©mattieu boreil
 
 
 
 
 
 
 

QUERIDO DIÁRIO

 

 

Janeiro

 

 

Feliz 1961! Ganhei um diário. Para escrever o que quiser, contando tudo de mim. Da rua onde moro, esse nosso pedaço que parece uma vila, perto de uma praça. Aqui todos se conhecem: nós — meninos e meninas —, pais, os donos das lojas, porteiros. Parecemos uma família grande. Tenho muitos amigos, somos um bando. Minha idade? 11 anos. É uma idade engraçada, pelo menos para mim é. Sei que sou criança ainda. Gosto de praia (muito!), nadar, correr, vôlei, queimado, andar de bicicleta feito louca pelas ruas.

Só uma coisa é estranha e diferente, estou sentindo umas coisas no corpo que não entendo.

 

 

Janeiro

 

 

Acordei animada, como sempre, tomei café da manhã e me vesti. Short vermelho — estou sempre de short — blusa branca, sandálias (detesto sapatos fechados). Fui me olhar no espelho. Achei legal. Passei a mão pelo meu corpo. Ainda não tenho peitos. Tenho pernas grossas que todos acham muito bonitas. Quero é ter peitos.

Fui procurar meus amigos, mas não encontrei nenhum, então, fiquei na parte de trás do prédio, perto da garagem. É um espaço grande, onde brincamos. Encostei num dos postes finos, azuis, que ficam entre as vagas dos carros. De repente, me vi apertando o poste com as pernas, sentindo uma aflição gostosa, apertando e me esfregando mais. Senti um calor forte numa parte do meu corpo, onde nunca tinha sentido antes. Minha calcinha ficou molhada.

Até que minha amiga chegou, gritou meu nome. Pegamos as bicicletas para dar umas voltas.

 

 

Fevereiro

 

 

Fui convidada para uma festa! Nem sei como vou convencer meu pai a me deixar ir, ele não deixa nada. Só que vou dar sorte. Sei que eles vão sair hoje, ele e minha mãe, então, posso enrolar as empregadas. A babá diz que não pode comigo mesmo, coitada. Como sou a preferida — faz tudo o que quero — é só pedir com jeitinho. Duas das minhas amigas irão. Vai ser minha primeira festa de dança, mal posso esperar.

 

*

 

Fui. Não conhecia ninguém. A dona da casa era amiga da minha amiga. Entramos, estava um pouco escuro, nenhum adulto por perto. Acho que os pais dela viajaram. De repente, um menino chegou perto de mim. Disse que era o Jorginho e perguntou se eu queria ser a namorada dele. Bonitinho, cabelos pretos encaracolados. Eu disse sim. Ele me chamou para dançar uma música lenta. Dançamos (muito devagar), bem colados. Quando acabou, me pegou pela mão e me levou para a varanda. Sentamos no sofá e ele começou a me beijar. Nunca ninguém tinha me beijado! Ele me deu muitos beijinhos, bem pequenininhos. No meu rosto inteiro, no pescoço. Bem devagar e sem parar. Eu era toda beijos. Até que, sua boca na minha, senti a língua dentro da minha boca, meu primeiro beijo! E um calor forte lá embaixo.

 

 

Março

 

 

Acho que depois desse namorado da festa, comecei a gostar mais de meninos. Chamei o Antonio Jorge, meu amigo mais bonzinho, para a escada do nosso prédio, e perguntei se ele queria brincar de beijo. Ele me olhou esquisito e disse que nunca brincou. Então mostrei a ele como se faz.

 

 

Março

 

 

Agora, todo dia, o Antonio e eu vamos para a escada. Quero brincar de mais coisas. Levanto a blusa e peço para ele beijar meus peitos. Ele responde que a mãe vai muito à missa e que o que estou pedindo é feio. Tanto insisto que ele beija, e gosto muito.

 

 

Abril

 

 

Ele não quer mais brincar de namoro comigo. Disse que só brinca de queimado ou bicicleta. É um chato.

Perguntei para minhas amigas sobre beijo. Nenhuma gosta desse assunto, gostam é de bonecas. Meninos, só para brincar de vôlei e queimado. Aí, resolvo não contar nada. Pra quê? Melhor é procurar outro menino.

 

 

Maio

 

 

Conheci o Paulinho! Ele mora bem perto da minha casa. Logo, começamos a namorar: ele também gosta de beijo. Tem 12 anos. Me convida para ir à rua dele, onde tem um galpão vazio. Lá, nos beijamos bastante. Ele também faz uma outra coisa. Tira o pinto para fora e fica mexendo, para cima e para baixo, bem rápido, e diz que quer ejacular. Não consegue, mas tenta todos os dias.

 

 

Junho

 

 

Não quero mais namorar o Paulinho. Ele só fica fazendo o que contei, é chato, só pensa nisso, quase não beija mais.

 

 

Julho

 

 

Arrumei um outro namorado. Lindo, cabelos pretos, olhos cinzentos, o Hiltinho, primo de um amigo que mora no prédio em frente. Nos beijamos muito e ele diz que tem um amigo de 14 anos e que ele mora com a mãe, que sai o dia todo para o trabalho e ele fica sozinho. Falou que ele tem umas revistinhas muito legais e me convidou para ir lá ver. O Hiltinho tem 11 anos, mas tem um amigo de 14! Que legal.

 

 

Julho

 

 

Fomos. O amigo dele é grande mesmo, tem até um pouco de barba. Entramos e ele pegou as revistas. Hiltinho sentou-se ao meu lado, me deu um beijo, me abraçou e começou a mostrar a revista e a ler para mim. São estranhas. Preto e branco, com uns desenhos de homens e mulheres nus. As mulheres, com peitões; eles, com uns perus enormes, e cada quadrinho é beijo ou esfregação e outras coisas. Comecei a ficar nervosa, com muito calor, molhada. Hiltinho também ficou nervoso e com a outra mão tirou o pinto para fora. O amigo também tirou o dele, é enorme, parece os da revista, e ficou mexendo nele bem rápido, sem parar, para cima e para baixo. De repente, deu um grito alto e, quando olhei, vi que estava esguichando um leite parecendo mingau. Fiquei agoniada, pedi ao Hiltinho para ir embora.

 

 

Agosto

 

 

Hiltinho volta de vez em quando. Fomos outra vez na casa daquele amigo. De novo, olhamos as revistas. Só que dessa vez Hiltinho tirou o short, cueca e também tirou meu short e a calcinha. Deixei. Deitamos no sofá e ele subiu em cima de mim, o amigo olhando. Ficou deslizando, não estava pesado, mas achei chato. Pedi para ir embora.

 

 

Agosto

 

 

Não sei se ele ficou zangado, porque não tem aparecido mais. Já o amigo grande quer ser meu amigo e me convidou para ir às escadas do prédio dele. Fomos. Ele me empurrou para uma parede e começou a me abraçar e se esfregar em mim. Senti uma coisa grande e dura me encostando. Mesmo os dois de shorts, senti. De uma hora para a outra, também comecei a me esfregar muito nele, um nervoso grande. Nos agarramos com tanta força, que machucava. Ficamos assim um tempão, gemendo e respirando rápido, até que ele me molhou toda com um esguicho. Fomos embora.

 

 

Agosto

 

 

Agora fazemos isso todos os dias, várias vezes, no prédio dele, nos dos vizinhos, no meu. Ficamos, sempre, muito nervosos os dois. Já começamos a nos agarrar no elevador. Temos medo de alguém ouvir e abrir a porta e ver, mas mesmo com medo, continuamos. Em algum momento, ele me molha e se acalma. Nunca fico calma, meu nervoso não passa.

 

 

Agosto

 

 

Ele pediu para eu ir à casa dele, de novo. Sozinhos, não, disse. Vamos chamar alguns amigos para ver as revistinhas. Chamou três meninos. Dessa vez, ele leu a revista. Todos quiseram tirar seus pintos para fora. Ele pediu que eu tirasse o short: queria olhar. Quando tirei, os outros meninos avançaram em mim para subir e deslizar. Não gostei, pedi a ele para ir embora. Depois que esguichou, na pia, me levou para casa.

 

 

Setembro

 

 

Quase sempre, ele diz que os meninos querem ler as revistas de novo, não gosto, mas vou. É sempre a mesma coisa chata. Prefiro ir com ele para os corredores.

 

 

Setembro

 

 

Problemão! Um dos meninos contou para o meu irmão mais novo essa coisa das revistas. Ele ficou uma fera. Me bateu, ameaçou, disse que ia contar ao papai, que papai ia me matar, me chamou de puta e galinha. Agora estou frita, tenho que fazer tudo o que ele quer.

 

 

Outubro

 

 

No colégio, um menino lindo, louro de olhos azuis, Vitor, me deu um cartão de Valentine's Day. Disse que gosta muito de mim e quer me namorar sério. É muito bonito, inteligente, e tem minha idade. Disse que sim.

 

 

Outubro

 

 

Vitor me leva para passear, tomar sorvete, e para beijar na Pedra do Arpoador. Ele me abraça forte, beija e diz que me ama.

Um dia, voltando do colégio, perguntei se ele não queria entrar num prédio qualquer do caminho. Ele não entendeu, então expliquei que nós ficaríamos no corredor, ele encostado na parede e eu  iria abraçar e beijar bastante. Não sei se ele achou legal, mas como gosta muito de mim, disse sim.

Gostou. Agora, todo dia, paramos no mesmo prédio para nos agarrar no corredor.

 

 

Outubro

 

 

Para o meu amigo vizinho, disse que meu irmão descobriu e que ia contar ao meu pai, que não quero ir mais para nenhum corredor. Ele ficou assustado.

Os outros meninos da rua debocham de mim pelas costas, fico muito triste e com muito medo. As freiras do meu antigo colégio diziam que sexo é pecado mortal, é para levar ao fogo dos infernos. Acho que o que faço é sexo... Não é de propósito, não sou má, só não sei o que fazer para parar.

 

 

Novembro

 

 

Meu irmão me chama o tempo todo de galinha. Faz cocorocó. Peço para ele parar, por favor, digo, ele não para. Diz que vai contar para o papai, me ameaça, que só fica calado se eu der meus patins novos, que papai trouxe da Inglaterra, para ele tirar as rodas e fazer carrinho de rolimã. Ah, isso não. Meus patins! Chantagem. Choro e choro, me tranco no quarto para chorar mais.

 

 

Dezembro

 

 

Vitor e eu continuamos a namorar nos corredores. Sempre com muito medo de aparecer alguém. Não moramos no prédio nem estamos de visita. Nunca apareceu. Hoje, ficamos mais tempo e, de repente, ele estremeceu e gritou: Eu te amo. Me deu um beijo demorado e estava com a calça toda molhada. Foi me levar em casa, nem quis tomar sorvete.

 

 

Dezembro

 

 

Acho que vou parar de escrever aqui. Acabou o diário. Cada dia fico mais nervosa, vivo assustada por nada. Meu irmão não para de me atormentar. Me sinto uma pecadora, das piores. Fui procurar no dicionário, "galinha" é uma coisa bem feia, é ser prostituta, ter muitos homens e gostar muito de sexo. Não consigo deixar de namorar e gostar. Tenho agora muito complexo, me sinto errada, diferente, estou com medo de perder minhas amigas. Não posso falar disso com ninguém e é muito difícil suportar sozinha. Acho que estou condenada mesmo.

Nunca mais quis comer galinha e quando a empregada diz que é esse o almoço, digo que estou sem fome.

 

 

FIM.

 

 

Março/2011

 

 

Acabei de voltar de um jantar maravilhoso. O de confraternização dos alunos do colégio em que estudei. Umas 45 pessoas, entre alunos e professores, amigos de uma vida. Vários famosos das artes, música, psicologia, arquitetura. Muitas recordações, gargalhadas e, quando vi o Vitor, me lembrei do meu diário. Na hora de ir embora ele me ofereceu carona, tinha dito que estava sem carro, quando sei que vou beber, não dirijo. Viemos devagar (era perto), curtindo muito, conversando. Disse que estava casado com a mesma mulher há muito tempo, os filhos grandes.

Paramos na porta do meu prédio, ele se inclinou para beijar minha boca, virei e ofereci o rosto. Sem graça, pediu desculpas, claro que disse que entendia, sem problemas. Então, ele ficou bem sério e falou que precisava dizer uma coisa muito importante. Fiquei tensa, agoniada, lembrando do passado, não tinha a menor ideia do que poderia ser. Ele continuou dizendo que a mulher tinha muito ciúme de mim. Pensei: por quê? Que mulher louca será essa? Claro que só pensei, para ele perguntei por quê. Ele contou que tinha falado com ela, mais de uma vez, sobre os detalhes do nosso namoro pré-adolescente. Continuei muda, sem entender por que ele tinha feito isso e por que estaria me falando agora. Nessa hora, ele me olhou, daquele jeito dentro dos olhos, e falou: Como eu poderia esquecer a mulher maravilhosa com quem tive o primeiro orgasmo da vida?. Então, como um raio, veio à minha cabeça a imagem de um menino louro, de olhos azuis, estremecendo e gritando "EU TE AMO", num corredor de prédio. Dei-lhe um abraço apertado, chorei e disse: Ah, querido, muito obrigada.

 

 

 

 

MÃE

 

 

Costumava ficar confusa quando pensava em minha mãe. O que era uma mãe? Nem sabia, também, se ela era feia ou bonita. Baixinha, cabelo castanho encaracolado. Depois, cabelo louro claro, mais curto e liso. Será que era a mesma mãe? Estava sempre ocupada, fora de casa. Trabalhando ou jogando cartas com as amigas. Ela adorava jogar cartas. Tinha tantos baralhos na cômoda do quarto! Ninguém podia pegar nenhum. Criança não joga cartas, amassa, e não embaralha, espalha. Eu só ficava olhando, com olho grande, aqueles desenhos de flores coloridas no plástico. No quarto da mamãe tinha muita coisa. Armários, mesinhas, cadeira, roupa, chapéus. Às vezes, via também várias camisas do papai jogadas no chão. É que ele vestia e tirava rápido, jogava longe e dizia que estava sem botão, de novo, droga, e mamãe sabia que papai só gostava de camisas com muitos botões.

O que eu não gostava no quarto era uma janela que ficava mais pra cima da cama. Detestava. Em algumas noites ouvia minha mãe dizendo que ia sentar no parapeito (a babá explicou que era a beirada de madeira) e que ia pular. Eu, no meu quarto tentando dormir, não gostava de ouvir isso, não. Nem os gritos e barulhos. Tampava os ouvidos com o travesseiro. Melhorava só um pouco. Eu ficava pensando: e se ela pulasse e quebrasse um bocado de ossos? Ou as pernas gorduchas, que eu achava lindas? Meu pai dizia que eram lindas. Também dizia Babs (o apelido que ele deu pra mamãe), sai daí. Dizia gritando.

Eles gritavam bastante todas as noites na hora de dormir. Quando não gritavam é porque saíam, eles gostavam muito de sair. Então não tinha brigas, mas também não tinha pais. Nem paz. A babá e a outra empregada se vestiam com roupas arrastando-se pelo chão, chapéus de palha, e assustavam a gente. E não era carnaval. Eu fazia xixi na cama todas as noites, tinha muito medo do escuro. Quando não estava fora de casa ou brigando, não me lembro muito da minha mãe. Sei que ela gostava de fazer macarronada. A cozinheira ficava só olhando e ajudando, quem fazia era minha mãe. Era o dia da semana em que eu mais gostava do jantar.

Ela não me levava ao colégio. Nem meus irmãos. Éramos todos semi-internos, quer dizer, íamos para a escola às 7h e voltávamos às 17h. Ônibus nos buscavam e traziam de volta. Cada um estudava num colégio diferente e tinha um ônibus diferente. Na rua, na porta de casa, ficavam em fila nos esperando. A babá corria de um lado pro outro, nos apressando, sempre atrasados. Não sei como uma babá podia tomar conta de tanto irmão. Mamãe não conseguia. Ou não queria. Deve ser porque era uma babá grande, alta. Papai também era muito alto e forte, e trabalhava muito também, muitos hospitais, de dia e de noite. E conseguia tomar conta de todos os filhos. Mamãe, coitada, era uma mãe baixa. Que não ria muito. Papai ria muito e falava alto e forte.

Quando íamos à praia, ele ficava em pé, à beira da areia, olhando-nos mergulhar, nadar e furar ondas. E gritava e batia palmas e dizia mais longe, mergulha mais! Mamãe ficava na barraca, na esteira (não gostava de areia) de chapéu e olhos fechados. Quando chamávamos para ela nos ver no mar, ou pegando tatuí, ou fazendo buracos e castelos, ela não respondia. Minha mãe não escutava muito bem. Também enxergava mal. Usava uns óculos bem grossos.

Meu irmão mais novo era mínimo. Só chamava ele de pingo. Era muito magrinho, tinha cabeça de ovo, virava os olhos para trás e eu corria para chamar mamãe. Ele ficava sozinho no berço e então eu ficava perto, só olhando. Eu já tinha quatro anos. Um dia, meu irmão de nove anos entrou no quarto com uma lata de talco bem grande e disse que ia matar o bebê. Sufocar. Abriu a boca dele, encheu de talco, despejou o resto da lata no corpo e foi embora. Eu fiquei com muita pena, me debrucei no berço, abri a boca do meu irmão e limpei. Peguei ele no colo e fui procurar mamãe. Ela ficou assustada quando contei tudo, e foi dar banho nele. Mãe pequena fica assustada à toa. Depois eu a vi falando pra babá que ficou a-pa-vo-ra-da quando viu um tiquinho de gente com um bebê branco no colo. Bobagem.

Chato era quando minha mãe não ia às reuniões do meu colégio. Todas as mães iam, e passavam na sala para dar beijos nas filhas. Ficava com muita vontade de fazer xixi e então pedia à freira para ir ao banheiro e ela, que detestava esses pedidos, deixava. Outra coisa muito chata nessa escola era ter que ir à missa todos os dias. Confessar todos os pecados e rezar muito. Precisava levar o missal, um livro com capa de couro, escrito em dourado e cheio de folhas muito fininhas. Muitas folhas, um livro grosso. A primeira folha era em branco, escrito no meio "Novo Testamento", e no branco de cima todas as mães escreveram palavras para as filhas. Muitas palavras bonitas. Dedicatória é o nome disso. Não sei por que, minha mãe esqueceu, então, as colegas ficavam rindo e implicando. Até que me enchi, peguei uma caneta-tinteiro do meu pai, e escrevi: "Para minha filha querida, com o amor da mamãe". Assinei assim mesmo, "mamãe". Um dia, a freira pegou meu missal, às vezes, ela pegava os da gente, viu as palavras e me olhou esquisito. Será que ela não achou bonito?

Também nos passeios com papai — ele adorava passear — minha mãe ficava paradona. Cansava. Não gostava de areia, nem de terra. Gostava de drinks. Tinha cheiro de drinks e perfume francês forte (ela gostava de virar o vidro, não usava a ponta do dedo, não). Meu pai tinha cheiro de pinheiro. Alto e cheiroso. Nós íamos para Itatiaia nas férias e lá tinha muitos pinheiros, então decorei o cheiro.

Vou ter um irmãozinho! A barriga da mamãe tá bem grande. Vai ser o último, ela disse pra babá. Dá muito trabalho, cansa. Agora minha mãe não vai poder se sentar na beirada da janela. E se ela escorregar? O bebê pode ficar assustado. Também não vai poder gritar e brigar muito com papai e fazer tanto barulho. Como o bebê vai descansar?  E a outra, uma que ela pergunta sempre para o papai, a vagabunda, também não vai poder tirar o papai da gente. A outra não tem barriga, a mamãe tem. E vai acabar essa história do papai sair na noite escura batendo a porta e mamãe correndo atrás dele, atravessando a rua no meio dos carros. Eu vejo da minha janela. Papai sempre diz pra gente atravessar devagar. Porque é perigoso, ele explica. Meu novo irmãozinho vai poder, na Páscoa, procurar os ovos de chocolate que meu pai esconde nos lugares mais difíceis.

Pai grande, quando esconde ovo, é fogo. A gente tem que ir à sala e pegar uma cadeira grande também. Ou deixar que os irmãos peguem tudo primeiro.

 

 

dezembro, 2016

 

 

Helena Britto Pereira (Rio de Janeiro/RJ). Escritora, formada em Comunicação Social pela PUC-RJ. Publicou A menina que não escutava e outras histórias (Kronus, 2013).

 

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