O AMOR

 

 

somos um livro

 

está tudo escrito

no dna do espírito

nas cartas astrológicas

nos meridianos dos corpos

na íris dos olhos

no alfabeto do infinito

 

nosso contrato de risco

é escapar ao inaudito

(as garras do hipogrifo)

e escrever c/ fogo e luz

no espaço em branco dos capítulos

o nosso mito

 

 

 

 

 

 

ZOOLOGICAMENTE

 

 

Se um dia (por velhice metálica do trinco

ou descuido manual do faxineiro)

o portão de ferro da minha jaula se abrir

verás a fera que eu sou

e tenho guardada há séculos dentro de mim

 

Saltarei felinamente em cima de ti

como o mais selvagem dos animais

(Animal louco ferido encurralado)

Meus dentes afiados em tua jugular

Minhas garras em teu coração

Tentarás fugir Te alcançarei

Gritarás por socorro Não te ouvirão

 

Rasgarei inicialmente teu vestido vermelho

o sutiã e tua calcinha branca

até ficares completamente despida

(e entendas por que faço isto)

Depois lamberei todo o teu corpo

seios pernas coxas ventre boca

e te estraçalharei pedaço por pedaço

até não ouvir mais a batida do teu coração

e sentir gosto de sangue e vitória em minha boca

 

De tarde esperarei pacientemente os urubus

que virão buscar as tuas vísceras

E tudo isso (quero que saibas)

apenas porque jogaste amendoim

na jaula de outros animais

 

 

 

 

 

 

O SENTIDO

 

 

dizem (e eu

também digo)

que tudo

tem sentido

 

e embora

escondido

brota

a flor

azul

do signo

no perfume

do vivido

 

mas (também)

pressinto

num átimo

de íntimo

sob as aporias

do oblíquo

 

(onde tudo

é relativo) que nada

tem sentido

 

e confuso

observo

em parafuso

nas escuras regiões

da alma

onde o não brilho

revoga o pistilo

 

que tudo

permanece

no exílio

como um grito

no granito

 

e esse traço

(pressentido)

por sinal

(igual ao fósforo

aceso

no bósforo

em noites

de frio)

 

é o único

permitido

entre nós

— vis

— mortais —

e Ele

que escreveu

o Livro

 

em eras

remotas

a senda

dominava

a cena

(e a imaginação

excitava

os umbrais)

 

hoje meio odisseu

meio créu

 

meio joio

meio trigo

 

não

me torturo

mais

 

tornei-me

meu próprio sentido

nada mais

 

 

 

 

 

 

CADEIRA ELÉTRICA

 

 

Todo poeta tem direito ao último pedido

Canção de Dylan cachimbo inglês

ou o indefectível bife com fritas

Ninguém poderá recusar o batismo de fogo

de quem foi o herói de todas as paixões

(Assim falava Caryl Chessman cela 455

enquanto engraxava os sapatos vermelhos

pra assassinar pombos no Central Park)

Se o cabelo foi penteado não mais importa

Essa foi a derradeira apresentação

— Inferno de kryptônia que sabes de Dante Alighieri?

 

O povo viu a cena na tevê & lavou as mãos nos bares

Ninguém percebeu que a alta voltagem da descarga elétrica

incendiou-lhe o fio condutor da memória

antes do curto-circuito afinal

 

No trono onde posa como um decadente deus grego

desenhou com as unhas o derradeiro poema

Mas quem quer saber de um poeta sem smoking

& reclamando do ketchup (na calça) no dia do prejuízo final?

 

Na foto estampada na primeira página dos jornais

o poeta ri da América e dos homens de boa vontade

 

 

 

 

 

 

ODE (QUASE) LOUCA

 

 

1

 

Decididamente

deve existir por aí uma mulher

manequim 42 sandálias 38 náufraga de luz

vaga inclinação para hot dogs e filmes de Fellini

sem compromissos maiores que não seja o amor

 

Ela está estendida nua no tapete da sala de estar

e secretamente (sem que Dylan na vitrola perceba)

alisa lentamente as rosas do púbis

pensando na imagem de um poeta que a excita

 

Possivelmente um poeta que os críticos tacham de louco

desses que os pais de família chamam de irresponsável

e os executivos fazem aguardar nas antessalas

(como a flor de plástico

que desabrochará no jarro)

avesso a cortesias e gravatas italianas

mas cúmplice de todos os carinhos

capaz de exterminar o estoque de rosas vermelhas

dos restaurantes e floriculturas

e doar (por intrépida doçura)

as cerejas de todos os martínis doces

 

Ela está só e esqueceu a identidade burguesa

o vestido francês o concerto de Shankar

e passeia (na imaginação) por verdes pradarias

como uma égua servindo-se do seu cavalo

No cenário nu que a rodeia

o ketchup e o vidro de esmalte vermelho

derramam sangue sobre o tapete da sala de estar

É uma corça ferida de desejo

no entanto o seu desejo não está só

 

 

 

2

 

Decididamente

deve existir por aí uma mulher

estátua viva do mais puro mármore

musa de mil tentáculos especialista em naufrágios

vaga inclinação para as causas mais secretas

sem compromissos maiores que não seja o amor

 

Miss noite mademoiselle fúria

(está só nesse instante em que pisco os olhos)

na janela do apto. em frente

o bico do seio (como um diamante

ferindo a vidraça)

enquanto durmo e sonho acordado

(com a aurora do seu ventre em chamas)

desperta em seu quarto na América

e envia os sinais lânguidos de leoa acossada

para a selva do meu quarto de dormir

 

Decididamente

deve existir por aí uma mulher

que me ensine lições de abismo

(e me atualize o desejo tempestuoso do amor)

que me toque tão profundamente

(como a brasa acesa toca o cigarro)

que me dê colo e transcendência

(e me fale de Deus e sexo

Henry Miller e S. Francisco de Assis)

e responda a questões urgentes do meu ser

(não com mensagens de sua boca)

mas com palavras quentes de todo o seu corpo:

o amor é uma turbação?

é uma perturbação?

uma revolução?

uma realização?

um desejo etéreo?

um mistério eterno?

Como compreender o instante e a eternidade

de amar a terra e o céu ao mesmo tempo

se tenho amado quem não quero

e não tenho amado quem quero?

Se meu corpo faz o que não pretendo

e a minha alma regozija com o que não posso?

Se o gozo das coisas do alto

eleva-me o desejo das coisas de baixo?

 

 

 

3

 

Esta noite Deus (em sua misericórdia)

perdoará o excesso de fragilidade humana

e descontará a minha fatia de céu

Mas ainda que me fira a carne com todos os espinhos

jejue mortifique-me e veja os sinais de queda

tudo será em vão

 

Hoje meu céu está na terra

e o desejo é o meu único pastor

 

Quero escorregar como um sol de abismo

e no leito da noite num corpo de mulher

descobrir o paradoxo de todos os mistérios

desnudar a plenitude de todos os fracassos

e nas curvas sinuosas do seu corpo

acender as estrelas da Ursa Maior

 

 

 

 

 

 

POEMA DA GRANDE TRANSFORMAÇÃO

(Arcano 13)

 

 

A primeira vez

que a Morte passou pela minha vida

caíram-me por terra

a coroa do império o cetro do orgulho

o castelo da vaidade

E fui ficando mais leve

do enorme peso da vida

 

A segunda vez

que a lâmina da Morte passou pela minha vida

cortou-me os braços

e todo o apego fugiu-me por entre os dedos

E fui ficando mais livre

do enorme peso de existir

 

A terceira vez

que a lâmina da Morte passou pela minha vida

cortou-me as pernas

e aprendi a caminhar com os próprios passos

E fui ficando mais livre

do eterno peso de existir

 

A quarta vez

que a lâmina da Morte passou pela minha vida

rasgou-me o horizonte do coração

e todas as estrelas do futuro

caíram-me aos pés

E fui ficando mais solto

do pesado fardo de ser

 

A enésima vez

que a Morte passou pela minha vida

já estava podado

de quase todos os excessos do ego

Separado o espesso do sutil

reduzido à essência do ser

E fui ficando mais leve

do aéreo peso da vida

 

A última vez

que a Morte passou pela minha vida

decepou-me o pescoço e a esperança

Minha cabeça rolou pelos campos de toda memória

Estava livre de todo o excesso da matéria

e comecei a viver

 

 

 

 

 

 

BAR DOS MILAGRES

 

 

em são luís do maranhão

todo bar tem um santo

que bebe cachaça

 

na mesa e no balcão

embriaga-se o santo

apóstolo da fuzarca

 

dos bêbados — proteção —

consome o mar das garrafas

em estado de graça

 

até se estatelar sóbrio

bêbado como gambá

anônimo de ressaca

 

em são luís do maranhão

todo bêbado tem um santo

que lhe veste a carapaça

 

padroeiro da ilusão

ou o santo é santo bar

ou o milagre é santa farsa

 

 

 

 

 

 

INVENÇÃO DA CHUVA

 

 

a vida inteira amei a chuva

como platão amava os elementos

e nietzsche o espírito do vento

 

protegia-a da fúria dos relâmpagos

deitada em lençóis de aquecimento

aberto exemplar de "o ser e o tempo"

 

na horizontalidade de suas curvas

o abajur nos acendia os corpos

incendiária musa em "novecento"

 

partia úmida e em contentamento

lágrimas nas vidraças a mona lisa

no verão do meu desfalecimento

 

 

 

 

 

 

A PELEJA DA SERPENTE E A POMBA

NO ESTÁDIO CÓSMICO LUZ E SOMBRA

OU A

DISCUSSÃO DA GRAÇA E ELETRICIDADE

NO QUINTAL BIFOCAL DA CLARIDADE

 

 

INTRODUÇÃO DA SERPENTE

AO LEITOR

 

 

Não sei por que às portas de Binah

fisgou me a atração da Chochmah

trazendo no reflexo da quimera

o que do espelho brilha a bela e a fera

Da pia batismal leia-me Nahash

e a outra a virgem a santa a Shechinah

Eis afinal a verdadeira fábula

em que o mal e o bem lavam as velhas mágoas

 

 

 

A SERPENTE:

 

 

— Dize lavanderia da esperteza:

por que o branco sendo a cor do puro

lavas a roupa diária intramuros

como exorcizasse a tua pureza?

Tens a pálida neurose do sol

que a tudo encobre o claro lençol

A que vens: seduzir ou converter?

O fogo imortal queime-te o ser!

 

 

 

A POMBA:

 

 

— Desenrola o teu negro intelecto

permita desembarque o meu espírito

Enquanto te arrasta pelas urzes

solto velas brancas no céu em cruzes

Sou omo total És petróleo bruto

Governa sobre nós o Absoluto

Tens a profundidade Eu a altura

Dissolve no veneno a amargura

 

 

 

A SERPENTE:

 

 

— Eu sou da luz a eletricidade:

o vapor a descarga a claridade!

Sustento há eons o fogo nas alturas

aquecendo o intelecto na noite escura

Todo o progresso da ciência e a cura

oram por mim nos templos da usura

Vê: nem o dia escapa ao meu fascínio

às igrejas e shoppings ilumino!

 

 

 

A POMBA:

 

 

— Quem hasteou o sol na criação

e acendeu no homem o coração?

Quem deu à vida a contribuição

de tornar sábia a fé e a razão?

Sutil apreendeste a branca magia

tornando-a espessa por analogia

Do sol a sua total irradiação

converteste-o à nuclear fissão

 

 

 

A SERPENTE:

 

 

— Reconheces a contraparte ativa

coagulada à natureza viva?

Decompus as estrelas em mil átomos

e fiz da explosão fiéis apóstolos

Na sombra da graça te movimentas

lançando-me dos créditos a descrença

Teu canto de cisne fere-me as luzes:

também o bem ao mal dispara obuzes

 

 

 

A POMBA:

 

 

— Quem paga a conta da humanidade:

a luz da graça ou a eletricidade?

A minha luz é pura e virtuosa

tornando as cinco chagas puras rosas

A recompensa ao bem que nada cobro

é o mal que a tua luz recebe em dobro

Mas o sol lançado às sutis esferas

irradia o prazer e o sol da guerra

 

 

 

A SERPENTE:

 

 

— Por que metes o bico em meu zodíaco

se nem te sabem as penas os outros bichos?

Tua magia é pouca A voltagem fraca

Recarrega as baterias ora gastas

Ninguém chega ao céu senão por mim

faísca na verdade o estopim

Nas noites do Sinai ou Everest

resplandeço igual ao Empire States

 

 

 

A POMBA:

 

 

— Brincas com fogo e mal conheces a pólvora

gera à luz o mistério da palavra

A eletricidade é irmã ao sexo

a força esgota em mortal amplexo

Oceânica a graça se espraia

multiplicando as marés de energia

O que proponho a ti é um novo pacto:

a abertura do circulo em um ato 

 

 

 

A SERPENTE:

 

 

— Se Deus for o Diabo e o Diabo for Deus?

E se o azul do céu for apenas breu?

Pode o cordeiro pastar com o leão

e voarem juntos perdiz e gavião?

No intrincado jogo das essências

pra que mudar a pele das aparências?

A tua presunção noiva é platônica:

envia flores para a bomba atômica!

 

 

 

A POMBA:

 

 

— Rainha dos disfarces da alquimia

separa a técnica da sabedoria

Inverte o fluxo da polaridade

cooperando à nova gravidade

Permita que batize em fogo e água

os colaterais efeitos de tuas larvas

Compensa à graça a iluminação

furtada à energia da criação!

 

 

 

A SERPENTE:

 

 

— Crismou-te tola e frágil a natureza:

rebelar-me não ouso à correnteza

Abandonar controle e constrição

frustrar seria a divina missão

Reabro o círculo e deponho a guarda

desde que bata as asas em retirada

Prudência cale a língua em água quente:

misericordiosas são as serpentes!

 

 

 

A POMBA:

 

 

— Celebre a claridade o amor profundo

e o amor reate o espírito ao mundo!

Das obras do sol reaprende a lição

libertar das trevas o coração

Crucifica a vontade-de-poder

e ressuscita a vontade-de-ser

Se no jardim à flor protege-lhe o espinho

o mal é sempre um bem vindo a caminho

 

 

 

CONCLUSÃO DA POMBA

 

 

— Debaixo do teu suntuoso couro

plantou-te o criador belo tesouro

Quanto a mim pássaro de fino agouro

o que reluz em mim é a flor do ouro

Quer vistamos tentáculos ou asas

somos figuras da magia sagrada

Na vida real ou em contos de fadas

dirige a obra a bem aventurada

 

 

 

 

 

 

BARROCA

(A Cidade Aberta)

 

 

1

 

a cidade acorda cedo

despida de segredos

 

solta os leques das palmeiras

melhor dizer: cabelos

 

desabrocha os cocos d'água

os ventos dizem: seios

 

onda na duna:

a bunda afunda

 

língua azul nos lábios:

risco de naufrágio

 

 

 

2

 

a cidade acorda na rede

morrendo de sede

 

pela fechadura

vejo-a: tanajura

 

tomar água de bilha

com preguiça

 

desfolha os seios

como maçãs ao meio

 

um sabiá perplexo

canta em seu sexo

 

 

 

3

 

sensual

no carnaval

 

molhadinha de emoção

no São João

 

 

 

4

 

a cidade

e os seus trailers

 

a cidade

e os seus containers

 

a cidade

e os seus personal training

 

a cidade

e os seus 365 deuses

 

a cidade

e as suas 365 vezes

 

 

 

5

 

ó tesão benigna:

és minha terçã maligna!

 

 

 

 

 

 

A GEMA DO OVO

 

 

Um ovo estrelado

na manteiga real

não é um fato banal

 

Pode ser surreal:

o Imperador Amarelo

mendigando um terno

 

Pode ser sexual:

uma galinha sem recato

ofertando-se no atacado

 

Pode ser desacato:

um galo desmamado

na aurora do prato

 

Pode ser até besteirol:

o rei do colesterol

afogado no sal

 

Um ovo estrelado

na manteiga real

é excepcional

 

se percebemos o recado:

está em tudo a luz do sol

No todo no velho no ovo

 

Na quadratura do círculo

o sol quadrado no prato

é a claridade do resultado

 

 

 

 

 

 

O NOME DA FOME

 

 

quem lhe fornece a semente

e dá a luz ao recipiente?

de todas as formas de fome,

qual o conteúdo, é o salame?

seja carboidrato ou ternura,

ronca-lhe o estômago, a usura.

quando é anoréxica ou ética,

rói-lhe em excesso, a metafísica.

mas se é dietética ou kármica,

subtrai-lhe ao estro, a lírica,

a esvaziar-nos, além-ente.

de todas a fome-trina,

a hidra, é a mais assassina,

instalando o seu pavio

com gastronômico fastio.

vai mastigando-nos, al dente,

ventre, coração e mente

se a redimíssemos, fome,

daria à vida, o prenome?

e se disséssemos: sim!

jejuaríamos-lhe o rim?

que essencial alimento

reclama ao corpo ao espírito?

de todas as formas de fome,

amor é o verdadeiro nome!

 

 

 

 

 

 

A QUINTA CHAGA

 

 

Eis o caminho das espadas

que o mar vermelho abençoou

na constelação das coronárias

Taça de vinho tinto derramado

na toalha branca do sacrário

sou a ceia devorando ervas amargas

 

Víscera sagrada estressado músculo

ovelha imolada templo do crepúsculo

sol de hiroshima bíblia de Abel

palco da chacina açougue do céu

bala de canhão dos doze apóstolos

uti da paixão de todos os sós

 

Morrer pela cruz ou pela espada?

Arrancaria do peito a bomba-relógio

e contra a turba arremessaria a granada?

Metralhado ostentaria estrelado

os buracos do céu em adoração

guerrilheiro da magia sagrada?

 

Ave quinta chaga de Cristo

que o serafim científico executou o rito

de angioplástico gozo: projétil metálico

Antessala da iniciação — stent no coração —

fuso a fuso parafuso a parafuso

penetraremos no paraíso?

 

Buraco de agulha — eis a porta estreita

da artéria — chave da compaixão

Por esse buraco passaram e passarão

Franciscos e Pios o vício e o perdão

Nos canais interditados das veias

navegam uníssonos  o mau e o bom ladrão

 

Vede os estigmatizados da razão

e o mistério decepado de asas

Ninguém transformará em devoção

os estigmas dos endurecidos corações

clamando onipresentes à rigidez do músculo:

— "afastai a pedra do sepulcro!"

 

Venerado com cateteres e adrenalina

o corpo cambaleia nas estações

Ora a nicotina: "ópio do povo /

vício do todo / cinzas de maria"

A serpente com as presas de metal

envenena-me com a seta do aguilhão

 

Na caverna do peito-fenda

da rocha — o poço da paixão

3 da tarde: as angustiadas badaladas

da máquina gritando manutenção

Arame farpado: a chaga da terra

a natureza submetida a corrupção

 

Ferido por minhas próprias transgressões

dilacerado pelos meus pecados

minhas feridas jamais me curarão:

pingue nelas o sangue do crucificado

Quem reerguerá esse templo de paixão

consumido em desejos e desolação?

 

Consagrei o corpo em flor

às obras em suor do amor:

mão direita — realeza

mão esquerda — beleza

pé direito — profundidade

pé esquerdo — busca da verdade

 

Mas o coração milagre da criação

sofre o abalo da gravitação

a queda da eterna árvore

Entre o elástico e o esclerótico

lançou-me o peito a um voo egoico

— estreito céu — fatídica ave

 

Extenuado em vasoconstrição

quem reconciliará meu coração

com a senda do amor e compaixão?

Só o crucificado — sursum corda —

alargará os afluentes envenenados

jorrando sangue e água da misericórdia

 

Ser conduzido pela claridade

aprender com a fonte a sobriedade

como o lírio curvar-se à castidade

eis minha precária humanidade:

a água condutora de eletricidade

fogo espalhou à chama da vaidade

 

Celebrei-te ó fragmento

sob as colunas do templo

Prisioneiro do tempo e vento

ergui-te fáustico monumento

Hoje ardendo em fragmentação

aspiro ao sol da união

 

Desta sexta-feira sou o crucificado

clamando ao meu anjo os seus cuidados

Coração novo. Caminho novo.

Cântico novo. Mundo novo.

Complete o céu a grande obra

ao que a vida suportou ígneas provas

 

Do amor a via sacra negativa

seja transmutada a chaga em água viva

Pai glorifica os meus fracassos:

no peito habite o sagrado pássaro

Ó mangueiras do Sítio do Físico:

sobre vós derramo o meu espírito

 

 

OFERTÓRIO:

 

Quando fores a São Luís aquece o teu coração:

enverga a jaqueta gris e leva a flor entre as mãos

Indaga à Rua do Giz e aos sabiás de plantão

pela alegre codorniz que morreu de solidão

Chama um menino feliz do Coroado ou Pespontão

pra abençoar a cicatriz e dar asas à rejeição

 

Quando fores a São Luís ajoelha-te em oração:

encontrarás na Matriz meu corpo de ressurreição!

 

 

 

 

 

 

O PENSAR E O SENTIR

 

 

pensar

acolhe o todo

sentir

dá sentido a tudo

 

pensar

é heidegger

sentir

francisco de assis

 

pensar

voa em uma asa

sentir

caminha sobre águas

 

pensar

é ser

sentir

você

 

pensar

aumenta o tesão

sentir

acordes do coração

 

pensar

torna-o frugal

sentir

delírio e carnaval

 

pensar

solta balões

sentir

fogueira de são joão

 

pensar

exorciza políticos

sentir

engendra místicos

 

pensar

brinca no coqueiro

sentir

banho de cheiro

 

pensar

arremessa

sentir

é pura sesta

 

(o sentimento

quer ser ágora

o pensamento

galáxia)

 

mas quando o pensamento

namora o sentimento

tempo e vento

são puro entretenimento

 

pensar

ergue-nos sobre a desventura

sentir

libera toda a ternura

 

 

 

 

 

 

A CHEGADA DA LUZ

 

 

dei pra me emocionar

quatro cantos da alma

cisco no olho. água de piscina

roo meu dilúvio como posso

quem derramou esse oceano

pra enxaguar o sol?

 

uma história de amor

não é só o romance do amor

é mais que a memória do amor

não fosse a biografia do suor

ainda assim seria o amor

narrando as suas estórias

 

silêncio: ouve o rumor

segredos do espinho à flor:

— tudo gira ao redor

de uma história de amor!

— adão e eva?

— novela de amor.

— luz e trevas?

— drama de amor.

— bela e a fera?

— alquimia do amor.

— a noite escura da alma.

— a iluminação do amor.

— a sabedoria e a loucura.

— os dois caminhos do amor.

— o velho e o novo?

— os ciclos do amor.

— o infanticídio de kosovo?

— o assassinato do amor.

— a explosão das galáxias?

— a energia do amor.

— a via crucis e a via láctea?

— a grandeza do amor.

— a rebelião de lúcifer?

— o orgulho do amor.

— o homem e a mulher?

— o eterno renascer do amor.

 

eu não sou meu país, meus pais, minha

família, minha casa, minha religião, meu carro,

minha conta bancária, minha arcada

dentária, minha glândula pituitária

 

eu sou o cordão umbilical do sol, o sonho da luz,

a morada do ser, o pássaro e a asa,

a origem e o original, a água e o sal,

a família planetária, a flor azul de belém-efrata

 

— quem és? — sou eu, não temais!

— quem sou? — eu sou sempre e jamais!

 

candelabros em fileira:

derrete-se o coração

à causa primeira

 

 

 

 

 

 

DIABETES

 

 

Os imortais da Academia

estão tomando chá:

gestos polidos unhas aparadas

bigodes tosados pernas cruzadas

no melhor estilo gótico

excedem-se no dietético

para adocicar a conversa

 

Não sabem que lá fora

a vida é amarga e má;

que a arte está é nas ruas

mercados feiras e prisões

— eles os imortais —

imobilizados em seus fardões

imortalizados imorredouros

 

mortos

 

 

 

 

 

 

OS MESTRES DO JARDIM

 

 

um cristo em lótus

um buda em chagas

balançam incandescentes

no terceiro olho

(nascente/poente)

deixando-me caolho

 

dizem as línguas de fogo

quando buda ora

no mar vermelho

e cristo medita

no rio amarelo

é segredo da flor de ouro

 

a mim cabe segurar a haste

do pensamento em brasa

e acender o incenso

no altar da casa:

que mensagem de interdependência

trazem as flores da existência?

 

definitivamente místico

esse convite alquímico

de dois mestres do espírito:

à prece e meditação

abrindo-me os pesados trincos

dos jardins da compaixão

 

 

 

 

 

 

A CURA

 

 

quando os olhos

daquele que é

absolutamente nada

chorarem pelos olhos

daquele que é

absolutamente tudo

 

e as lágrimas claras

do absolutamente todo

lavarem os ciscos dos olhos

do absolutamente nada

então veremos às claras

tudo absolutamente novo

 

 

 

 

 

 

UM

 

 

quando estou em ti

e tu estás em mim

inverte-se o princípio

do início e fim

no primeiro momento

há movimento:

eu sou tu és

no segundo momento

há desfalecimento:

não sei quem sou

acaso és?

no terceiro momento

viramos fragmentos:

o nós e o vós

habitam em nós

depois não há nada

e o espírito do só

recolhe-se ao pó

 

 

 

 

 

 

SATORI

 

 

Vida

dá-me o gozo total:

 

erótico

 

poético

 

transcendental

 

 

 

 

[imagens ©adrian donoghue]
 

 
 

Luís Augusto Cassas (São Luís do Maranhão, 02/03/1953) nasceu longe, como as utopias, desenvolvendo a vocação para o horizonte. Trilha o caminho do meio, mas há risco de abocanhar o inteiro. Após ciclo de mortes e transformações, novo nascimento entre duas palavras.Tendência à profundidade, por estar sempre em queda. Teórico do mais. Hoje, discípulo do menos. Poeta do alto e do baixo, do externo e do de dentro; às vezes é fogo; às vezes, vento. De índole solitária, não é membro de nenhuma academia de letras, sindicato ou entidade de classe. Mas aprecia longas caminhadas e bom papo. Gosta de contemplar a unidade, dispersa na criação: "Embora o olho não perceba, sabe-o o coração". A serviço da luz, do belo e do verso. Para ele, o mundo é pura poesia. Não é à toa que o chamam de universo. Mestre em becos, Ph.D. em ladeiras, Ofm das águas do Maranhão.
 

Obra poética: República dos becos; A paixão segundo Alcântara e novos poemas; Rosebud; O retorno da aura; Liturgia da paixão; Ópera barroca; O shopping de Deus & a alma do negócio; Titanic — Boulogne: a canção de Ana e Antônio; Bhagavad-Brita: a canção do beco; Deus mix: salmos energéticos de açaí com guaraná e cassis; O vampiro da Praia Grande; Em nome do filho: advento de aquário; Tao à milanesa (inédito); Evangelho dos peixes para a ceia de aquário; Poemas para iluminar o Trópico de Câncer; A mulher que matou Ana Paula Usher: história de uma paixão; O filho pródigo: um poema de luz e sombra; Bacuri-sushi: a estética do calor (inédito); A ceia sagrada de Míriam; O livro (inédito) — Livro I, O sentido (relatos da fumaça do incenso), Livro II, O paraíso reencontrado. Todos os vinte livros que constituem a trajetória lírica e existencial do autor estão reunidos em A poesia sou eu — poemas reunidos, em dois volumes encadernados, com produção da Imago Editora (Rio de Janeiro) em quase 1400 páginas, com prefácios de Marco Lucchesi e José Mário da Silva e vasta fortuna crítica.