

 

Leila Guenther publicou os livros Viagem a um deserto interior (Ateliê Editorial); O voo noturno das galinhas (Ateliê Editorial), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e editado em Portugal (Nova Delphi); e Este lado para cima, (Sereia Ca(n)tadora, Revista Babel). Participou das antologias 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (Geração Editorial), Cusco, espejo de cosmografías: antología de relato iberoamericano (Ceques Editores), Outras ruminações: 75 poetas e a poesia de Donizete Galvão (Dobra Editorial), 70 Poemas para Adorno (Nova Delphi), entre outras. Escreve o blogue na linha da vida.

 

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