©luca pierro

 

 

 
 

 

 

 

E S Q U E C I M E N T O

 

 

O papel chegou pelo correio e ficou despercebido, por vários dias, entre extratos, faturas e folhetos de publicidade. Finalmente, havia que limpar a mesinha da entrada e só então Alba leu o nome do remetente: Empreendimento Funerário Morada das Flores. Custou a reconhecer o nome do lugar onde havia alugado um espaço para enterrar o marido. Teria preferido cremá-lo, mas não havia dinheiro para isso nem para comprar um jazigo definitivo. A oferta da Morada das Flores tinha sido uma solução módica: espaço pra pôr o morto esticado, com seu metro e oitenta, por dez anos, e depois o depósito perpétuo do que a terra não comesse, numa gavetinha de 30 cm x 50 cm x 20 cm, embutida no muro que cercava o parque mortuário. Ah, pois, chegara a hora da exumação dos ossos e ela era convocada a comparecer com a papelada necessária.

Assinara contrato, era correta, havia que ir, cumprir as obrigações. Custou a encontrar o atestado de óbito, a certidão de casamento, o contrato etc. Nunca mais pensara em nada daquilo desde que deu as costas ao portão do cemitério, havia dez anos. Foi. o diretor, apresentado como Doutor Godofredo, que animado e alegre, como se a convidasse a uma comemoração qualquer, informou que, por sorte!, havia pouco serviço naquela tarde, podemos proceder imediatamente à exumação e transferência dos despojos, sendo a senhora a principal testemunha. Ela seguiu-o distraída até uma das campas.

Os funcionários, sob o olhar aprovador do diretor, levantaram a laje de cimento com um pé de cabra, afastaram o pó com uma vassoura de piaçava e descobriram ossos e caveira do que um dia tinha sido o Rodoval. Se ficar muito impressionada, não precisa olhar, a voz solícita do diretor, passando-lhe um braço pelas costas. Alba sacudiu os ombros para libertar-se, impressionada por quê? Não via muita diferença entre este Rodoval e o de antes, os mesmos buracos inexpressivos no lugar dos olhos que nunca a tinham olhado realmente, de frente, o mesmo corpo longo e descarnado que durante alguns anos a tinha usado como depósito de sêmen, o mesmo silêncio da boca de dentes tortos.

Alba nem se lembrava do que a levara a casar-se com ele. Distraiu-se pensando na encomenda do bolo de casamento que deveria aviar no dia seguinte. Só voltou a prestar alguma atenção ao que se passava ali quando ouviu o estalo. Estavam quebrando em dois pedaços um fêmur, depois o outro, para que coubessem na exígua caixinha onde Rodoval deveria morar de agora em diante. O diretor estendeu-lhe um papel, assine aqui, por favor, e ela firmou, automaticamente, Alba Matos Alvarenga. E eis aqui a lembrança querida que a senhora gostará de guardar, a voz melosa do Diretor Godofredo, a mão gorda pegando a mão dela, a outra oferecendo-lhe um objeto: volutas toscas de bronze emoldurando a placa de louça em que estavam impressos o nome Rodoval Alvarenga, a data de dez anos antes e o retrato de alguém que Alba não conseguiu reconhecer.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maria Valéria Rezende nasceu em 1942, em Santos/SP, onde viveu até os 18 anos. Graduada em Língua e Literatura Francesa, Pedagogia e mestre em Sociologia. Dedicou-se desde os anos 1960 à Educação Popular, em diferentes regiões do Brasil e no exterior, passando com seu trabalho por todos os continentes. Vive na Paraíba desde 1976. Começou a publicar literatura em 2001, com o livro Vasto Mundo. Seu romance O voo da guará vermelha (Objetiva, 2005) foi publicado em Portugal, França e teve duas edições em Espanha (espanhol e catalão). Ganhou um Jabuti em 2009, categoria infantil, com No risco do caracol (Autêntica, 2008) e, em 2013, categoria juvenil, com o romance Ouro dentro da cabeça (Autêntica 2012). Escreve ficção, poesia e é também tradutora. Seu livro Quarenta dias (Alfaguara, 2014) ganhou, em 2015, o Jabuti de melhor romance e melhor livro de ficção. Sua publicação mais recente é o romance Outros cantos (Alfaguara, 2016).