EXPLICAÇÕES SOBRE A BIOLUMINESCÊNCIA

ou um ensaio sobre a saudade

 

 

este poema começa com três palitos de fósforo

e um cigarro perto da janela

: fiat lux

comunicação luminosa

você na cadeira ao lado  asmática

 

em mil novecentos e noventa e seis

eleonora se foi —

depois eu já não sei o que penso

pensando em você todos os dias

 

há manhãs que somos anne sexton

suicidadas em nossa própria casa

com um pouco de vodka

e sylvia plath

 

jornais acumulados

isqueiros guardados na segunda gaveta

meu útero podado

 

há manhãs que tudo são fótons

em ascensão e ascendência da chama que guardo

inteira acesa

 

com teu gosto

e adeus.

 

 

 

 

 

 

POR UM CONSENTIMENTO EVOCATIVO DE TERNURAS

 

 

eu visitei o quarto de frida kahlo, sister

vi mulheres de batons rubi com a mesma cara amarela da nossa mãe

: a que ela usa nas fotografias dos álbuns de família

e nas caixas deixadas ao avesso de qualquer solidão.

don't do that, woman

let me get you another drink

 

intervalo uma mulher

uma qualquer dessas que existem num atlas de imagens invisíveis

sentada num banquinho de 30 cm de onde

assiste o percurso do sol enquanto faz seu crochê

brinca de nostalgia com o toque da agulha que

eventualmente perfura os seus dedos

e lugareja o mundo com um olhar marejado

 

eu visitei o quarto de frida kahlo, irmã

tinham potes de lágrimas junto à foto de diego

e eu só conseguia dizer à minha mãe :

please don't do that, my woman

let me get you another drink

 

 

 

 

 

 

POR UM ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO

 

 

dez e vinte é a hora parada do meu satélite

minha mulher se despede das plumas de algodão

a polícia faz rondas no bairro

pablo anuncia o aumento do aluguel

e chove

qualquer água suja que não suja mais minha calçada

 

sabe, eu lembro dos teus cabelos absolutamente bagunçados

eles ainda me fazem auscultar pensamentos

enxergar o vento soprando diferente ao contornar a silhueta do teu nariz

insistir nessa presença imaginária a dois sem você

e

 

pablo interrompe

algum ruído sobre setecentos e trinta e contas a pagar

chove, continua a chover

molha todos os territórios do meu corpo exilado

enquanto meço a minha insônia

num termômetro climatérico

 

 

 

 

 

 

O QUE ME ENSINA GERMAINE KRULL SOBRE OS ESTUDOS DO MEU NU

FEMININO

 

 

enquanto visto meus pijamas 3/4 aterrizo numa sopa hospitalar

algum assoalho faz barulho na memória faz barulho

eu de calça cotton e polainas na década de 80

exposta num misterioso empório de carnes

deliberada as convenções de forma

 

nascitura mulher eu

que broto pelada de embriões   falsificamos

métodos histéricos de vivência   nessa camada

densa de rímel preto à prova d'água

fixa teu olhar em meu olhar qualquer olhar

e crê no despontar das lágrimas em papel

fotográfico amarelecido empoeirado de

 

nudez.

 

 

 

 

 

 

A MEDIDA INEXATA DA FUGA

 

 

humildemente amanhece e anoitece

meu corpo escorrega a rotina em dias de 32 horas

que distribuo solenemente entre a limpeza de aquários

e a minha insônia

 

te perco

como na catástrofe dos peixes que morreram afogados

cientistas tentam provar estupidamente que aprenderam algo com isso

mas até hoje não escuto o barulho do telefone diluído em água

e é inútil a brevidade dos encontros

 

já não quero mais outras horas outros dias que não tu

acendo luminárias cigarros o meu corpo escorregadio

pede uma bebida gasosa de preferência uma cerveja

outro caos outra miragem mais uma desilusão

pede algo mais forte?—

perde você

 

 

 

 

 

 

PORQUE A PONTA DO MEU DEDO DÓI

 

 

quando tateio teus ossos

numa tessitura fria de nervos recém desabrochados

 

: ontem dividi o meu sofá com um par de homens que se amam

vi beijos sendo bordados no furo dos meus olhos

fissurando a pele como se fosse um crime

 

one young lover boy disse adeus-preciso-ir-porque-não-sei

meus dedos congelaram em silêncios cheios de agulha

restos de linha cheiram despedidas pela sala

 

e um corpo — o meu — doeu pra sempre

desde então

 

 

 

 

 

 

POR UM RECEPTÁCULO PARA MEU ESPECTADOR CAMINHAR

 

 

eu vou embora toda terça-feira

e toda terça-feira me arde uma dor triangular

: arrumo minhas trouxas cheias de calcinhas que não são minhas

e me perco em qualquer caminho a beira de uma tormenta para os lábios

 

rompo minha perspicácia a golpes sonoros

deslizo em perguntas exaustas

verbos frágeis

 

observo uma fissura reduzida na superfície do céu

da mais bonita e desavergonhada fragilidade

é de lá que vibram todas as dores e formas

 

eu vou embora toda terça-feira

seguro nos dedos a nódoa da minha condição efêmera

atiro a qualquer vento nossa intimidade na minha trouxa

e permaneço aos beijos com os rasgos da tarde

 

 

 

 

 

 

*

 

 

eu parti

como se cada figura minha precisasse de abandono.

 

saio de casa ao amanhecer

de corpo mudo

deixo minhas tralhas, lençóis, livros

que há anos ardem em meu respirar

 

e te renuncio

cautelosa, além do horizonte matutino

onde naturalmente as coisas se transformam

e as memórias se desfiguram, ingênuas

em nosso despertar.

 

eu sinto muito, pai

mas já não conseguia suportar minha outra mulher.

 

 

 

 

 

 

ALGUNS SEGREDOS POÉTICOS REVELADOS À SUA LUZ

 

 

meu relógio parou

no momento abstrato dos ofícios da memória

 

 

abro uma página amarela da nossa velha e conhecida história

vejo Ferreira Gullar, sua cara lânguida, olhar caído

falando os segredos de sua transparência

de como é ser sem se ter

e me pedindo, cauteloso

tempo

 

 

 

 

 

 

SOBRE OS DESCOMPASSOS ESQUECIDOS À BEIRA DO TEMPO

 

 

o telefone parou de tocar, Marcela

e nesse segundo dilatado, avesso, paralítico

velhos poetas te sussurram

revelam deitados em seus caixões a difícil simplicidade das horas

porque não se sabe

 

não se sabe do amor

não se sabe de nada

não se sabe nada desse tempo ao contrário

tampouco da sua dor ardendo desabitada

 

 

 

 

 

 

DOS HOMENS E MULHERES QUE PARI EM DEVANEIOS E ILUSÕES

 

 

e agora batem todos à porta

beiram sôfregos qualquer carne, leite ou sangue

qualquer coisa que venha de ti

 

olho no espelho, nua

a tatuagem tão amarelada quanto as páginas do passado

as mulheres, todas Marias, mudas e descoloridas

gritam

 

pintam as bocas na minha boca

bebem minha saliva ainda com gosto de ontem

e descascam poemas da minha pele

 

 

 

 

 

 

O SEGREDO DA MULHER DE SUA VIDA

 

 

não sobra nada de mim

a não ser essa parte miúda

que se chama liberdade

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcela Maria Azevedo é pernambucana, nascida em Petrolina, radicada em Belém/PA. Mestre em Psicologia, estuda Psicanálise e é absolutamente entregue aos mistérios da poesia — ou aos caminhos (im)possíveis de um papel em branco. Influenciada pelas vozes femininas que ressoam na poesia contemporânea, está finalmente preparando o material para publicação de seu primeiro livro: todas as mães são tiranossauras.