©albion harrison-naish

 

 

 
 

 

 

 

 

Poema de amor da segunda década do século XXI

 

 

Eu passei a tarde

toda

ficando chapado.

Eu passei a tarde toda ficando chapado, ouvindo PJ Harvey e pensando em você.

A vida é simples.

Mas eu sofro de ansiedade. Depressão. Distúrbio bipolar. Que antes

se chamava psicose maníaco-depressiva. Vi um filme sobre a geração beat.

O tempo todo pensando

em você.

 

Talvez eu seja um pouco obcecado. No fim, estou pouco me fodendo, desde que isso

não faça você

me odiar.

Escrevi um artigo sobre um punk iugoslavo. Ele era bicha.

Ele era anarquista. Largou tudo isso

pra se tornar chauvinista

nacionalista

e ser morto por fogo amigo.

 

Fogo amigo é um modo idiota de colocar as coisas. Fogo amigo é

o cigarro que eu fumo e

que vai me dar um enfisema. Que vai me matar

de câncer.

Mas que me faz esquecer, por um breve

segundo. Apenas um.

Muito breve.

 

O que é isso de

um poema de amor

além de um acidente? O que é a vida

além de um acidente?

Eu vou morrer. Fogo amigo. Seria um belo epitáfio.

Também uma bela epígrafe.

E, claro, um modo idiota de colocar as coisas.

Um tanto quanto piegas. Como o começo

de janeiro.

Nunca consegui te ligar. Tenho

certo medo

de telefones. Mas queria

muito

muito mesmo

escutar tua voz

e mais ainda

queria ver teu corpo teus lábios teus dedos

e todas suas partes mais secretas.

 

Um poema de amor na segunda década do século XXI — um

acidente um belo epitáfio ou também

uma bela epígrafe.

Te conto um sonho

bobo só pra ter uma

desculpa pra  dizer que tenho saudade.

 

Toquei uma música com teu nome.

Sofro de ansiedade. Acho a todo momento

que você não quer mais falar comigo

ouvir minha voz sentir meu gosto

ou experimentar meu cheiro.

Eu sou orgulhoso

arrogante com meus versos

de sabedoria barata. E só quero saber

da tua boca, do teu sorriso: você mordendo o lábio inferior

e mostrando os incisivos. Só quero saber da tua pele

das tuas pernas

das coisas que você fala comigo.

 

Só quero saber de você — e as minhas dores

angústias e medos

que vão pro inferno.

Escrevo poemas recusados

não por editores nem revistas.

Eu vou pro inferno.

Mas queria, pelo menos,

um beijo de despedida.

 

 

 

 

 

 

Quase trinta (ânsia)

 

 

vinte e nove anos

quase trinta

me confundo mas

ainda faltam alguns meses

o coração acelerado

como uma britadeira

abrindo de dentro pra fora

o pavimento

do meu peito

passo noites mal dormidas

esperando uma resposta

esperando um bom-dia

que não vem mais

estive em tantos cantos desse mundo

e nunca me perdi

tanto quanto nos teus olhos

nunca olhei dentro

de bocas mais profundas

nunca beijei orelhas mais

delicadas e nem tirei

as roupas de alguém

com mais gosto

poucas vezes senti tanto medo

sem ter direito

poucas vezes fiquei tão intrigado

com histórias que não

dizem

respeito nenhum

não foi como se eu

não tivesse sido avisado

não é como se eu

não tivesse um pressentimento

de que

sob o signo

do velocino de ouro

só haveria sangue

e as coisas seriam mais uma vez

como sob todos os outros

terríveis

mas ainda assim eu

me deixei levar

mas ainda assim eu

me permiti acreditar

na doçura dos momentos

no calor dessa chama

que talvez

só tenha queimado

pra mim

e ainda queima

mas agora também

arde e inflama

e agora também

me torna

fumaça

 

 

 

 

 

 

Stalingrado

 

 

Stalingrado já ruiu:

não importa que os prédios

continuem sendo os mesmos

que os homens as mulheres

só estejam mais velhos.

Veja bem, a história

se repete: antes disso

Tsaritsyn já havia morrido

enterrada em si mesma.

Inevitável se afigura

o destino de Volvogrado.

 

 

 

 

 

 

Yortsayt

 

 

Corpos humanos

só florescem depois de

um ano sob a terra. Flores

de pedra que cantam

sobre o que foi

mas não mais:

o nome que se rogava

os dias agora estanques.

E o que se colhe

são pedras são preces

são lágrimas e

depois

o esquecimento.

 

 

 

 

 

 

Da tristeza

 

 

Quão triste

é a chuva

que cai sobre os

ombros cansados

dos trabalhadores do porto.

 

Quão triste

é o vento

que sopra desde o

mar revolto

como que feito de mágoa.

 

Quão triste

são os olhos

que erram pelo mundo

sempre buscando

o lugar certo.

 

Quão triste

é essa raça

de poetas, de profetas

que bradam a pulmões

plenos

a tristeza

desse mundo.

 

 

 

 

 

 

Mel de leão

 

 

Do crânio

de um leão

surgiu

mel:

que visão

bela e terrível

é uma fera

morta

oferecendo

tal doçura.

 

Mas de que

adianta se

as garras afiadas

as pernas musculosas

e juba majestosa

são agora

só ossos

e carniça?

 

 

 

 

 

 

Ó, Catalunha

 

 

Ó, Catalunha,

sob teu céu de

poucas estrelas

sobre a terra

onde você já morreu

uma vez

olho ao longe

procuro n'horizonte

nem sei bem o quê

olho ao longo

procuro algo que já sei

não vou achar.

Ó, Catalunha,

bem sabe a estrela da manhã

a tristeza da tua luta

a liberdade solitária

que busca. Não achei

em ti meu lugar

do mesmo modo que

você recusa

a fala que te deram

a coroa que te puseram.

 

 

 

 

 

 

Esquecimento

 

 

lento como o próprio tempo

floresce o esquecimento

germina a semente

da desmemória

 

as raízes insidiosas

penetram sua face

abafam sua voz

e apagam o passado

 

como se fosse outro

e não eu

como se fossem outros

e não nós

 

 

 

 

 

 

Como enforcar um homem

 

 

como enforcar um homem:

diga-lhe que deve trabalhar

até que se canse

até que apague

diga-lhe que seu desejo

é um erro, um delírio

diga-lhe que se isole

está sozinho em meio

a seus iguais

pois na verdade

não são

faça com que adoeça

por dentro

com que se sinta sujo

errado

e um dia, se alguém ainda visitá-lo

ou então quando os vizinhos

forem buscar a fonte do mau cheiro

haverão de encontrá-lo

pisando no ar

a cabeça apoiada

na corda

 

 

 

 

 

 

Pobreza

 

 

sempre invejei

os exilados

os apátridas

os refugiados

pois não possuem

nada para lhes prender

pois são tão pobres

que só o mundo

é seu

 

 

 

 

 

 

Ulisses retorna de Chernobyl

 

 

Por anos décadas séculos

— milênios talvez —

Penélope esperou

fazendo e desfazendo

o sudário de Laerte

tomando ansiolíticos

e antidepressivos

que engolia

com conhaque.

A cara inchada

os órgãos falhos

até que morreu.

E quando seu marido

o nobre assassino

herói de guerra

cheio de medalhas

e cicatrizes

(algumas autoinfligidas)

finalmente deixou a zona

de exclusão

imitando os animais

que selvagens não

sabem ler as placas

que indicam perigo

(de todo modo Ulisses só sabia

ler o alfabeto grego

o cirílico estava

além de seu alcance)

não encontrou

lar algum

só uma pilha de ossos

e seus velhos

arrependimentos.

 

 

 

 

 

 

Um velho em Sokal, no interior da Ucrânia

 

 

Certa vez

em Sokal

no interior da Ucrânia

um velho

que usava seus óculos

de cabeça para baixo

me interpelou

perguntando sobre

minha barba: mas

seus pais

suas mulheres

seus senhores

não reclamam? Não

obrigam você

a raspá-la?

Fazendo malabarismos

com as palavras

daquela língua

quase desconhecida

consegui dizer

que até podiam reclamar

mas no meu tempo

no meu país

ninguém me forçava.

Respondeu-me animado

falando que teria barba de novo

pois agora

alemão nenhum poderia

matá-lo por confundi-lo

com um judeu.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Luciano Ramos Mendes nasceu em Curitiba/PR, em 1986. Depois de formar-se em Medicina, decidiu estudar Letras. Foi coeditor do blog-revista Sinuosa. Desde o ano passado, colabora com a editora Corsário-Satã e fundou a Editora Dybbuk.