©tommy ingberg

 

 

 
 

 

 

 

Boi em sombra

 

 

I.

(o boi)

 

 

Caminha

o animal pelo horizonte

e sem matas, árvores,

sem nada, vê-se ao longe

sua sombra ressequida

(mesmo ela, magra,

aparente e indigesta)

 

É como se aquela carcaça

caminhasse já sem vida

parca carne que se acaba

no correr dos dias

 

Cai

sem forças

se equilibra

 

mas não levanta

cai de novo,

é ferida aberta

o couro fendido

 

(observa ao largo

quem o queira

por comida)

 

cai

no chão reza em sua língua

num mugido dolorido e fundo

à espera de que a seca lhe

interrompa o sofrimento

 

 

 

II.

(o urubu)

 

 

No seu balé fatídico

faz-se inverso da vitima

em cujo corpo reside o acinte

de quem sobrevive

 

Em seu caminhar cambaleia

fingindo desinteresse, olhando

como quem nega-se presente

mesmo quando se convida

para funesto banquete

 

Entre peles, carcaça

se posta

sobre magra massa

que muge, de onde

dos olhos se escapam

plausível sentido da morte

 

 

 

 

 

 

Estou, é certo

 

 

estou, é certo,

ao lado dos sonhos perdidos,

das árvores que falam e

das crianças que buscam riachos

com peixes coloridos

estou, é certo

 

Caminhando mãos dadas à jovem

que traz à cabeça um cesto

as roupas e ideias de um novo tempo

e que lava cantando o futuro entre pedras

que machucam os seus dedos, mas firme

continua com a esperança a insurgir

em seu rosto

 

sou dos que sorriem ao látego

pois a mão do verdugo cansa

e quando quem se humilha ergue

pés sobre a terra que aspira, não há

quem dele consiga vergar os passos

 

estou, é certo, ao lado do povo que chega

falando de belezas que ontem — das coisas

que só soubemos existir — fruta madura

que cai na chuva ou que alguém colheu

antes da gente, agora, é certo — o tempo

é nosso, e estou por perto

 

 

 

 

 

 

Beija-flor

 

 

No passar das árvores o bico em busca

do pólen em fio — uma qualquer florada

descer de galho em folha apressado

pois se cansa quem não repousa à sombra

 

No trocar de árvore, o clarão no espaço

a distância do alto ao chão que espalha

um pouco do que ficou preso às patas

semeando o fruto que vem, o pecado

 

do bicar, o trabalho — abrir a flor

mergulhar em seu ovário, sorrir

pássaro, de galho a outro

no cansar das asas

 

 

 

 

 

 

Singrar sem farol

 

 

quando o navio perde o norte

procura no farol sinal que o guie

a luz riscando sobre a água fria

um caminho a seguir no singrar

rumo a um porto, final abrigo

 

quando do porto não restar farol

e de suas torres negras a luz quedar

os olhos por terra e o mar tormenta

em fúria for o único meio de fuga

cabe na tempestade manter a calma

 

brigar com os céus é esquecer que

acima das nuvens estão as estrelas

após os raios ficam os bons ventos

do justo o desejo em chegar em paz

 

 

 

 

 

 

Reminiscências

 

 

Da entrada,

braços esticados

concreto em choque

distante, meu mundo

o espaço por si finito

tudo parece menor

 

a casa não cabe nos sonhos

o corpo não faz parte da sala

de estar, companhia presente

a carne maior que as paredes

 

visto o que me conforta, permite

movimentar os membros, andar

quase corro anos, luzes apagadas

a memória é um cálice vazio

 

maior que eu

o desconforto

residir num quarto,

 

ínfimo o estar

sufocantes as paredes, o porta-retratos

é preciso romper

 

expelir na urina a lembrança:

só cresce quem esquece a ferida

ainda que aberta à mercê do tempo

pois cura

 

ou infecciona

 

casa nova, necessário o homem ocupar

quartos e arestas, o jantar dos vermes

sorver o futuro, pois atrás é quem fica

da vida o que nada mais há

 

 

 

 

 

 

Antes de dobrar a esquina

 

 

a marca no asfalto

uma pegada ferindo

a identidade do solo

 

mancha escura sobre a poeira

antes de dobrar a esquina

das macumbas e do semáforo

que insiste em parar o mundo

 

mendigos se falam, o passar de latas

e isqueiros — as pedras no caminho

pequeno luzir, o farol dos perdidos

 

quem encontra a estrada?

 

Dois carros disputam racha

um travesti se acotovela

janela adentro, o seu preço

a rua cobra, é preciso saber

o que dar, quem fica sóbrio

se sóbrio compensa ficar?

 

a marca no asfalto esmaece

 

 

 

 

 

 

[83]

 

 

da mão, companheira à vista

a embalar os primeiros passos

segurando em quem se faz igual

sutil parceira de jornada longa

em que o certo é sorrir-se ao nada

 

até as nuvens esquecem de mudar

formas e contornos pois tão suave

é o toque de uma em outra que

tudo ao redor emudece esperando

um pássaro cruzar ao vento trazendo

voz afinada a canção dos que amam

 

a mão, sempre esticada apesar dos anos

repousa de mágoas, quer ser o consolo

esquece das vezes em que fez-se aríete

ou lançou, ela própria, pedras e insultos

 

prefere agora pautar o futuro, ser

da força o necessário instrumento

para buscar sua amada, além dos dias

entre sombras que a afligem

 

se caminham, dois a seu tempo

não vão só, trazem as marcas

o delírio, tudo o que o fizeram

mãos dadas — ele a segura, puxando

no mais forte abraço seu corpo pra si,

naquele caminhar que vale a pena

 

 

 

 

 

 

A Porta

 

 

A porta,

aperto no peito ao chegar-se perto,

duas leves pancadas na madeira

puída e oca

o som que repercute trazendo à tona

imagens que se misturam às sombras

 

o pai, a varanda, balançar da cadeira

as primeiras brigas, os punhos duros

duas pancadas na pele exposta

vinte: os anos sem vistas à seca

 

viagem entre espinhos — a ida

fuga que se confunde à dor,

a volta: dor ao retirar o espinho

duas pancadas à porta, o som

 

os passos percorrem a sala

batem-se pés e o piso de tacos

abre-se a casa: caixão à mostra

ainda sem tampo,

o pai sorrindo

 

 

 

 

 

 

Prenúncio

 

 

lavou as mãos — a marca de sangue

desceu pelas escadas procurando

a luz através das frestas e buracos

do seu corpo crivado de dúvidas

 

tropeçou-se em três sutis mentiras

nascer, crescer, morrer — no fundo

nada tinha sido como lhe falaram

era mais simples, deixar-se-ia levar

 

o cômodo movimento do universo

balançando sua carne inanimada

feita em névoa na madrugada que cai

produzia aquele alento próprio

a quem nada tem de seu ou pra si

 

esfumaçando a fagulha entranhada

na altura do peito, músculos abaixo

faz decompor o que por vida chamamos

um barulho na sala anuncia a queda!

 

 

 

 

 

 

Das memórias de infância

 

 

I.

 

 

das memórias de infância

descer em disparada sem

o preocupar-se das horas

cortando a rua no carrinho

improvisado sobre as rodas

pequenas e frágeis de rolimã

 

desviando de buracos e percalços

correndo atrás do irmão gritando

para ele ter cuidado

— ambos, pés descalços

o coração à mostra

 

 

 

II.

 

 

a infância é algo do passado

os pés buscam no dia a dia

o rumo dos novos passos

mirando no horizonte

de onde, num aceno

o irmão,

de pé, sorrisos

aguarda pelo reencontro

 

 

 

 

 

 

Flor do Espinheiro

 

 

No voo feito à tarde

sem fronteiras conhecidas

prende as patas o sabiá

no cacto que divisa

terra árida e a estrada

 

Puxa, num cantar desconcertante

em seu grito de socorro, penas e

as finas estruturas do frágil corpo

 

e a cada tentativa de saída

novo golpe,

lança o vento

a carcaça para trás, perfurando

com os espinhos asas finas

o peito passarinho que sangra

e definha  risco tão vermelho:

ave, agora flor do espinheiro

 

 

 

 

 

 

Seiva, alimento

 

 

Buscou-se o suspiro, o beijo

a seiva que faz-se alimento

e do tronco sem folhas a flor

 

Torceu-se a madeira, o galho

o ovário da natureza — regalo

e da flor em fruto o único sabor

 

Aberto em gomos e cores

escorrendo — dedos, sabores

a semente, o que fica de bom

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcelo Adifa. Jornalista e engenheiro. Atua como Assessor de Imprensa e Comunicação. Como poeta publicou, entre outros, Exílio e A Quem Se Fizer Estrela, ambos pela Editora Penalux. Como compositor, tem trabalhos gravados por vários nomes da MPB.