A LADRA

 

 

Matilde ajeitou de novo o cabelo. Olhou a penteadeira e conferiu com a ponta dos dedos se tudo estava no lugar. Precisava daquilo — colocar a mão nos objetos cheirosos de sua vida — porque sua memória falava em Braille e necessitava checar com os dedos as lembranças, embora enxergasse tudo e muito bem com os olhos redondos. Sorriu bochechuda para o espelho, passou o batom rosa na boca miúda e espremeu os olhos contra as olheiras. Tomada do orgulho domingueiro, colocou o relógio delicado, todo de ouro, rubis e lembranças. Ah, meu pai, quisera fazer 15 anos de novo!

Com a bolsa e a Bíblia embaixo do braço, foi para a cozinha, na hora exata de evitar o próximo pingo da torneira da pia. Homens fazem falta, às vezes. Muito às vezes, pensou desmentindo as noites enormes e lembrando-se dos sermões de padre Quintino. Ah, padre Quintino, que moço bonito tinha sido ele, capaz de arrancar dela suspiros de admiração e velada tristeza. Nunca teve maus pensamentos com ele e nem com nenhum outro, que isso seria pecar gravemente, mas que o padre Quintino tinha um maxilar tão poderoso quanto o seu sermão, isso tinha. Já na porta, pronta para sair, viu a xícara suja de café sobre a mesa. Metódica, preparou-se para lavá-la e ali, na espuma asséptica do seu sabão em barra, ficou apenas aquele corpo de senhora, enquanto lá longe, o pensamento corria ligeiro com os sonhos de moça recatada. Nem viu quando terminou, pegou novamente suas coisas e saiu.

Acordou na rua, o dia amanhecendo e ela caminhando para o ponto de ônibus, preocupada se tinha trancado a porta direito. Domingo, missa. Seu dia de festa e abandono aos prazeres da alma, cantarolando baixinho louvores ao Senhor. Ela amanhecendo e muitos ainda por dormir.

Chegou ao ponto de ônibus ainda dentro daquela hora que parece que está anoitecendo. Bando de perdidos, esses aí, jogados nos bares, nas casas noturnas canibais, nos copos cheios de dúvidas e tristezas. Pediu em voz alta por aqueles insanos arremedos de gente, insegura quanto ao destino da reza e sem certeza se clamava por quem precisava. Não, esse aí deve estar indo trabalhar... Aquele lá, com certeza, está bêbado... Essa aí dormiu na rua... não, tá com o filho no colo, deve ter saído de casa agora... Ah, três Ave Marias, para evitar injustiça! Foi nessa escolha, nessa apuração de carências, que ela viu aquela mulher. Era a visão de um mosaico, um vitral colorido — que Deus perdoe a comparação — um punhado de cacos, pedaços de mulheres costurados numa só. A visão de algo sujo, transfigurado, um monstro das noites vendidas. Ficou arrepiada, sem lugar, torcendo pela chegada do seu ônibus, enquanto a prostituta encostava do seu lado, rebolando curvas no vestido colado e transpirando suor etílico. Olhou de novo, sem querer olhar, mas, teimosa, a menina dos seus olhos queria conhecer a mulher dos olhos da outra. Com a maquiagem já fora de foco, o rosto da moça permitia uma imagem dupla de olhos e boca, como uma máscara um pouco deslocada para baixo, rímel amanhecido carimbando tristezas.

Mangabeiras, Santo Antônio, Pampulha. Vinte ônibus fazendo um longo risco na avenida e nenhum que servisse para ela ou para aquela mulher.

A Bíblia apertada no peito, a bolsa no braço, o ponto de ônibus praticamente vazio. A vida fácil ali, agora andando de lá para cá, com aquele jeito agressivo, sandálias nas mãos, fumando antes das 6 horas da manhã. Olhou de novo e a outra, talvez percebendo o interesse apavorado da mulher de vestidinho floral, riu debochada, desfilando toda a imoralidade que só um corpo jovem tem.

Finalmente o ônibus de Matilde chegou. Ela correu para ele, correu para a porta que se abria prometendo um abraço, correu para o calor do coletivo, do comunitário, do apinhado de iguais. Foi quando, já se preparando para passar na roleta, foi brutalmente empurrada, abatida por cotovelos fortes e pouco gentis. Era a tal mulher, a vagabunda insone que abria caminho com o corpo. Matilde sentiu nojo daqueles pedaços de carne forçando passagem contra seu corpo, a vulgaridade fazendo-a cambalear. Seus olhos se encontraram. Foi um duelo de cartas marcadas — ponto para a falta de nobreza de olhar fixo, enquanto Matilde desviava os olhos para o piso.

Na roleta, na hora de pagar, Matilde sentiu falta do seu relógio de pulso. O relógio-presente, o relógio-herança, o come-gerações de ouro e delicadeza. Olhou para a ordinária com seu caminhar gelatinoso rumo a um banco vazio e flashes do esbarrão pipocaram à sua frente, ainda sentindo o solavanco no braço. Como ela podia ter ousado roubar um pedaço da sua vida, levar num safanão mais de 50 anos de sua família e sua memória e os beijos paternos e as festas com licor e mamãe doente e Tia Alzira embrulhando as louças e a casa com cheiro de forno quente? Foi como se tivesse sido picada por uma cobra venenosa, fulminante, o tampo da cabeça sendo arrancado do lugar pela falta de medo. Pela primeira vez na vida, era falta de medo aquilo. O relógio, não! De Matilde generosa a Matilde agredida, de curativo a flecha, de bombeira a incendiária. Perdera o liso do rosto guardando aquele relógio, contando minutos através de meio século naquela parceria tiquetaqueante. Ele era seu diário cíclico, seu atlas, mapa de navegação onde deixou marcado tudo o que o tempo pudesse cronometrar. Não tinha festa sem hora, velório sem fim, quarto sem parede. Não tinha Matilde sem relógio. Não tinha irmão sem briga, vizinho sem amoreira, namoro sem namorado. Não tinha relógio sem Matilde.

Uma bola de fogo queimava seu peito e ela abriu a bolsa. Tirou a escova de cabelo, empunhou firme o cabo de madeira escondido debaixo do braço e caminhou pelo corredor do ônibus, olhar fixo na nuca da maldita cretina/desalmada/sequestradora de almas inocentes. Sentou com força ao seu lado, enquanto a outra, escondida na impunidade do sono acumulado, olhava pela janela. Com uma disposição que seu corpo frágil nunca teve, cutucou-a decidida, usando o cabo da escova contra suas costelas, protegendo o ato com a bolsa, sempre olhando para frente, falando entre os dentes:

— Fica quietinha, sua vagabunda ordinária. Não fala nada e passa o relógio, passa o relógio! E não olha para cá, senão eu acabo com você, vigarista safada. Põe o relógio dentro da bolsa, agora! Anda depressa, anda! Me dá o relógio!!

Foi tudo muito rápido. Quem olhasse, não veria... ou no máximo, veria uma senhora virginal e uma mulher tonta, uma senhora de olhar reto e uma mulher perdida, uma senhora frágil e uma mulher da rua. O quindim e a sobra do almoço.

Matilde não acreditou quando sentiu o peso do relógio sendo jogado dentro da sua bolsa, a respiração ofegante da outra, o desconforto do medo. Aquela coisa estava com medo e Matilde tinha prazer nisso. O ódio se alimenta mesmo de pequenas vinganças.

— E agora, desce, sem olhar para trás, desce e some, senão eu te estouro!

Matilde ainda a viu olhando da calçada, enigmática, o ônibus passando e ela ficando parada, com uma sombra nos olhos, cansaço nos olhos, borrões nos olhos.

O chão abriu-se numa fenda cheia de farpas, pernas bambas, de valente a ameba, de ferro a algodão. Colocou a escova de volta na bolsa, dura, sem olhar para o que estava fazendo, com coisas latejantes tentando sair de dentro dela, ataque movimentoso de tremedeira e muito barulho do sangue bombeando coragem, Matilde, coragem. Não tinha mais corpo, toda ela era de espuma e fel, raiva derretida em suores internos. Não sabia como tivera aquele surto, tomar o seu relógio de volta, não acreditava, aquilo era loucura, oh, Deus... Podia ter levado um tiro, uma surra, imagina se a outra reagisse? E se ela sabia onde era sua casa? "Não sentir medo era mais suicídico do que valentesco", vivia dizendo seu humilde e sábio primo Gotardo.

Deixou o ônibus dar uma volta completa e desceu no mesmo ponto em que havia subido, ainda com medo de ter sido seguida. Corria, rezava, pedia calma para enfrentar o pavor de estar sozinha naquelas ruas, queria chegar logo em casa, fechar a porta, trancar tudo. E principalmente, tomar um banho, arrancar aquele cheiro de perfume barato do nariz.

Entrou em casa ainda de veias expostas, coração aos pulos e pensando na mãe, no pai, na saudade que sentia deles nessas horas. Respirou fundo, lutou contra a vontade de vomitar e guardou a Bíblia na mesinha do telefone — lá não era o lugar dela, mas naquele dia podia se dar ao luxo de fazer qualquer coisa. Só aí se sentiu segura. Foi para a cozinha tentar beber um pouco d'água com açúcar e colocou a bolsa sobre a mesa de jantar. Quando se virou para pegar a água no filtro, foi como se alguma coisa estilhaçasse dentro da sua cabeça, um raio percorrendo sua espinha e Matilde lá, interrompida. Na beirada da pia, perto do escorredor de louças, inocentemente descansava o seu relógio. Tudo voltou à sua memória, como se acendesse a luz: na hora de lavar a xícara, a retirada rápida do relógio, sabão, espuma, pensamento longe, bolsa, Bíblia, rua!

Em câmara lenta, como num mergulho noturno em águas profundas, desligada dos sons externos e só um corpo com pancadas cardíacas, Matilde flutuou rumo à sua bolsa. A bolsa na mesa. A mesa na sala. A sala na penumbra.

Suas mãos queimavam.

Da bolsa, retirou um enorme relógio de pulso, metálico, com pulseira de um couro gasto e fedido. Suor etílico.

 

 

 

 

AS SOFIAS

 

 

Sofia acordou cedo, rapidinha com o que já conhecia há anos: saltar da cama, fazer xixi, lavar o rosto, escovar os dentes e só aí, tomar banho. Dois banhos frios. Rapidinha talvez não fosse o termo, mas treinada. Ensinada pelo hábito e, claro, pelo prazer de fazer as mesmas coisas, do mesmo jeito, sempre. Nunca precisou de nada diferente, passou a vida como se o dia não mudasse de dia, 24 horas cíclicas, as mesmas 24 horas que viveu quando pequena, na adolescência, na lua cheia. Para garantir-se, fechava as janelas, não tinha telefone, não assistia televisão, não mantinha contato com seres vivos — nem de estimação.

Escolheu que tinha 30 anos, não lembra quando, mas parece que foi aos 10. E gostava de se olhar no espelho e pensar: que idade tem meu corpo? E como a moça do espelho, cúmplice, não respondia, as duas faziam as contas e mais ou menos sabiam a idade que o corpo tinha.  Adorava aquela brincadeira e a última vez tomou um susto: estava passando dos 60. De lá para cá, ficou mais naquela de contar só o tempo que fazia que não tentava descobrir o tempo do corpo. Quase dava na mesma, mas não dava — ela não somava as duas coisas, por via das dúvidas. Passou então a ter mais o que fazer: quanto tempo tem que contei quanto tempo tinha que eu não contava o tempo?

Falar com ela mesma era sua paixão. Começou devagar, numa coisa mansinha de gente que mora mais dentro da pele do que fora.

— Vamos brincar, Sofia? — perguntava o reflexo no espelho.

— Ah, não, agora quero sonhar.

— Me leva, Sofia?

— Só se essa Sofia que você é for mais forte que essa Sofia que nasceu hoje.

— Sou a Sofia que você gosta... — o rosto triste, preso dentro da moldura.

— Não, minhas outras Sofias podem se zangar ouvindo isso. Nunca mais diga que é a preferida!

— Mas você me vestiu de azul... Não veste de azul todas as Sofias do dia? Sou a Sofia de hoje.

— Sempre visto de azul a Sofia que mamãe gosta — a predileta. As outras, andam nuas pela casa... sem nenhuma fatia de amor.

— O que faz essa Sofia, de rosa, ao lado do pai?

— Chora, em meu lugar, a morte de sua mãe.

— Tem uma Sofia adulta, sozinha no quarto escuro.

— Ela enterrou hoje algumas Sofias, junto com seu pai. Só ficaram as grandes, de peito e menstruadas. Você também vai ter que ir embora.

Foi nesse dia que se decidiu sobre a questão do relacionar-se. Elegeu os móveis preferidos e intensificou o elo que mantinha com eles. O sofá, gordo, paninho floral, nunca foi reformado, por exemplo. Não podia mudá-lo, sabia de suas dores íntimas, de seus furos e da história de cada um deles. A mancha maior e escura, no encosto, veio do chá do pai, num dia de tremores maiores — no fim de seus dias, o chá era tomado em colheres, por outras mãos. A mesa da sala de jantar fazia parte de seu passado curricular, riscada pela força dramática do lápis contra exercícios e mais exercícios de matemática. E era símbolo de algumas vitórias. Na mesa, a Sofia de azul com os pais.

— Posso levantar agora? — olhos redondos no redondo do prato.

— Come mais, você ainda não comeu nada...

— Posso? Quero ir no banheiro... — unhas miúdas fazendo coração no verniz do coração da mesa.

— A gente vai ao banheiro e não montada nele. Já falei que o seu português anda horrível?

— Meu intestino também... — ponta da faca desenhando um diabinho.

— Come. Senão não vai crescer, nem ficar bonita e nem vai ter perna grossa...

— Eu vou ficar anã, feia, magra e muito fedida, se não for ao banheiro.

Primeira surra, ainda na mesa. Todas as Sofias apanharam. Mesmo depois de adulta, quando pensava naquilo, partes do seu corpo ardiam como arderam na época. Mas teve tempo de arquitetar a sua vingança. Todo dia era a mesma coisa — estômago pequeno, torcido e medroso, comida gigante saindo das travessas aos gritos e avançando sobre elas com bafo de cebola. Na mesa, a Sofia de rosa com os pais.

— Come só mais um pouquinho...

— Tô sentindo mal.

— Eu vou acabar perdendo a paciência com você, Sofia.

— Meu estômago tá doendo...

— Mais coisas vão doer em você se não terminar de comer.

— Acho que estou doente...

— Come, agora!!

Enquanto engolia, sabia que tinha chegado o grande dia, principalmente com a importante visita de padre Quintino para o almoço, que adorava falar em psicologia moderna na criação dos filhos, embora não tivesse nem um gato jovem para aplicar suas teorias. Empurrou tudo, bem empurrado. Sem mastigar, sem sentir o gosto de nada, garfada após garfada, num ritmo acelerado. Finalmente, terminou. E feliz, ainda na mesa, sentadinha, vomitou tudo de volta, dentro do prato.

— Preciso comer isso de novo, mamãe? — o anjo questiona o diabo, enquanto o representante de Deus, atônito, sai correndo para o banheiro acometido de um mal súbito.

Foi magra todos os dias, em nenhum deles tornou-se fiel depositária de um grama de gordura sequer. Com simpática cautela, afastou qualquer coisa doce de sua vida, nunca se permitiu chocolates ou beijos. Broas ou banhos quentes. Ambrosia ou roupas macias. Fazia enormes pudins de leite e os deixava na cristaleira. Lá eles ficavam até serem substituídos por outros e mais outros e mais outros. Gostava de fazer pudins. Gostava de deixá-los lá, como obras de arte, intactos. Gostava do cheiro dos pudins quando estragavam, cheiravam a vitória – dela contra o macio, o mole, o derretido, o frágil, o bonito mas perecível. Nunca cedia ao encanto trêmulo das carnes dos pudins, mas desconfiava que alguma Sofia se deliciava com eles, roubando na noite o que o dia proibia.

— Pudim, Sofia? — o espelho de novo.

— Não, obrigada, estou sem fome.

— Come... ou outras Sofias comerão.

— Nenhuma Sofia gosta de pudins, nem mesmo a Sofia de azul.

— A Sofia de azul morreu, você a matou.

— Ela matou minha mãe.

— Não foi a Sofia de rosa que matou mamãe?

— As justiceiras sempre se vestem de rosa. Mesmo que estejam de azul.

— Coma o pudim, Sofia.

— Com papai foi diferente. Coração fraco. Naquele dia, eu nem estava aqui.

— Mas a Sofia de azul estava...

— Não vou comer pudim. Ele está aí para estragar, para não ser comido.

— Como nós, Sofia? Somos como esses malditos pudins que estragam sem ninguém os tocar, não é?

— Você não devia ter dito isso.

E mais uma Sofia morreu naquele dia.

— Quanto tempo tem que não conto o tempo?

A pergunta ficou sem resposta, não havia mais Sofias para responder.

Ela balançou os ombros, sabia que aquele era um dia especial. Finalmente estava livre do dúbio, do dueto desvantajoso, da eterna vigília de não deixar ninguém magoar nenhuma Sofia.

Acordou cedo, rapidinha com o que já conhecia há anos: saltar da cama, fazer xixi, lavar o rosto, escovar os dentes e só aí, tomar banho. Um banho frio.

Penteou os cabelos, vestiu a roupa rosa, fez as malas e desceu a escada.

Olhou os cômodos, despediu-se de todos da casa. No amigo antigo, gordo, de um só lugar, colocou as joias que tinha escolhido para que ele tivesse uma velhice boa, reformado. Comeu todo o pudim da cristaleira, o último dos caramelados. Na mesa, deixou o prato sujo de vômito, que guardou por mais de 60 anos.

Abriu a porta da rua e saiu levando a mala, cega pela claridade e com a boca doce.

Na casa, encontraram uma velha de 70 anos, Sofia Maria, morta, aparentemente envenenada. Ela vestia uma roupa azul, portava todos os documentos e tinha, em uma das gavetas do armário da sala, um testamento onde deixava todos os seus bens para sua irmã gêmea, Maria Sofia.

 

 

 

 

NO MUNDO DOS HOMENS

 

 

Parte I

 

 

Ângela brincava de nadar pelo quarto, balé aéreo. Corpo acrílico atravessando o espaço e moldando-se aos objetos, contornando invisíveis obstáculos, fazendo uma trilha de notas cifradas.

— Beto, podemos comer agora aquele frio que machuca?

— Aquilo é sorvete, mocinha. E desce do teto, Ângela, isso me deixa zonzo.

Ela derreteu-se mansa e obediente sobre a cadeira, deslizando o corpo de mulher com gestos lentos.

— Vamos sair para passear hoje?

— Só se prometer não me fazer flutuar... isso assusta as pessoas, Ângela.  Vou me vestir agora, tá?

Amorosa, emborrachou-se nele, cobrindo seu corpo com aquela camada fina de líquido brilhante, uma grande escama furta-cor. Ele ri do carinho e afaga a elástica extensão de Ângela que recobre parte de seu corpo.

— Não, meu bem. Não posso vestir isso... vai, encolhe as asas... estamos atrasados, sabia?

— Me deixa ir solta?

— Ângela, não vamos começar... você sabe que não pode.

— Vou poder um dia, Beto?

Ele sentiu uma imensa tristeza, profunda, abismal, quase uma morte pelo avesso. Ela, lá, com seus olhos de cristal mudando de cor, piscando faíscas líquidas, registrando contato, medo, fragilidade. Ele, preso na própria humanidade.

— Já discutimos isto, minha pequena. Inúmeras vezes. Você já mudou o rumo dessa história uma vez, Ângela, não pode querer manipular todo o resto e eu não tenho o poder de mudar o que você fez, voltar atrás, tentar remediar ou resolver o problema...

Ele lembrou-se do dia em que ela chegou, a estranheza da presença, o vazio dele e sua louca vontade de ficar eternamente viajando entre mágicas carreiras de pó e agulhadas de seringas cheias de visões. Quando Ângela veio, era chegado o momento. Estava cansado até do mínimo esforço que respirar representava e queria-se descartável, drogado, banido. Perdera a noção do tempo e naqueles longos dias, especializou-se em não ser nada, somente recipiente de bizarrices alucinógenas, com noites escuras que nunca continham vida. Daquela vez, nem mesmo padre Quintino — um atormentado homem de Deus com a missão de salvar prostitutas e excluídos — tinha conseguido entrar em seu mundo. Não querer viver não é o mesmo que querer morrer, mas são duas paralelas que se tocam e ele apostou nisso. Naquele dia, desacordou completamente, a cabeça explodindo de dor e excessos, o coração dando socos como um boxeador trancafiado, narinas carcomidas, veias arrebentadas e a frase construída pela sagacidade da autoflagelação: "a vida é mesmo coisa para profissionais". E tudo parou, finalmente.

— Apenas te dei uma segunda chance.

— Você tinha uma missão e não a cumpriu... e agora está condenada à minha realidade humana, perdida e desencantada, Ângela.

Ela voltou o tempo e o viu de novo deitado sobre a cama desfeita e suja. Névoas em todo o quarto e Beto lá, consumido em seus excessos e faltas. Um lugar escuro, sombras gigantescas e a solidão dentro do corpo do homem que desistira de esperar pelo último suspiro natural a que estão submetidos os mortais. Overdose de vida antecipando a morte.

Ressuscita-me, gritou sua alma para ela. O pedido era apenas um fio da mais fina teia daquela trama, um sussurro inaudível, mas compadeceu-se por aquele moço morto cuja alma não queria morrer. E uma pluma desceu do céu e tocou levemente o peito desnudo e inerte de Beto, acordando-o. Ela tinha dado a ele o seu sopro de vida. Deveria acompanhá-lo na sua última viagem, essa era a missão e ela estava fazendo exatamente isso, mas ao contrário, ficando, ao invés de levá-lo.

— Vem, entra, meu anjo. Temos que ir.

Beto guardou Ângela no peito, ajeitou suas asas dentro das costelas e saiu para a rua.

 

 

Parte II

 

 

— Não posso levar você comigo, Ângela.

— E se eu prometer ficar quieta?

— Você sempre faz das suas, como da última vez, lembra? As pessoas têm medo dessa sua esquisitice, Ângela... E depois, como vamos esconder esse equipamento?

Ele perguntou isso apontando para as costas dela e suas enormes asas brancas.

— Não posso mudar o que eu sou...

— Então, por isso vai ficar aqui, quieta, enquanto eu faço as compras.

— Queria ser como você. Ou não queria estar aqui, mas num lugar onde todos fossem como eu.

Ela aponta o céu e suas nuvens-carneirinhos deslocam-se apressadas. Pétalas miúdas caem do teto e aquele quarto fica aéreo, lugar nenhum perdido no universo, sem gravidade, apenas o perfume rosa de uma flor recém colhida. A falta de referência o faz ficar nauseado e ele agarra-se ao espaldar da cadeira, agora projetado como um holograma, imagem irrequieta e sem peso.

— Para com isso, Ângela. Você prometeu que ia tentar ficar bem, que ia se esforçar para as coisas darem certo. A escolha foi sua, não minha. Por favor, não há o que fazer, não temos como levar uma vida normal, junto com todo mundo.

Ela volta-se para ele e suas palavras saem do peito, formando ideogramas de uma língua santa, desenhos de néon que se acendem e flutuam e tocam levemente o rosto dele e umedecem seus olhos.

— É tudo tão estranho, Beto.

— A ideia foi sua... Por mim, teríamos ido embora naquele dia mesmo. Era a coisa certa a se fazer. Mas você fez uma escolha terrível e agora, estamos aqui.

— Levar você comigo teria sido o seu fim e você sabe.

— Ângela, já se perguntou se não era exatamente isto que eu queria quando fiz aquilo?

— Interromper o destino, Beto, é se condenar à eternidade escura.

— Qualquer eternidade, minha branca, é condenação. E para não interromper o meu destino, você interrompeu o seu...tornou-se um anjo caído, Ângela, sem poder voltar, presa a este mundo sabe-se lá até quando...

— Você não sabe o que diz.

— Você não sabe o que fez.

Ângela encolheu-se, esquivando-se do som das últimas palavras dele.

— Beto, o fato de não poder voltar atrás não significa que eu não possa resolver tudo. Eu posso mudar isso.

Beto a olhou com estranheza, apertando os olhos e tentando descobrir o que estava preso dentro daquelas palavras.

— No que exatamente está pensando, Ângela?

— Nada, você tem razão. Só preciso descansar um pouco, parar de ficar ansiosa. 

— Tá, tá bom... Mas agora tenho mesmo que ir... E para de colocar o céu nas paredes. Tira essa água toda do quarto... recolhe as nuvens, por favor... Pô, Ângela, isso aqui tá um caos!

— Se eu fosse como você, iria me amar?

Pergunta feita sobre um quarto de hotel asséptico, cama feita, paredes tranquilas, a vida em preto e branco, como num tabuleiro de xadrez.

— Eu amo você assim, Ângela, do jeito que é.

Ela ficou calada, olhando para ele e seu corpo bem feito, suas mãos soltas, sua normalidade comprovada em nariz, boca, braços, costas.

Ele ficou calado, olhando para ela e seu corpo longilíneo, seu rosto branco, sua aparência translúcida mudando de cor, seus olhos soltando imagens.

Voltou uma hora depois, rápido e culpado. Abriu a porta do quarto e viu um rastro de sangue espalhado pelo chão. Ângela caída, nua, pele de gesso, de talco, de pintura barroca. Ao seu lado, com um vento soprando fraco e levantando plumas brancas e novas, suas grandes asas amputadas.

Era uma vez um anjo e seu passeio entre os mortais.

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©cristina coral] 

 

Lou Bertoni: sagitariana, mineira de Ituiutaba, fiz alguns cursos universitários (o último foi História), sou apaixonada por desenhos, gravuras, HQ, fotografia, arquitetura, cinema, eolismo, dramaturgia e literatura, não necessariamente nessa mesma ordem. Cometi muitas sandices literárias, ganhei alguns prêmios aqui e ali, assinei com duas dramaturgas a primeira adaptação autorizada para teatro do livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato e ando colecionando palavras no Lago di Como, na Itália, onde moro. No mais, eu sou comum, hoje mais bombeira que incendiária (qualquer um com mais de 50 anos vai entender isso), durmo pouco, sou madrinha até de filhote de borsoi, sou burlável, penso muito com o "dentro" e decididamente, acho que o difícil nessa pescaria chamada vida é que a isca a gente vê, mas o anzol a gente sente. O resto é ficção.