©dmitry rogozhkin
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

A MÁQUINA QUEBRADA DO MUNDO

 

 

e como eu rolasse vagamente

o feed do meu Face, pedregoso,

no fecho da tarde um cisma louco

 

se misturasse ao desengano

do que eu lia

 

lentamente a máquina quebrada do mundo

se entreabriu e disse:

 

— vai, donny, ser tonto na vida!

 

 

 

 

 

 

O PORÃO DAS CÉLULAS

 

                           

                            para joão correia

                            para valdomiro boldrini

 

 

uma fila na farmácia pública:

um exército

de células vencidas, se conforma

 

são semblantes e semblantes alquebrados

desprovidos e calados

nulos, retorcidos

 

imersos na inércia

à espera de uma senha

 

há uma espera que se sustenta

maior do que o tempo que lhes cabe

/ainda/

 

os tubos, as sondas, o pus

os desmaios

a vida se esvai

a vida /ex/ vai

no rebanho semimorto

na farmácia pública

 

 

 

 

 

 

E3 4BP

 

 

                            para daniel solimene

 

 

olhe em volta esses fantasmas

que pingam do teto

que saem pela torneira

que dedilham seus instrumentos

que corroem seu sono

que minam seu lar

 

esses fantasmas ressurgem

do cemitério ao lado,

dos cascalhos que guiaram os passos

na noite

 

esses fantasmas esquálidos

falsificam nossas dignidades

desafiam sanidades

e parecem rir por baixo da ponte

 

o que de verdade há nisso

é que esses fantasmas só enaltecem

aquilo que o dia não nega

aquilo que a luta não cala

e aquilo a História legitima

 

debaixo de cada teto invadido

mora um lar feito de suor e música

moram notas dissonantes

sons e imagens que exorcizam

 

e o sono não se cala / não deve se calar /

por espectros ruidosos

de fúria

inveja e retaliação

 

a música é a retaliação

dos medíocres

a música e

somente ela

 

 

 

 

 

 

CREMATÓRIO

 

 

a fuligem de vida

recobre a efêmera

lírica do nada

 

o mínimo sentido

em tudo quanto

não foi

 

o resto finíssimo

espalhado ao vendo

do acaso final

 

era o calor da fornalha

toda a síntese do

vital derradeiro

 

a última febre

do corpo

 

a convulsão da

passagem

 

um candelabro de luxo

na carne, no osso

na desvida

que é um banquete

para espectros

vindos do soslaio

curvo do tempo

 

embalagem de madeira

fina

entalhes rebuscados

que lacrimejam

o escuro desmatamento

do plasma e seus glóbulos

 

de trás das unhas

brotam laivos

da fragilidade humana

 

e elas seguem:

labaredas precipitam

bolhas como beijos últimos

roubados pela amante

morte

 

 

 

 

 

 

CURIOSIDADE #1

 

 

curioso como se punem

os tiranos, falsos

falaciosos

esquizobestas

tirando-lhes, /tal qual se aparenta e se é/

com a mão

do todopoderosode(?)us

 

quando ao certo se vê

/por entre as pernas de cachorra/

que lixo recolhido, guardando certo prazo

tornou-se

com a mão

do todopoderosode(?)us

 

a próxima bunda infecta

que contamina o trono

do rei

 

 

 

 

 

 

DISSONANTE

 

 

você com seu piano

virulento

dedilhando o marfim gélido:

 

miramos as luzes de fora

Sem brios, sem dores

Sem a voz esquizofrênica

interior

 

só o que pinça no tímpano

são lascas

em notas tortas

sol               lá                 si

 

 

mas

 

sabe,

 

o homem damérica vai subir

de novo e sempre

ao céu infinito em busca

de vida

 

e eu

querendo saber por que

a vida de lá não desce

 

para exterminar

a pouca vida de nós

aqui

 

e

um dia

eu acho você capaz

de se matar por causa

de minha causa

 

só para me 

cuspir

 

 

 

 

 

 

ANALISTA

 

 

(vasta natureza)

 

         a única flora que me importa

 

é        intes             ti           nal

 

e        fru               í             da

 

do      fim                          pro

 

         co                me         ço

 

 

 

 

 

 

MARQUE EM MINHA LÁPIDE

 

 

a mim não interessa
o reconhecimento póstumo
pois sou pavão demais
pra virar morto famoso

 

 

 

 

 

 

SOPA DE GANGRENA

 

 

os abençoados mendigos

curraram Viridiana

durante a benevolente ceia

 

de cada lágrima do pus

expelido das manchas da pobreza

da casca de plaquetas secas

dos poros tóxicos de fedor

 

viridiana sorria muda

a música da oração inútil

enquanto as línguas verminosas

as barbas engasgadas

os olhos de lascívia marginal

devoraram sua fé no outro

 

de cada chaga marcada

no corpo vadio putrefato

fervia o caldo grosso do banquete

improvisado aos indigentes

preteridos na vida

 

mas a fera atávica cobra seu preço

e Viridiana viu logo cedo

que a bestialidade no ranho

arfante dos déspotas excluídos

era tão legítima quanto o reflexo

dos senhores burgueses:

 

pelo menos não escondiam

a perversão

embaixo da hipócrita moral

 

 

 

 

 

 

DU MUSST CALIGARI WERDEN

 

 

eu sou aquele que finge dormir

enquanto, de fora, eles fingem te enxergar

eu sou o que executa suas fantasias sonâmbulas

enquanto o boneco mimetiza meu sono

eu sou o achado científico do século das sombras

enquanto a assimetria externa se sua mente débil

rouba o sono da vila de barões e estudantes promíscuos

minha lâmina vai castrar esta lascívia contida no recato imposto

até a minha recatada imposição despertar pelo rosto branco

da relíquia virgem da cidade

 

daí vou me esgueirar pelas ruelas tortas

pelas ladeiras contrapostas

pelo pico incerto

e vou sucumbir à ira da tragédia

pelas linhas de um roteiro recalcado

mas com ela nos braços

para nunca mais

acordar por sua vontade

e verei que jamais serás

caligari

 

 

 

 

 

 

JOHN NASH

 

 

não é somente porque

a menina nunca cresce

mas é exatamente porque

a menina nunca cresce

 

 

 

 

 

 

LUCIANA

 

 

                   eu vou chorar lágrimas de crocodilo

                   (João Penca)

 

 

minha língua irá contar lenta

e suculenta

cada vértebra tua, da primeira

ao cair das costas lisas e seguir

para o cume de você

onde os pelos eriçados pedem

e imploram o hálito do toque

mudo

 

nossas línguas dançarão

alheias à falácia desse mundo

na madrugada sem fim

somente nossa

e nosso mundo paralelo

 

e entre os fios de seus cabelos

como teia em minhas mãos

implorarei ao mundo oculto

que não seja só um sonho

 

dentro e lento sentiremos

um ao outro por meses-a-fio

e contaremos as gotas do suor

que salga nosso mundo

longe do resto que não nos representa

 

minha língua em seu tímpano

sussurrando o dialeto

secreto que criamos

para nos fazer exclusivamente

uno

 

e arranharei, sedento, seus lados

seus cantos, seus todos

sem deixar passar cada quina

do corpo imerso na lascívia

 

nos entregamos como

fesceninos convictos

ao gozo como se o mundo

inútil fosse, por nosso desejo,

acabar

 

que um dia acabe o mundo todo

e toda a troça da vida, enfim

mas, sigamos em nossa dança

horizontal

febril

demente e constante

enquanto inundo teu umbigo

para voltar à vida real

e sentir a ânsia

a taquicardia doente

que me separa

do próximo gozo

nos cinco dias

no hiato que há

entre o que morre lá fora

e o que vive

somente por nós

 

 

 

[Poemas do livro Zero nas Veias. Patuá, 2015]

 

 

março, 2016

 

 

 

Donny Correia, poeta e cineasta, é mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Letras — tradutor e intérprete pelo Centro Universitário Ibero-Americano (Unibero). Realizou os curtas experimentais Anatomy of decay, Braineraser, Totem (selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e Prêmio Canal Brasil) e In carcere et vinculis. Publicou os livros de poesia O eco do espelho, Balletmanco, Corpocárcere e Zero nas veias. É coordenador de programação da Casa Guilherme de Almeida.

 

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