A tensão da anestesia recebe mal a minha insuficiência. Ou qualquer início. Qualquer sinal de estremecimento. (Agora que alguma luz aguenta meu rosto. Agora que alguma luz me aguenta no rosto.) Como transpor. Você diria: como comercializar o que em mim não é perplexidade? Vejo que envelheci. Não produzo mais o mesmo pavor (nem evito nenhum atrito). Mas os sons. Os sons voltaram a ser extensos: aceito — hoje
eu
aceitarei — alcançar uma cidade, qualquer cidade? Suas rugas. E mais ruídos; desloco alguém do silêncio
— quase
vigilante — você não
pede passagem. Enquanto o sol amacia
a
moleira dos
prédios.
O tempo que faz — o tempo que se faz — não coincide com o que fazemos no tempo, não consegue nem se contentaria em coincidir com o que é feito do tempo (ou com o que ainda fará o tempo ou com o que não se fez a tempo). Mas a convivência. A conivência nos contagia — e portanto adoecemos? e no entanto emudecemos? — com a laringe. A
glote.
Com a língua alerta. E o grelo
latejando. La-
te
-jando sem parar sequer
para
respirar. (Cuspo na calma que não me sulca nem me caça nem me disseca nem me devasta; sem parar principalmente para ponderar ou persuadir ou postergar: cuspo — é preciso cuspir — a calma que se quer sedada.)
O
cheiro não apenas o calor do sol aterrissa sem nenhum cuidado enquanto os sons (ainda) se ajustam aos tímpanos (antes atônitos); você leva o rosto até a janela, talvez cambaleando. Depois larga
os lábios
na luz: a manhã encharca os cabelos (e desce pelo pescoço e contorna os peitos e transborda o umbigo e se concentra — uma gota
de instante
— nos pentelhos, que brilham). A manhã
Esta manhã: mais do que vãos. Abre ventres
na gravidade. Enquanto os sons se
ajustam aos
tímpanos, joga; você (junto
com as outras
manhãs desta manhã) joga — eu vejo — as pálpebras
sobre
a cidade. Devagar
é mais vibrante,
não
é?
O sol — sobre a cicatriz; quase em silêncio — o sol: (o nosso sol?): suga toda a cica. Com uma sede suculenta: suga toda a cica de outra vontade impertinente. E aprofunda a violência futura. Ou o gozo, o gozo já frequente. (Já
fremente
?) Meu corpo se alia a tudo que
me
contamina (e por isso é tão frágil? e por isso é também ágil?); esse corpo, este corpo — anzol (ou
usina) de
contratos/clareiras/contorções/cadafalsos: a brisa se abriga em suas brechas — a brisa se abisma num abrigo que
é
todo brechas: bocas: básculas: brânquias: bucetas (bem,
bem) despertas
Então: qual o saldo — qual o salto —
desta
espontânea (ou inespecífica
)
virulência?
A angústia,
mas não só a angústia
;
a necessidade — melhor — a eletric
id
ade de erguer e logo extinguir/de erguer e subitamente expor/de erguer e talvez extorquir/de erguer e sobretudo exorbitar um existir (por
enquanto?) é
o que resistirá; (meus marimbondos
,
meus besouros) dizem: esta eletricidade ou seja esta voracidade ou seja esta responsabilidade — apesar da pressa, do
pânico que
impulsiona a pressa — é o que resistirá: nos premindo:
nos
propagando.
(Os pássaros se aproximam das pedras que mordem as margens do mar.) (O que a solidão nos assegura?) (Os passos se aproximam das pedras que mordem as imagens no ar.) (Desbastando o desamparo?)
De
uma hora para outra. Como que
n
um jorro, os pombos deixam para trás a pele (a minha pele). Atingem a traqueia. Aplacam os pulmões. E se dissolvem no sangue e se dissolvem onde houver sangue; (e) se dissolvem: (e) se dissolvem: (e) se dissolvem — tudo se torna sangue. Ou hematoma? Ou munição: tudo se torna mangue. Quando
a lama
chega na goela?
Os
pombos
nos
ramificam. Nos desenraízam. Os pombos são o continente que nos atrai. E expele. O continente que nos distrai. E excede. Os pombos são a travessia. São o transtorno que se alia ao que não te elimina. Minhas guelras. Nossas
escamas.
Outra barreira
de corais. Aquelas
conchas
ali.
Uma ilha. Pode prosseguir. Os pombos são também uma ilha. E uma ilha. Estou escutando. Uma ilha é suportar a implosão. Ou a impaciência. Um mapa afetivo. No punho. A temperatura da noite. Algum vento
na
palma das papilas. O próximo substantivo.
A ameaça
da permanência. O que turva a dispersão. Um tremor. Ou
isso
, esse estalo que ressoa em mim. A levitação que passa (que passa) por nós. Saber nadar. Uma imprevisibilidade — uma precariedade, sim. Medicinal. A partilha. A intermitência. A ancestralidade do menor tumulto. Um braço; uma bomba
hidráulica. O corpo
que levo
até a voz. O corpo que lavo na voz que lacero. Que lincho. Que limo o corpo que limo ainda com voz que limo enquanto existir enquanto restar voz.
Um
princípio de penetração. Os grandes
lábios maternos
Você quando dança: seu impossível. Seu improvável desabrigo
es
-buracando a gravidade. (Essa mesma
em que a manhã
faz brotar alguns ventres.)
O
barco. A balsa
de uma coragem — de uma coragem? —
encardida
. De costas
na cal.
Aquilo
que retém nossos ossos
sob
as nuvens. (Desejo seus medos.) (De novo.
)
(Desejo seus dedos
dentro
do meu delírio.) (E
sou
insistente.
)
A situação está ficando sangrenta e no entanto detestamos carnificina, como sempre, lutamos para a situação ficar sangrenta e portanto não fugiremos da chacina, isso mesmo, obedecemos menos a um impulso que a uma compulsão, corrente que nos toma e traga ou nos doma e draga, corrente que nos corrói, que nos arrasta e arrasta, corrente que é o ar e a água e o pó e a limalha em nossas cartilagens, em nossos nós ou resíduos, em nossas dobras, em nossas fossas ou glândulas, entre as tensões, entre as torções acumuladas, comprimindo e deformando ou comprimindo e desconfigurando ou comprimindo e desorganizando os órgãos, as palavras doem debaixo da pele, as palavras doem porque não temos mais pele, estamos em carne viva e os cortes e as fraturas e os tumores se multiplicam e incandescem, engolimos alguns dentes e enquanto o fígado e enquanto o pâncreas e enquanto o baço não arrebenta abaixamos e bebemos um gole de gangrena.
Suas
vogais me perfuram; e se entornam (e se entortam) entre minhas brechas: desculpa: entre minhas crateras — todo corpo é abrupto? — sonho uma resposta agora: sondo uma resposta que não desgaste o agora — como a validar isto que
vaza pelas
vértebras enquanto atravessamos
o
tempo (mas não é o transe nem o êxtase nem o estupor de estar e insistir, de restar e intervir no tempo que nos transpira faz tempo).
Con
-tra o pe-
so
da mu-
dez
,
a mor
-da-
ça (a morta
-lha
?
) da pa-
ralisi
-a.
dezembro, 2016
Casé Lontra Marques nasceu em 1985. Mora em Vitória, Espírito Santo. Publicou Enquanto perder for habitar com exatidão (2014), Saber o sol do esquecimento (2010) e Mares inacabados (2008), entre outros. Reúne o que escreve em caselontramarques.blogspot.com.br.
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