©kamranki

 

 

 
 

 

 

 

LAST NIGHT SHE SAID

 

 

— Você não vai, né? — perguntou, manhosa, enquanto lhe arranhava os braços com as unhas e lhe cheirava o pescoço, como que farejando uma resposta, a que queria ouvir. Ele sempre cedia a essa manobra, o arrepio na espinha o impedindo de pensar, de contrariar, de fazer qualquer coisa diferente do que ela quisesse que fosse feito. Mas agora era outra coisa, muito mais séria. Se esquivou com delicadeza, segurando-a pelo ombro e lhe beijando a testa. Caminhou até o outro lado do quarto, embolou as roupas e fez espaço para si na poltrona embaixo da janela. Um pensamento indesejado o alcançou, talvez fosse sua última vez ali. Quando voltasse, existiria outra coisa no lugar daquele móvel de tecido encardido. Talvez um cabide, para que ela pendurasse todos aqueles vestidos que ele não conheceria. Quando voltasse, talvez não houvesse mais espaço pra ele naquele quarto, coisas estranhas acontecem quando o tempo passa. Talvez, nem houvesse o quarto, ou a casa, talvez a vida lhes acontecesse em outro lugar.

Ela encarava o silêncio e ele lá, perdido nos pensamentos que não queria ter, pelo menos não hoje, na sua última noite. Teria muito tempo pra pensar depois, só teria isso. Ela fazia charme, se espreguiçava na cama por baixo do lençol, os pés do lado de fora. Ele adorava aqueles pés, talvez tenha sido por eles que se apaixonou, há tantos anos. Eles e a sua respiração enquanto dormia: urgente e gorda. Se perdia naquela mulher e ainda se assustava ao perceber que vieram os filhos, vieram os problemas, veio o mundo, e ainda assim era por ela que ele vivia. Talvez ela soubesse, mas achava que não. Fato é que ela sabia como conseguir as coisas, girava na cama como se o mundo estivesse olhando, nenhum movimento impensado. Só poses encantadoras, montadas e maquiavélicas. E ele amava. Mas não podia.

 

— Eu tenho que ir, Lilian.

— Mas você fez? Me diz, eu sei que não foi você.

— E isso importa agora?

— Se você for, o que vai ser de mim, Sandro? E os meninos? Vão crescer sem pai? É isso?

 

Ela já estava sentada na cama, uma postura dura, palavras bruscas e assustadas jorrando da boca que ainda há pouco miava. Ele sabia que ela ia se virar, talvez fosse até melhor para os meninos. Pela primeira vez, se preocupava com ele e só. Ao contrário da mulher, não sabia ficar longe, não sabia tirar essa força de algum lugar e se fazer ouvir. Ele precisava dela, ela não.

— Eu preciso de uma cerveja.

— Eu não acredito, Sandro.

Saiu. Entrou na cozinha, nem precisou acender a luz. A geladeira iluminaria o cômodo minúsculo. Contou seis cervejas e decidiu que as beberia todas, até o amanhecer, aproveitando cada gole, o gelado que desce pela garganta e faz subir qualquer coisa parecida com felicidade. Quando sentiria aquilo de novo? O que desceria pela sua garganta nos próximos oito anos? Oito anos. Onde podia ter feito diferente? Onde devia? Mas se fosse diferente, não teria Lilian. Talvez ela justificasse tudo, mesmo que fosse justamente o que agora a tiraria dele. O tiraria do mundo. Há algum tempo um amigo o chamou pra se mudar, tentar um negócio no interior. Ele pensou, talvez lá conseguisse dar melhores condições pra família. Ela bateu o pé, não era mulher de viver na roça. Miou. Ele ficou. O amigo, da última vez que ouviu notícias, já tinha quatro lojas na cidade. Eletrodomésticos. Quatro, metade da pena dele, só que não eram lojas, eram anos.

Por mais que bebesse, o gelo descendo, a felicidade não subia. Era medo. Lilian apareceu na cozinha, os olhos sérios, os cabelos presos.

 

— Como você consegue? Acabar com a minha vida e continuar aí, sentado e tomando uma cerveja, como se estivesse tudo bem? Porra, Sandro, eu preciso que você faça alguma coisa.

— Eu tô fazendo, Lilian. Por você.

— Que merda. É só um mandato, você não tá preso. Faz alguma coisa.

 

Ela puxou uma cadeira. Desistiu, foi embora alterando a configuração geométrica do espaço. Ele levantou, devolveu a cadeira, voltou pra cerveja. Pensou em escrever uma carta, Lilian leria quando as coisas estivessem mais calmas e entenderia os motivos. Deixaria uma para os meninos também. Buscou um caderno, achou uma página em branco, tirou uma caneta da gaveta. Amor vírgula. E um pranto desesperado tomou conta dele. Chorou em silêncio, não queria que ela visse. E que os meninos acordassem. Chorou, chorou, chorou. Não conseguiria nunca escrever qualquer coisa, entendeu. Coisas estranhas acontecem quando o tempo passa, o que será que aconteceria aos dois? Ela, livre pra viver, pra descobrir, pra fazer o que bem entendesse. Ele, condenado a um amor também condenado, preso no passado, preso. Nunca cogitou não se entregar, um mandado de prisão é muita coisa e não saberia viver se escondendo, correndo o risco de ser encontrado a qualquer momento. Era careta demais pra burlar a lei, pra não obedecer a determinação que exigia que ele estivesse às oito da manhã na delegacia do bairro, um documento em mãos que comprovasse que ele era ele. Como se alguém fosse se oferecer para ser preso em seu lugar. Já há algum tempo vinha evitando pensar nos acontecimentos dos últimos dias, uma sequência improvável e quase absurda de informações que ele queria esquecer. Mas ali, na mesa da cozinha, a luz apagada, a mulher enfurecida no quarto, os filhos adormecidos no outro, não tinha mais o que fazer. Nunca acreditou muito em destino, mas nada mais podia explicar. Já tava decidido, ele ia. Lilian o perdoaria um dia, ou assim ele esperava. Aproveitou a caneta para anotar informações práticas, ela era muito agitada pra se lembrar daquelas coisas: endereço e telefone da mãe, identidade, a senha do cartão de crédito. Será que seria bloqueado? Provável. O sono chegava, mas ele se recusava a aceitar - teria muito tempo pra dormir, não ia perder suas últimas horas assim. Deitou a cabeça em cima das anotações, manteve os olhos abertos. Lembrou-se de quando se conheceram, muitos anos atrás, ele bebendo com os amigos, ela servindo a mesa. A garçonete mais bonita e mais mal humorada da cidade, ele disse. Ela ignorou. Voltaria ainda uma semana inteira, até que ela aceitasse sair com ele.

 

— Se você vai, não precisa mais disso, né? — Lilian carregava uma pilha de roupas, algumas emboladas, outras dobradas, grande parte escorrendo pelos braços. Eram as roupas dele, que olhava sem entender. Jogou tudo pela janela, transtornada, chorando. Ele deixou que ela chorasse, que falasse, que o acusasse de irresponsável, egoísta, ignorante. Pelo menos não chovia, assim que ela se acalmasse ele buscaria tudo no quintal. Lilian andava de um lado para o outro, até que se ajoelhou aos seus pés.

 

— Não vai, Sandro. Você não pode me deixar aqui. Vamos fugir, pra onde você quiser. Não vai.

 

Pela primeira vez, teve dúvidas. Fugir com a família, recomeçar a vida, quem sabe o interior?

Mas era sensato. Agarrou a mulher pela cintura, precisavam se despedir, queria levar com ele aquele gosto de mar que ela carregava na pele. Nunca entendeu como podia ser maresia no meio do país e achava poesia nisso, mas na verdade era amor, porque ele achava poesia em qualquer coisa dela. Lilian tentou resistir, mais por desespero que por falta de vontade, mas ela também tinha amor, e também sabia que não podia não ter Sandro se aquela fosse a última vez.

 

Era uma noite linda, porque era a última, mas também porque era lua cheia. E porque o quintal estava forrado de roupas de Sandro e era verão. Um homem condenado puxou uma mulher aflita pela mão, saíram pela porta da cozinha e ficaram juntos até o amanhecer, amarrotando roupas que nunca mais seriam usadas.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcela Dantés nasceu em Belo Horizonte, em 1986. É formada em Comunicação Social pela UFMG e atuou por cinco anos como redatora publicitária, até descobrir que prefere as palavras na literatura. Já alimentou e assassinou alguns blogs e cultiva em segredo uma pasta digital gorda de contos e outros rabiscos. Sobre Pessoas Normais (Patuá, 2016) é seu primeiro livro.