VERBOS ÁSPEROS

Fragmentos de um diário

 

 

11 de fevereiro

 

 

Escura, escura, mais escura que a solidão dos antiquários, das fotos em branco e preto e das paisagens desabitadas, é a minha solidão de você, filho. Saudade daquele dia em que minhas mãos parcas, manchadas de adolescência, tocaram pela primeira vez a tua moleira, ainda tão sensível, cartilagem de anjo coberta por uma película de pele-seda branca e banhada pelo vermelho virulento do parto. Teus olhos cerrados, o grito do teu pranto profundo perfurando a branquidão da enfermaria e teus dedos, feito pequenas ramagens epífitas, segurando com toda força meu polegar. Minha memória tem uma luz tão abatida como aquelas que os postes emanam sobre a rua numa noite de chuva. Me perco com as palavras e com as lembranças, mergulho nesse labirinto úmido das recordações. Pior que isso, luto para emergir à força desse passado que me represa. Todas essas imagens me prendem, se colam à minha retina onde quer que eu esteja, do banheiro à farmácia, do quarto ao jardim, da cozinha à estação. Tento me desvencilhar de todas elas, mas não dá, Ed, não dá. Tanta falta você me faz, meu filho. Tanta. Não sei por que foi se embrenhar por vontade própria nos porões de chumbo, foi lutar aliado à foice quando vivíamos à época da insaciável gadanha.

 

 

 

28 de março

 

 

Você aí recolhido, negando silenciosamente o mundo e seus ruídos, cravando diariamente onde quer que esteja uma centelha de abismo no meu peito. Te espero, meu filho, te espero. Embora seja difícil. Vazia, a casa é um espinho na gengiva. Fico aqui sozinha perambulando pelos cantos, procurando o menor sinal de você. Tentei mudar, tentei esquecer, mas não dá, Ed, não dá. Todo esse ambiente é cada dia mais estranho. Não sei por que, mas essas paredes rosa da sala me oprimem, fico lembrando da minha meninice, de vez em quando enxergo tua vó sentada nas beiradas tricotando, sinto cheiro de bolacha quente e ouço umas ave-marias sussurradas. Não sei de onde isso tudo vem. Não estou ficando louca, não, Ed. Não vá pensando besteira. São só sintomas da falta que você me faz.

 

 

 

1º. de maio

 

 

Sabe, Ed, fiquei aqui lembrando daquele dia que você saiu correndo, empunhando o casaco de couro num dos braços e acendendo com amadorismo um cigarro entre teus lábios carnudos e, apesar de toda pressa, do atraso para o primeiro dia de aula na faculdade, você me abraçou forte, um abraço preciso, cortante como as lâminas das guilhotinas. Nesse dia ouvi teu corpo ciciar amenidades para o meu. Foi tão bonito. Eu precisava tanto daquele abraço. Obrigada, filho, por sempre ter compreendido os anseios de uma mãe.

 

 

 

28 de junho

 

 

A cidade cinzenta. Os desgarrados. As tempestades de aço. O desabrochar das pessoas à porta da estação. Os beijos dos casais. Mal sabem eles, Ed, que o amor é um palimpsesto antiquíssimo.

 

 

 

15 de agosto

 

 

Há quanto tempo, Ed, o gosto das coisas secaram para mim. Uma escassez interna me toma pela mão e me guia às cegas pelas alamedas dessa cidade em ruínas. Sem temor, sem leveza, sem caos, volito sobre o passeio com um coração que ofega, que pulsa contra a minha vontade. As palavras, Ed, as palavras. O que será de seus sons, seus ecos, seus egos, sem o verniz de tua saliva para pronunciá-las? Me sinto interrompida, filho. Interrompida. Depois de tua partida, meu corpo parece gestar uma granada cravada no limbo das incertezas. Não tento mais decifrar os enigmas da tua ausência, porque eles nada mais são o eterno mutilar dos meus afetos.

 

 

 

10 de outubro

 

 

O branco insondável dessas folhas brancas absorveu o que eu não pude falar olhando nos teus olhos, Ed. As explosões ásperas do verbo me calcinaram as pontas dos dedos e cada vez menos sinto vontade de recorrer a este caderno. Caminhar pela cidade imunda pela censura me indispõe ainda mais que o normal. As passeatas dos estudantes se tornam cada vez mais recorrentes e barulhentas. Essas vozes que cruzam meu silêncio, não calam, não calam, meu filho, a falta que você me faz. Dia desses no metrô eu estava costurando as lembranças de quando você se embrenhou no movimento estudantil, quando tuas roupas nunca passavam além do vermelho. Teu desaparecimento inesperado, tua morte repentina, tua vida extinguida na fração de um estampido, mesmo depois de tanto tempo, não abala as controvérsias do país. Em todos esses anos, uma única coisa aprendi: a resistir. E a resistência, Ed, você me ensinou, se constrói na luta contra as opressões do dia a dia. Quando a morte, a prisão e a tortura calam a bravura de um jovem, a melodia da resistência começa a compor uma ária histórica em que todas as pessoas se reconhecem. A partir de hoje, filho, decidi que tua campa não será a glosa da minha existência. E, sim, o interminável eco da tua vida, minha canção.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lucas Figueiredo Silveira nasceu em 1998, em Poços de Caldas, Minas Gerais. Participou de duas coletâneas em Portugal e três no Brasil. Elogiado por Antonio Candido como "uma vocação inegável", é, atualmente, graduando em Letras pela USP.