Danúbio Azul

 

 

Enviesam-se os olhares diante da ruína viva

Danúbio Azul

Extenso corredor polonês

Colorido por velhas mulatas tristes

Que desconhecem liberdades de alforria

Por isso lutam contra ancestrais espécimes

Masculinas

Que não medem sua força

Sequer entendem da insegurança bruta

Que as consome em nuvens dissimuladas

De covardia.

 

Danúbio Azul é o cortiço revisitado

Noite após noite

Pela marginália central

Onde os ponteiros do relógio se invertem

E fica proibido o acordar antes das onze

:

Brigas são galos e os cacos

Pontiagudos alimentam o terreiro

De dádiva e degredo —

A hecatombe da moral

Danúbio Azul.

 

 

 

 

 

II.

 

 

É velho costume entre os viciados de estirpe

O levar às putas um paraíso nos bolsos

Da calça jeans — 

Elas não cobram o boquete quando as buchas

Aliviam o dia

E até preferem alargar as pregas

Mediante a volúpia de um espinho oleoso

Que pulsa renascido das cinzas após o estafo

Da lata que amassa a libido

Ao escutar o blá-blá-blá dos esotéricos que dormem

E descansam por ali —

Danúbio Azul brilha esperanças fugidias

Em manhãs desencontradas.

 

 

 

 

 

III.

 

 

Danúbio Azul agora faz a vizinhança

De respeitada rede comercial.

As putas novas se derretem nas vitrines

E as mães contrárias ao desejo

Puxam seus filhos pelas mangas da camisa

Antes que os olhos infantis brilhem à vista de qualquer

Beleza residual

Nas filhas do Danúbio Azul.

 

A grande rede investe na cidade

Gerando emprego e renda.

A grande rede já fisgou o coração da prefeitura

Com ofertas imperdíveis

E um imenso, colorido espaço kids.

[...]

Danúbio Azul tem o bafo da cachaça mais barata.

Danúbio Azul é o pequeno hotel modorrento

Encrustado no coração da velha sociedade

Nem bar nem boca nem boate:

Danúbio Azul é a pensão dos desvalidos

E nunca teve seu serviço de café.

 

 

 

 

 

IV.

 

 

Preocupam-se as autoridades com o movimento sorrateiro

De animais pestilentos que se escondem no buraco

Danúbio Azul.

 

O prefeito quer limpar ruas históricas

Por meio das milícias — vigilância sanitária

Declarando utilidade pública de pontos estratégicos

E fez o anúncio das concessões imobiliárias

Notificando a construtora local de barracões em pré-moldado.

 

Insetos transmissores da sífilis proliferam suas andanças

Pelas frinchas das paredes de madeira

No bulevar decadente

Danúbio Azul.

 

Danúbio Azul já não será a salvação dos fissurados.

Danúbio Azul foi só um sonho que apagou.

Danúbio Azul não dura mais que a madrugada —

E os hare krishnas de sempre, amanhã

Não vão saber onde deitar para dormir.

 

 

 

 

 

V.

 

 

A grande rede tem pressa:

Quer aumentar as vendas do natal.

Picaretas anunciam o progresso

Derrubando as paredes carcomidas

Da pensão-melancolia.

 

Enquanto o barulho das máquinas

Não alcança sua promessa irascível de futuro

Espanto a lágrima discreta que escorre pardacenta

Contornando as rugas de Suzete

Puta amiga

Cheirando com ela nossa última carreira

Branquinha no mocó de fedentina

:

Danúbio Azul é a Verdade que os monges

E as putas

E os dementes

E os malucos

Meditam num minuto de silêncio.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marco Aurélio de Souza (Rio Negro/PR). Autor dos romances O Intruso (Dracaena, 2013) e Conexões Perigosas (Kazuá, 2014). Participa das antologias 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015) e Brado: antologia de contos ilustrados (Criado Mudo, 2016), e publica regularmente em revistas e jornais literários como o RelevO e a Subversa. Travessia (Kotter Editorial), seu primeiro livro de poemas, será publicado em 2016. Atualmente, é professor da rede pública de ensino do Paraná e faz doutorado em Estudos Literários (UFPR). Vive em Ponta Grossa/PR.