©Christopher McKenney
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Início

 

 

... E não havia nuvens

E não havia homens

O mar reinava absoluto

 

E não era possível

Distinguir o que era céu

Do que era mar

— E tampouco

Onde começava um

E onde terminava o outro —

Porque as distinções

Ainda não existiam.

 

E não havia deuses

E não havia homens

A linguagem não podia nos aprisionar

Porque ela também não existia

 

E não havia papel

E não havia tinta

E os poetas sequer existiam

E não havia nada mais

Do que já não existia por aqui

 

E apesar de não haver

Nuvens, homens ou deuses

E apesar de não haver papel,

Tinta ou poetas

O mundo não era um lugar triste

Porque havia o mar

E havia a poesia

E a poesia era tudo.

 

 

 

 

 

 

Oceano

 

 

Eu não busco a linguagem;

Tampouco as palavras.

A linguagem é concreto;

As palavras, oceano...

 

 

 

 

 

 

Nefelibata

 

 

As palavras se escondem

Nas nuvens

Ao pé

Do ouvido de Deus.

 

 

 

 

 

 

Efêmera

 

 

A Terra boia no oceano negro

E estrelado

Ela dança e rodopia;

 

Ah! Como é bela

E frágil...

 

A Terra é uma bolha de sabão.

 

 

 

 

 

 

Reforma

 

 

Para reformar, é preciso destruir

Destroçar os cacos

Derrubar colunas

Inserir vigas

Assentar o piso

Com cimento

E com a espátula

Lacrar o túmulo.

 

 

 

 

 

 

Perspectivas do de cujus

 

 

Em pé no caixão

— Com as mãos sob o ventre —

Observa-nos com seu semblante cerrado e corado.

 

Para ele, estamos deitados

— pálidos —

Nós, que já morremos.

 

 

 

 

 

 

Uma andorinha

 

 

Uma andorinha só

É mais livre que

Uma revoada

Que não sabe para

Onde voa.

 

Mais importante que o voo

É a liberdade.

 

 

 

 

 

 

Wabi-Sabi – Oceanário de Lisboa

 

 

Por mais belo

E confortável

Que possa ser

 

Por mais aprazível

E próximo ao habitat

Se possa reproduzir

 

Um aquário

Será sempre

Um aquário

 

Uma hora

Os peixes

Vão se cansar

Dos espelhos refletidos

Das mentiras

Da floresta subaquática

 

Uma hora

Os peixes

Vão se cansar

Dos sons

Vindos

Das máquinas

Fotográficas

 

Uma hora

Os peixes

Vão se cansar

Dos pseudossons

Da natureza

E dos 78 troncos

De árvores

Da Malásia.

 

Uma hora

Os peixes

Vão se cansar

Das nossas caras.

 

 

 

 

 

 

Pelo caminho

 

 

Que tristeza ver as cruzes com flores pelas estradas

As borboletas voando

Sem vento

As folhas paradas

Que tristeza ficar

Pelas estradas

 

 

 

 

 

 

Gralhas

 

 

Os poetas

Como gralhas

Disputam

Aos tapas

As migalhas

Deixadas;

 

Voam baixo

Rastejam

São cobras

Sem asas.

 

 

[Poemas de Alçapão. Rio de Janeiro: Oito e Meio, 2016]

 

 

 

junho, 2016

 

 

 

André Ladeia é poeta e procurador municipal. Autor de Suave como a morte (Penalux, 2014) e Alçapão (Oito e Meio, 2016).

 

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