boi da cara

 

 

era simples ser honesto

o que dificultava era ser ouvido. era bárbaro ser tranquilo, pois os mares serenos são meus e são teus. tantas vozes me dizendo, nenhum tímpano me ouvindo. falando, falando, falando. atrofia, trofismo, astrolábios, lábios, lábios

 

e todas as pedras foram pisadas, todos os espinhos foram cravados. nada mais há que torturar, nada mais há de concretude. buscavas algo maior que teus passos, buscavas, buscavas, buscavas

porque nem de longe pareces ser o que és. de noite a gente perde um pouco a noção da diferença

 

parênquima esclerênquima

nervoso

passa por aqui, passa por ali

e a última ficará

e a última ficará

Sinopses de meia bomba

sinédoques de furta-cor

blasfêmias entrecortadas

pela voz do brasil

são meia hora e cinquenta graus

em babilônia 3x4

não verão meus cacos

não terão meus braços

a noite morreu

e nem deu meia-noite

a noite morreu

ainda criança

 

 

 

 

 

 

estado de graça

 

 

juliana vê o trem passar

todos os dias

na sua porta

foi atrás do trio elétrico

quatro noites seguidas

e soube ser o que era trilho

 

amolou os dentes da serpente

amolou o aço mole

da serpente

 

quando puseste meu corpo

entre os corpos

celestes

e fizeste da ausência o pior

dos agrestes

 

não teve graça

alguma

 

agora

qual dessas duas mãos

é a que sua

a minha

ou a tua?

e esse coração

que soa

bate dentro quem?

 

descobri que era o meu peito

que chiava

quando tu foste

embora

 

e antes que perca a graça

 

sorria

não se envergonhe

de mostrar os dentes que tem

e os que não tem

setenta mil reais

quase ninguém tem

os senadores brasileiros  tem

dentes

 

 

 

 

 

 

o reino da fantasia

 

 

pimponeta

petá petá perruge

petá petá perruge

pimpom

assim era ser criança

antes da possibilidade de sermos ignorados

pelos corretores ortográficos digitais

não havia bala soft sabor maçã

e vivíamos com a boca cortada

 

corações, têmporas, batam aqui por mim, tambores de meus mais desertos asilos. queiram, couro duro, cara seca, queiram a carne de meus dedos esfacelada em sua pele! triunfará o silêncio dos passeios públicos vazios? eu quero a música, o timo, tremer. qual o dia perfeito, a noite mais esperada? onde foram parar nossos medos, onde eles foram nos levar? poesia refém nunca, poesia, meu bem,

teu mal.

não bafeja teu hálito de anis nos meus rebentos, tu que batizas o esgoto, tu que nos compras por tão pouco.

 

 

 

 

 

 

aos nanicos

 

 

não tenho um emprego

em quem botar a culpa

de minha mediocridade

mas me dou muito

trabalho

 

as desgraças são

o passado é

de todos

nós

 

não adubo com sal os coqueiros

dispenso a água dos cocos nanicos

 

não suo pra fazer

poesia

é caldo de fruta

podre

 

 

 

 

 

 

bandeira

 

 

pútridos poderes pátrios!

aprumo meu peito de carochinha

tuberculina

e com esta voz

de grafite

desapontado

repito:

pútridos poderes pátrios

 

haveria final feliz

se a morte fosse ainda certa

para todos

 

se estivesse por um triz

se deixássemos estar por um triz

o que nos faz senhoras

e senhores

de qualquer estado

 

 

 

 

 

 

batalhão dos em vão

 

 

daqui soa este traço de gente

onde se encontram

eu e meu fracasso

velhamente de novo

 

rincão dos desencontros

esquina da eternidade

espelho do que já se sabe

 

daqui me valho de um destino forçado

pelo que se acaba assim

inalcançado

 

 

 

 

 

 

chupa

 

 

pega aqui

no meu cano

vê que quente

 

e paga

lá na frente

eu vou voltar

 

chupa aqui

a minha cana

e crê

crê na garganta

 

limpa esse beiço

na barra do meu paletó

de feltro

e não cospe

 

chupa e não cospe

o chumbo

vai até o útero

 

 

 

 

 

 

safo no despacho

 

 

cortarão minha cabeça

na próxima guilhotina

duas quadras à direita

três dedos de canha

 

minha cabeça será cortada

e exibida aos leões desdentados

da praça pública

 

uma bomba d'água

e teu coração dando murros

na ponta de minha adaga

cega

 

na próxima guilhotina

e exibirão aos leões desdentados

para que eles vejam

o que acontece

com quem fere

mas não mata

 

cortarão minha cabeça

e com meus olhos levarão

toda beleza que o mundo me deu

teu coração dando murros

na ponta de minha adaga

cega

 

exibirão minha cabeça cega

amigos

enfeitem com flores e velas

e deixem que as onças devorem

meu corpo

na beira do cais

meus punhos

meu sexo

meus punhos

meu sexo

 

a ponta de minha adaga

cega

 

 

 

 

 

 

a musa-besta

 

 

presente!

 

tens nome de musa

sabias?

 

era sempre isso

e eu preferindo ser

poeta

 

eu não amo

tomás

antônio

gonzaga

vocês

não me amam

 

escrevi dentro

do guarda-roupa

no estrado da cama

entre os espinhos

do tronco

de uma paineira

 

escrevi escrevi

escrevi sempre

 

a mesma

poesia

ainda

escrevo

 

 

 

 

 

 

uma nave

 

 

lanço meus olhos

na imensidão de plasma

lança mortal

do lamaçal onde me escondo,

a luz do sol lamento

 

vidro meu coração

virtuo a compaixão

entre francos e fraquezas virtuais

vazo

 

deixo vago meu lugar,

o meu chão onde pisar

navego

 

 

 

 

 

 

doma gentil

 

 

adivinhar o pôr do sol

no rosa súbito dos prédios

ao leste

adivinhar a velhice das tunas

pela altura

 

ver os cães

só quando cagam

a higiene das carnes

no supermercado

das ruas

sem cães vadios

 

na sujeira deste bunker

sob um morro que me rouba

o oeste

vadiar-te meu lombo

sem que descalces

as esporas lisas

 

e cuidar que as feridas

não me sangrem

que só se perceba que tive dor

depois que eu for coureada

 

 

 

 

 

 

os porões

 

 

volta e meia

eu abria a janela

e o meu mundo dava

bem no meio do mundo dela

 

volta e meia

eu olho pra ela

— que não tem porta

nem janela —

e escondo os cadeados

da casa

devolvo as chaves

arranco fora

as maçanetas

 

eu quando

eu olho

ela sótão

quero esquecer

que há no mundo

coisas

que se abrem

 

(marília floôr)

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marília Floôr Kosby nasceu em Arroio Grande, extremíssimo sul do Brasil, em 1984. Poeta, compositora, antropóloga. É autora dos livros de poemas Os baobás do fim do mundo (2011; 2015), Siete colores e Um pote cheio de acasos (2012) e A lavoura de visitas (2014), e da etnografia "Nós cultuamos todas as doçuras": as religiões de matriz africana e a tradição doceira de Pelotas(2015), obra contemplada com o Prêmio Boas Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial (IPHAN, 2015). Seus poemas estão em diversas revistas, como: Garupa, Diversos Afins, O equador das coisas, Relevo, Mandinga, Seja e Varal do Brasil. Nas edições de 2013 e 2014 do Festival Canguçu da Canção Popular, recebeu o prêmio de Melhor Letrista.