©julien coquetin
 
 
 
 
 
 
 
 
 

PRIMEIRO AUTO-RETRATO DE 2016

 

 

Eu sou um homem pobre diante de uma falésia,

da imensa obra interrompida das montanhas

e das formigas e a colheita é o que nasce

da amarga mesquinhez de um rio estanque.

Eu sou uma falésia caindo diante de um homem faminto.

 

 

 

 

 

 

TORPOR

 

 

O céu branco e a garoa contínua

dos dias nulos. A brasa queima lenta

na extremidade dos cigarros e o fel

do tédio se desenrola como um novelo

de silenciosa névoa — como reflexos

de sombras que passam ao breu

no relento do campo a anoitecer.

 

Não ignoro a grandeza extraviada

em mim — essa imensa ausência de força

e imagino que os pássaros, ainda

os de voo mais amplo, também percebam

às vezes como o coração se dilata

até se tornar maior do que o peito

e então tudo é limite.

 

 

 

 

 

 

ONDE O POEMA CHINÊS DE MIL ANOS ATRÁS?

 

 

Eu tenho todas as palavras

para um poema como aqueles chineses

escritos há mil anos.

A palavra pássaro, a palavra flor,

rouxinol azul açude

que me trouxe tanto terror

quando menino por evocar

a água presa nos pulmões de um afogado.

E eu tenho a palavra água, a sua transparência,

e mais de uma palavra para dizer

vermelho, para dizer sol

e a palavra olhos para fixar o voo

de uma ave até ela parecer gravura

entre altos edifícios com lençóis coloridos

pendurados nos varais das janelas.

Onde então o poema chinês escrito

há mil anos agora em mim?

Em meio a tanta beleza, o poeta Du Fu

viu crianças morrendo de fome,

guerreiros esquartejados eviscerados

e eu também habito uma terra endurecida

e tenho a palavra peixe num aquário imundo.

 

 

 

 

 

 

O GRANDE SENHOR JOHANES VERMEER

 

 

Todas as histórias que tenho com morangos são iguais:

algum ambulante os vende nas esquinas da cidade

e eu aproveito a promoção — hoje foram duas caixinhas

por dez reais, morangos agrotóxicos, gordos,

alguns machucados como o joelho esfolado de um menino

que caiu enquanto perseguia um pássaro;

é preciso, pois, selecionar os morangos

e nunca conseguimos devorá-los a tempo de evitar

que apodreçam e fiquem na geladeira, feridos, mofados,

como uma cigarra mumificada entre tábuas podres;

ou então preparamos suco de morango, hoje foi assim,

no final do domingo, com aquela tristeza de fuligem

e aves marias, com todas as contas não pagas

suspensas em estado de agonia e recreação;

um pouco antes eu e Ana andávamos pela cidade,

comentei de uma conversa tida no facebook com um amigo

com o qual não falava há anos, ele estava

em Nova York com a mulher, filhos, pais

e pensei nisso por um momento: na glória amarga

de ter chegado longe demais e depois contei

três mendigos no espaço de cem metros, dois

na São Sebastião, outro na Cerqueira César,

dormindo, anoitecendo, e então em casa

resolvemos não desperdiçar os morangos;

ao suco, portanto, ao suco servido numa jarra

de vidro fino posta na mesa em que ainda havia

dejetos da manhã — café frio no fundo das xícaras,

pão endurecido, fatias de um presunto esquecido

fora da geladeira, depois de um gole Ana

foi beber o suco na cama, escurecia

enquanto ela bebia, escurecia e depois de um tempo

seu rosto era apenas iluminado pela luz do écran

do smartphone e ao seu lado, inacabado, translúcido

na penumbra, o copo de suco e a absoluta incapacidade

de reter esta ausência de luz é outro modo de dizer

que o grande Senhor Johanes Vermeer está morto.

 

 

 

 

 

 

DIZER QUE UM HOMEM NÃO É FRUTO

 

 

Dizer que um homem não é fruto

do seu tempo, do seu câncer

em estéril metástase é absurdo.

Sou o dia pleno e caduco,

a liberdade de carros que avançam

na estrada, tornando-se propagandas

de tevê quando recortados

contra o amarelo extremo.

Sou uma das sombras que ferem

o chão, os mares e é punhal

no peito hipócrita a visão

do planeta orbitado por dejetos

como uma colmeia afogada no azul.

Sou um dos homens que retalham

as palavras, que as dissecam

como um aluno sádico

e desinteressado e depois

na prova de anatomia não sabe

desenhar o seu coração

e apenas se lembra, aturdido,

de um par de asas desmembradas.

 

 

 

 

 

 

AS POSSIBILIDADES DA CHUVA

 

 

O verde das árvores tinge-se de uma sujeira castanha,

a relva torna-se bronze como palha e terrenos baldios

inteiros apresentam um tom enegrecido de um incêndio

íntimo do dia. Na manhã depois o caminho segue

sobre uma terra que estala a cada passo, entre garrafas

de cerveja, ossadas, embalagens de comida e preservativos

que o fogo desenterrou. Com sorte, se é a desolação

que o espírito anseia, existem carcaças

carbonizadas de automóveis e ônibus e então é possível

sentir-se um pouco como as crianças que brincam na célebre

fotografia de Doisneau — La Voiture Fondue.

Há quem realmente acredite que uma chuva que não seja

negra lave o horizonte e que a meia-noite respire

como um puro rio sem margens? Insistem os augúrios

meteorológicos, esperança minguada: hoje

e amanhã contam com 80% de possibilidade de voltar

a chover e há mesmo quem espere

que a chuva cumpra todas as suas possibilidades,

devolvendo ao homem o sono e o sonho, apaziguando

a febre das raízes, recompensando a tenacidade

dos roseirais, sendo o doce, exausto e esperançoso

murmúrio de amantes na penumbra. Lembras-te

de quando deixamos a sombra vir? A chuva

cintilava na contraluz ao cair sobre o telhado

vizinho, sobre as asas encharcadas dos pássaros

doentes como ratos, mas de voo infinito. Não será

assim hoje e amanhã. A chuva tornou-se rude.

Talvez como um velho canceroso a pigarrear

ou como a fúria com que os homens aceleram os carros

quando presos no congestionamento, e vem sempre

antes de Sísifo atingir o cume outra vez

e antes de qualquer bolsa de valores fechar o pregão

e enquanto um rio se transforma no Ganges

e uma gaivota devora os olhos de um afogado

sob a noite que, manto imenso,

abriga cada mágoa e sonho desterrado, dizendo ao luar

enlameado "não, não machuque" — sempre

precedida de um vento áspero,

um vento serpente que traz em seu bojo

um cheiro de pólvora e óleo diesel queimado

que vai revirando o vazio e fazendo um trabalho

idêntico ao do fogo: exumar, elevar

torvelinhos de enxofre, deixar que os corações

transidos de medo estremeçam

diante da suave dança das palmeiras

que encantadas se movem como serpentes.

 

 

 

 

 

 

POETA DO SEMÁFORO

 

 

Vou lançar a teoria do poeta do semáforo.

Poeta do semáforo:

Aquele em cuja poesia há o desprezo bruto da vida.

Vai um homem sórdido,

Sai um homem sórdido da concessionária com um novíssimo Mercedes Benz e no

primeiro

sinal vermelho vem um aleijado vendendo fome berrando em seus ouvidos.

 

É o poeta do semáforo

E o seu poema é gritar para o próprio rosto refletido

No vidro escuro do carro do indiferente homem sórdido.

 

Sei que há esquinas sem aleijados em lindas cidades do mundo

Mas estas ficam para os homens bomba e para os poetas ciclistas que

envelheceram sem nunca ter atropelado um cachorro.

 

 

 

 

 

 

O GRANDE MOINHO

 

 

Sou grão e sou ventania

para o grande moinho

por onde passa a dor,

a violência, o silêncio

e a mentira ruidosa que,

de tão ruidosa, parece

verdade invencível.

Sou grão e sou ventania

para o grande moinho

mas antes, fora ou depois dele

sou o grão que a ventania sopra

e a ventania que sopra o grão:

semente e desperdício, esperança

e fome. Eu sou Quixote

para o grande moinho

que são os homens podres e sou

Sancho, atrapalhado e impotente,

perante o grande moinho que aniquila

o magro companheiro

e antes e depois da grande derrota

sou Rocinante pastando a grama

que o imenso moinho semeou

com as suas engrenagens de raiva e ódio,

com os seus grão degenerados,

com a leve ventania que os poetas cantam,

com a água escura que os poetas bebem.

 

 

 

 

 

 

POEMAS DE AMOR

 

 

1.

 

As fotografias do nosso casamento reveladas

com atraso, danificadas, esfumadas. A paisagem

envolta por uma luz verde quase formol

como nos filmes de Tarkovsky é

a distância, o arvoredo, o coração da mata

atravessado pelo vento, como são os rostos

dos amantes em pesado silêncio.

No verde quase formol degenerado

do sépia somos radiantes, porque esta

é a qualidade de certos fantasmas:

parecerem ainda vivos,

parecerem quase livres

nos dias em que fomos alegria embalsamada.

 

 

2.

 

A luz clara, o sol renovado, o amor

paciente em nós é enxada

escavando e sepultando sem trégua.

 

 

3.

 

Há dias de pequenas iluminações,

de pequenos assombros quase

inúteis: aquela tarde na varanda

da casa em que teu avô morreu

dois anos atrás, observando

as pessoas saindo da padaria,

as bicicletas subindo lentas,

os cachorros feridos dormindo

fustigados pelas moscas como Lázaros

interrompidos e nós dividindo

o fone de ouvido, escutando

Life On Mars na penumbra do interior,

dissolvidos no desolado esquecimento

de uma entardecer meses após Bowie

tornar-se indistinguível dos outros mortos.

 

 

 

 

 

 

POEMA ESCURO

 

 

1.

 

A cidade cresce para dentro da noite

como o túnel pelo qual sigo

contra os ares empestados, ciente

da morte do canário protetor.

Tenho nos olhos dois espelhos

voltados para dentro, para o escuro

interminável e subterrâneo

e com os olhos assim violados

abrem-se as rotas noturnas

para dentro da noite, para dentro

da terra que guarda dias inteiros

em estado de flor carbonizada.

Estendo as mãos, busco a distância,

tateio labaredas negras, o abismo

raso como um mar que seca.

Na cidade sem árvores

como nomear um impreciso

sentimento de pássaro?

 

 

2.

 

Foi um dia como os mortos

jamais se esqueceram.

Aprendi com raiva a ternura

e há tantas palavras

que poderiam ser sussurradas:

sono, principalmente.

 

 

3.

 

Tantas vezes o amor

foi óbvio como semear a terra

e tantas vezes semeei a terra

com violentos golpes de foice

como se me vingasse e a terra,

também ela vingativa, restituiu-me

as suas ossadas mais persistentes.

 

 

4.

 

A cidade cresce para dentro da noite

com a sua escassez de água,

com os seus caixas eletrônicos 24 horas,

com os seus postos com gasolina adulterada

com os seus homens que na raiva, no sono

e na fome encontraram a mesma verdade

incompleta e caduca.

Foi um dia como os vivos

jamais desejaram.

 

 

setembro, 2016

 

 

Daniel Francoy (Ribeirão Preto/SP, 1979). Participou da coletânea 4 Poetas na Net (Lisboa: Sete Sílabas, 2002), do número 1 da Revista Literária Agio (Lisboa: Artefacto, 2011), da coletânea de poemas mixtape (Porto: doladoesquerdo, 2013) e, como colaborador do revista Enfermaria 6, do Caderno 2 (Lisboa: Fyodor Books, 2014) e Caderno 3 (Lisboa: Fyodor Books, 2015). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Mallarmargens, Parênteses e Escamandro e colaborou com o jornal literário RelevO. Publicou Em Cidade Estranha/Retratos de Mulheres (Lisboa: Editora Artefacto, 2010), Calendário (Lisboa: Editora Artefacto, 2015), e Identidade (Bragança Paulista: Editora Urutau, 2016).

 

Mais Daniel Francoy na Germina

> Poesia [2002]

> A Castração de Kafka