POR UMA MEGERA INDOMADA

 

 

algo de mistério — pra não dizer sacana,

nisso tudo.

— sua poesia não veio? — indaga o anfitrião

en garde com a piteira.

— está indisposta hoje — respondo

com falsa galhofa no baile de máscaras.

mordeu uma fruta marrenta

sorveu a água de todas as palavras

deixou-as secas ao lado de pernilongos mortos.

por isso não veio. por isso

retirou-se da penteadeira despiu-se no escuro

deu manhas de frígida quando

tentei apalpar seus seios

às cegas. mesmo em horas mais

ditosas é uma vagaba que nunca se entrega

por inteiro.

(trago rosas e doçuras que tanto aprecia)

há sempre incompletude no abraço

da poesia. sou amante de

uma vênus de milo...

não é possível

um asfalto mais áspero

do que este silêncio onde caio

de joelhos.

 

 

 

 

 

 

LEITURA LABIAL

 

 

lanço a cabeça

para trás...

tua boca no meu sexo

sabe quando peço

mais

 

 

 

 

 

 

PASTEL DE VENTO (o verdadeiro)

 

 

então você

incrivelmente bonito

vem falar comigo

bato cílios voluptuosamente

como quem entrou

em curto-circuito

 

já de início você diz

alguma besteira...

tremo uma só pálpebra

a boca em choque

como quem morde o

pastel pelando da feira

 

 

 

 

 

 

CAFÉ NA TOALHA

 

 

Derrubo café na toalha

a indigência canhota

na sua indumentária

 

Ganho uma bronca

de orquestra

no eco das casas

 

Graças não preciso

ser ambidestra

para mover braços

...

para bater asas

 

 

 

 

 

 

AMANHECER

 

 

Amanhecer na praia, um tesouro:

o céu me sorri

com um dente de ouro...

 

 

 

 

 

 

ASTROS DO MOMENTO

 

 

Céu sem estrelas, noite sem lua

O enxame de vaga-lumes proclama

seus 15 minutos de fama

 

 

 

 

 

 

PIRILAMPO

 

 

faísca de pirilampo

noite escura

relâmpago em miniatura

 

 

 

 

 

 

A MULHER DO FIM DO MUNDO

 

 

ter dentro de si algo

acontecendo como um silêncio

(não é qualquer coisa)

atrás do balcão os seios dela

apontam a rua

qual a sensação de jogar longe os sapatos

a sola nua dos pés rilhar o asfalto?

 

pela manhã

terá anseios de esgrima

com as agulhas de tricô

ser unabomber entupindo a válvula

das panelas de pressão

 

às vezes dentro de si

algo gigantesco estala...

 

mas ela sabe que em Ushuaia

as geleiras desmoronam

sem acordar as gaivotas que adormecem

embaladas por um braço do oceano

 

 

 

 

 

 

SALVO-CONDUTO

 

 

e se descobrirem teu coração enfartado de poemas

e se quiserem te salvar deste engodo de ser poeta

e quiserem te esmerilhar com eletrochoques

e te empanturrar de cotonetes e analgésicos

manda às favas com vitrolas e bigornas

manda plantar tubérculos no cimento

manda escovar babuínos da malásia

e se te impelirem pra uma

tenda de oxigênio alheia

procura rapidamente uma fresta ou

leva um canivete camuflado

entre as unhas

 

 

 

 

NUMA QUINTA-FEIRA CHUVOSA

 

 

tudo à deriva nesta quinta-feira.

o dia está para janelas,

mais nada além do descalabro das

árvores ruidosas. compromissos adiados

por intempérie.

ouvir a chuva não parar os

pensamentos trazendo de

volta o molho das sarjetas:

segredos invioláveis devassados...

as gotas numa pétala se concentram em

copiar o ofício das lupas.

envelopes seguem molhados nas caixas de correio

apenas os pássaros insistem a voz.

aqui do lado de dentro do peito

me entrego à solitária tarefa das costuras...

prendo o botão do coração

que me quer saltar.

 

 

 

 

 

 

VIRGINIA

 

                                                                           para Virginia Woolf

 

Virginia querida

já guardei o livro na estante empoeirada

Acabei de tomar o chá de rosas

Os corvos crocitaram quando fechei as venezianas

— isso só pra dizer que fechei as venezianas —

creio que não esqueci de nada.

 

Virginia querida

A tarde continua com carícia fria de metal

Acabei de abotoar o casaco até o pescoço

As velhas pegadas são empilhadas por outras

O rio logo abaixo parece decalcar meu reflexo

 

Desenho comigo agora um grande círculo na água...

Virginia querida

estou indo ao seu encontro

 

 

 

 

 

 

PELA VOZ QUE NOS FALTA

 

 

Pela voz que nos falta

Pela maneira como acendemos uma vela

e mais tarde sofremos a revanche do escuro

Pelas dálias constritas orando na chuva

Pela mariposa de bruma no lustre apagado

Pelos palcos que não visitaremos nem

sequer por detrás das cortinas

Pelo tempo que nos arranca do voo junto com os ilhoses

Pelo pouco que nos resta

por dentro

como nos copos depois de uma festa

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcia Pfleger. Escritora, tradutora e jornalista. Mora em Curitiba, mas nasceu em União da Vitória, no interior do Paraná, de onde alguns dizem que não deveria ter saído. Tem textos publicados em sites e revistas de literatura, bem como no Dossiê Woolfianas — Mulheres que Escrevem nos Séculos XX e XXI, organizado pela UFPR. Seu livro de estreia, Caneca de Café com Versos, foi lançado em outubro de 2015, pela 7Letras. Escreve nos blogues Unha que Risca a Lousa e Prosálias in Vitro.