©alicia savage
 
 
 
 
 
 
 

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na estrada de terra

da cidade vazia

a criança preta empunha um pedaço de pau.

ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro

quanto ruínas.

a boca intumescida da criança preta gutura

morte ao rei!

e na aridez inalcançável dos pés descalços

resiste

a criança tão criança e velha,

sozinha e livre —

o sino da igreja abandonada toca todo dia na hora errada.

 

 

 

 

 

 

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puta que pari um bicho morto

risco indócil na coxa

barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada

estilhaços imagens

o enquadramento impreciso

aparar as arestas até triturar os ossos do rosto

as unhas perfuram lentas a boca grande calada

é preciso fugir pelas beiradas

sem alarde

 

 

 

 

 

 

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ainda falava em reparação

o nariz bicando a asa de frango frita

boca e mãos luzindo engorduradas —

meu bem, seu amor é patético ao meio-dia.

e a cara amarela desde a manhã

se havia

um grito vinha da cozinha

geladeira velha

bebo água e a voz grave do vizinho me treme

outro copo quebrado

varro mal

esqueço e

ah esse calor terrível

deito no chão —

você acha que vai chover?

 

 

 

 

 

 

 

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as pontas dos dedos estalam na superfície sólida da água e a carne lateja alegre diabólica enquanto a fatia gorda dança severamente aos aplausos do cego que com olhos de não ver tateia os gemidos riscados no chão

 

quem cai na gira não levanta

diz aos gargalhos

a santa de vidro quebrou cedo

olho daqui os pedaços como quem não olha

tem um sorrisinho antagônico

hipocrisia mordaz nas palavras rasas

comiseração e deboche

olho de boi morto.

 

 

 

 

 

 

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amarra pendura deixa pingar

que a terra seca apaga a última gota —

a galinha me olha de um olho só

ciclope de ladinho frango assado papai e mamãe

e o açougueiro gargalha

se sacode todo mole

tem larva na carne fresca e

não tem graça nesse lugar.

 

 

dezembro, 2016

 

 

Bruna Mitrano escreve e desenha. Em 2016, publicou Não (Patuá). 

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