Ler em pleno século XXI o melodrama francês (ou comédia francesa?) A Estalagem dos Trampolineiros (L'Auberge des Adrets, de 1823), brilhantemente traduzido pela dupla permitam-me o adjetivo conotativo e carinhoso de "trambiqueiras" Danielle Crepaldi Carvalho e Bruna Grasiela Silva Rondinelli, promoveu-me um nostálgico retorno ao teatro oitocentista, como também despertou em mim uma saudosa lembrança de Grenoble, região de Rhône-Alpes, na França lugar que nada tem de sertão, mas que me permitiu muita travessia ao longo de 2011.

É nessa região dos Alpes franceses que se situa a estalagem des Adrets, palco principal das cenas da peça, e onde habitam o proprietário Dumont e seu filho adotivo Carlos, além de seu fiel funcionário Pedro, cujo papel "faz supor a nossa vã filosofiaˮ uma certa irrelevância, mas que, ao contrário, nota-se com o passar da trama que se trata de uma personagem fundamental, o que talvez justifique sua presença em todos os atos, subindo mais de cem vezes ao palco.

Carlos aguardava ansiosamente a chegada de sua noiva Clementina e de seu sogro Germeuil, para quem Dumont revelaria um grande segredo naquela noite: Carlos não era seu filho de sangue, mas sim um menino que fora abandonado pelos pais e por isso acolhido pela generosidade do dono da estalagem. A revelação poderia fazer o agricultor e sua filha mudarem de ideia e não haver mais casamento, nem dote, nem festa não necessariamente nessa ordem. Ledo engano. Germeuil aceita Carlos como seu genro, mesmo sabendo-o bastardo.

Naquela mesma noite, hospedam-se na estalagem Maria, uma pobre mulher, e duas figuras estranhas, Raimundo e Beltrano, que estavam de passagem. Germeuil, comovido com a miséria de Maria, decide dar-lhe algum dinheiro. Já Raimundo e Beltrano logo denunciam para o que vieram: planejam adentrar o quarto n. 13, onde está hospedado o senhor Germeuil, para lhe roubar 12.000 francos e fugir na calada da madrugada. A culpa recairia sobre Maria e os ladrões sairiam sãos e salvos. Fim do primeiro ato.

É quando todos somos surpreendidos com os gritos de Clementina, anunciando o que já estava escrito no script: Germeuil fora assassinado! E eis que a estalagem se torna palco de um misterioso crime. É hora de Roger, brigadeiro da Ordem dos Dragões, que chegara à estalagem à procura de dois foragidos da prisão de Lyon (a aproximadamente 100 km dali), entrar em ação. Pedro é o primeiro a desconfiar de Maria, que havia deixado a estalagem pela manhã. Os dragões de Roger vão atrás da pobre mulher para detê-la e trazê-la de volta à cena do suposto crime.

Roger, por sua vez, desconfia de Raimundo e Beltrano, pois já havia visto os dois perambulando pela floresta. Pediu-lhes então os respectivos passaportes (falsos). Nota-se sempre em cena uma certa insegurança de Beltrano, que parece ser controlado por Raimundo. O primeiro não consegue esconder sua covardia, enquanto o segundo demonstra astúcia e esperteza. O suboficial da cavalaria arquiva temporariamente sua desconfiança e passa a interrogar Maria, já capturada pelos seus guardas.

Pedro é o primeiro a atirar-lhe pedra. Maria, porém, defende-se e explica a Roger que o dinheiro que possui em sua bolsa fora-lhe doado pelo bondoso Germeuil na noite anterior. Durante o interrogatório sem direito à "delação premiadaˮ! Maria se vê obrigada a confessar seu infortúnio a todos os presentes em cena: chamava-se Maria Belomonte, fora casada, mas seu marido, após gastar todo o seu dote, foi-se embora para nunca mais. Ela, sozinha com um filho, foi levada pelas circunstâncias a abandoná-lo em uma estalagem qualquer, para em seguida ser presa injustamente em Grenoble.

De fato, neste melodrama, as coincidências parecem ser "a alma do negócio": Dumont descobre, naquele momento, que Maria é a mãe biológica de Carlos (!) e Roger recebe uma carta de um superior, que lhe ordena expressamente prender dois homens evadidos da prisão de Lyon, munidos de passaportes falsos, com os nomes de Beltrano e Raimundo, mas que são, respectivamente, Jacques Strobe e Robert Macaire (!). Fim do segundo ato.

Entre lágrimas, desmaios e revelações, Maria e Carlos, mãe e filho, abraçam-se após 18 anos separados pelo destino. Dumont e Clementina ficam deveras comovidos com a cena edipiana e Pedro, arrependido de ter julgado mal aquela pobre mulher. Contudo, outras fortes emoções estão por vir neste terceiro e último ato: Raimundo, ou melhor, Robert Macaire, depara-se com Maria Belomonte e... (permitam-me aqui fazer ecoar a onomatopeia "ohhhhh", que provavelmente soou, neste momento, da boca do público espectador) ambos se reconhecem: são marido e mulher (!). Carlos ganha, de uma só vez, uma mãe (santa) e um pai (vilão); está, pois, entre o bem e o mal. Outra surpresa impensável é quando Germeuil retorna à cena após longo desmaio. O pai de Clementina não havia morrido vias de fato, apenas ficara inconsciente porque perdera muito sangue ao ser violentamente agredido quando roubado.

Em nome do filho, Maria negocia a verdade com Raimundo/Robert Macaire. Concederia a liberdade ao ladrão ajudando-o a fugir caso ele confessasse seu crime e acusasse seu cúmplice (Beltrano/Jacques Strobe). O acordo foi aceito e os detalhes para a fuga, combinados. Os dois só não contavam com a escuta de Beltrano/Jacques Strobe, que se (ou)viu facilmente traído pelo seu comparsa e tratou logo de atrapalhar o plano de fuga deste. A caminho do final da peça, Raimundo/Robert Macaire revela a Carlos ser o seu pai e lhe pede perdão. Carlos, Maria e Pedro se organizam para propiciar a fuga de Raimundo/Robert Macaire, conforme o combinado. Entretanto, Beltrano/Jacques Strobe não permite o sucesso de seu parceiro de trapaças e mata-o à queima roupa no ato da fuga. É preso em flagrante por Roger. Fim da peça.

 

Les Robert-Macaire, n. 1 (1839). Litografia de Honoré Daumier. Fonte: BN Digital

 

Terminada a leitura de A Estalagem dos Trampolineiros fica-se com a mesma impressão registrada por Camilo Castelo Branco em 1879, no prefácio da quinta edição de seu Amor de Perdição, a saber:

 

O Amor de Perdição, visto à luz elétrica do criticismo moderno, é um romance romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas ideias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo. Eu não cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de Perdição fez chorar.Mau foi isso. Mas agora, como indenização, faz rir: tornou-se cômico pela seriedade antiga [...]. E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com aquilo, e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há dez anos aljofarava com lágrimas românticas.

 

No caso da peça francesa, o responsável pelos risos é, sem dúvidas, a personagem Robert Macaire, primeiramente encarnado nos palcos parisienses pelo jovem ator Frédérick Lemaître, em 1823. Essa figura carismática aparece em cena fingindo-se zarolho, portando uma bandagem preta nos olhos, com cabelo mal penteado, chapéu amassado em um dos lados, usando roupas coloridas e puídas; um mal-ajambrado nobre dos tempos d'outrora. Impostava a voz, fazia mímicas e andava aristocraticamente. Fazia, portanto, o público rir. Era o tipo vilão, vagabundo sem escrúpulos ou, como preferem Carvalho e Rondinelli em suas notas, "um bandido meio dândi meio bufão cínicoˮ (p. 90), que, em palco, invertia as convenções cênicas do melodrama transformando o espetáculo em comédia.

No entanto, o ridendo castigat mores "não serviu de carapuça" para acobertar Frédérick Lemaître e seu Robert Macaire, que se tornou personagem lendário na dramaturgia dos séculos XIX e XX. As censuras parisiense e carioca não lhe renderam homenagens, ao contrário, condenaram-no a símbolo de vilania e mau-caratismo. A peça sofreu perseguições lá e cá. Na França, foi censurada em 1824 para reestreiar em 1832 no Théâtre de la Porte Saint-Martin. Em 1834, o Boulevard du Temple fez encenar uma continuidade do melodrama, Robert Macaire, comédia musicada que ressuscitava o vilão morto em L'Auberge..., levando-o a viver mil peripécias com o eterno comparsa Bertrand. Por pouco tempo, no entanto. Censurado um ano depois, Robert Macaire retorna aos palcos parisienses somente em 1848, o que não o impediu de servir de inspiração à figura de outros bandidos, em peças como Hernani (1830), de Victor Hugo, ou Vautrin (1840), de Balzac para citar dois clássicos da literatura francesa.

No Brasil, conforme nos contextualizam Carvalho e Rondinelli, a primeira montagem da peça francesa se deu em 1939, no Teatro de São Januário, no Rio de Janeiro, recebendo o nome de Os Fugitivos das Prisões de Leão. Ao contrário da versão francesa, a montagem carioca manteve o caráter moralizante e idealizado da peça, seguindo os padrões tipicamente românticos. Aquele que outrora nos fez chorar, mas que depois nos faz rir — diria Camilo Castelo Branco sobre seu Amor de Perdição. Em 1840, L'Auberge des Adrets foi encenado novamente no Rio de Janeiro, dessa vez pela companhia francesa de Ernest Gervaise, que manteve o tom cômico conferido à peça, tal quando a atuação era de Frédérick Lemaître.

Vale dizer que a peça também circulou em folhetins cariocas, como no jornal A Lanterna Mágica, de Manuel Araújo Porto-Alegre, entre 1844 a 1845. Em 1846, o ator João Caetano devolve Robert Macaire aos palcos cariocas, ao Teatro de São Francisco, anunciando a peça como drama, mesmo conferindo ao protagonista um certo ar cômico, conforme observou Álvares de Azevedo ao assistir ao espetáculo. Assim, entre o registro cômico e o dramático — como as organizadoras do volume detalhadamente nos demonstram —, Robert Macaire visitou os palcos cariocas até o ano de 1858, quando a censura impediu A Estalagem dos Trampolineiros de subir à cena do Teatro Ginásio Dramático.

 

O ator João Caetano dos Santos (1856). Gravura de autoria de Sebastien Auguste Sisson.

Fonte: Biblioteca Nacional

 

Os pareceres censórios acusam a peça de subversiva, pois que desrespeita a religião, os poderes políticos e as autoridades vigentes, bem como viola a moral e a decência pública. Como se vê, "mudam-se os tempos, [mas não] mudam-se as vontades" ecoam os versos camonianos e o discurso censor, estapafúrdio comme d'habitude, aponta para uma ameaça de perigo socialista (acreditem!), iconizada na personagem de Robert Macaire sem dúvidas, agora um mito! — que cometia crimes visando à distribuição de rendas.

As acusações não param por aí. Os censores tomam emprestados argumentos de críticos estrangeiros para sustentar que o Brasil sofria ameaça de instauração de uma ordem política de viés socialista. A Estalagem dos Trampolineiros incitaria, pois, a supressão do casamento e a abolição da família — Bolsonaro que se cuide! — , colocando em xeque a estrutura social patriarcal, por isso a peça não poderia ser encenada no Rio de Janeiro, uma vez que era nociva ao povo brasileiro.

Se Robert Macaire, o anti-herói, arranca risos e aplausos do público espectador do teatro nos fins dos anos 1840; se o melodrama romântico faz teatrólogos realistas de renome, como Machado de Assis, José de Alencar e Martins Pena, rirem no final dos anos 1850; hoje, são censores desse tipo que "nos fazem rir para não chorar", sobretudo quando notamos que seus argumentos ainda existem/persistem/insistem/resistem e se espalham em tom perigosamente fascista no meio de nós.

O fato é que o gênero melodramático, de cunho romântico e de caráter pedagógico, viu-se competindo, entre os anos de 1850-60, com a comédia realista, primeiro francesa, depois nacional. Atores da alçada de João Caetano, que chegou a ser apelidado de "Frédérick Lemaître brasileiro" e que era "o queridinho" do imperador D. Pedro II, foram considerados caricatos e constantemente ridicularizados por críticos modernos como Furtado Coelho.

Contudo, a personagem de Robert Macaire permanece intocável à passagem do tempo e adentra o século XX como mito, espécie de Chaplin de Tempos modernos (1939), reconhecem Carvalho e Rondinelli:

 

Um, como outro, dotados de ontologia, transcendem as obras em que aparecem, subsistindo reconhecíveis em seus traços característicos. Daí ao seu eventual desaparecimento da cena ser apenas relativo — ambos retornariam noutro filme, noutra peça, decalcados dos limites da ficção rumo ao imaginário social (p. 124).

 

De fato, Robert Macaire tornou-se "herói imorredouro", continuam as pesquisadoras-tradutoras, pois, nascendo num teatro onde disputavam heróis e vilões de boa e má aparência, respectivamente, conseguiu, com a ambiguidade de seus trajes e gestos, extrapolar o modelo tradicional. O vilão-herói Macaire encerra a peça arrependido: devolve o dinheiro que havia roubado, mas para conseguir fugir em liberdade, entrega às autoridades seu comparsa agora sim em "delação premiada"! Uma personagem que chocava as instituições de seu tempo, preocupadas com a manutenção da "moral" e dos "bons costumes", daí o seu valor ter sido reconhecido tardiamente.

De acordo com a pesquisa histórica de Carvalho e Rondinelli, Robert Macaire não só desfila pela literatura e pelos palcos durante todo o oitocentos, como também conhece o protagonismo no cinema no século XX. Entre 1901 e 1925, Macaire estreia em filmes silenciosos, um deles rodado por Georges Méliès, em 1906. Vinte anos depois, Robert Macaire e seu intérprete Frédérick Lemaître foram homenageados por Marcel Carné, em O boulevard do crime (Les enfants du paradis, 1945). Na década de 1970, a personagem de A Estalagem dos Trampolineiros experimenta a telinha como protagonista de três filmes rodados na televisão.

Por fim, pode-se dizer que Robert Macaire se sustenta no rol da fama até hoje, quando, em pleno século XXI, somos presenteados com a belíssima e nova tradução de L'Auberge des Adrets, que preferiu, à guisa de homenagem, manter o título que seria dado à peça censurada em 1858: A Estalagem dos Trampolineiros. As notas, recheadas de referências históricas e bibliográficas, trazidas por Carvalho e Rondinelli, só abrilhantam o estrelato do livro. Resta-nos agora aguardar a assinatura de Robert Macaire na calçada hollywoodiana.

 

 

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O livro: Benjamin Antier, Lacoste de Saint-Amand e Paulyanthe. A Estalagem dos Trampolineiros.

Trad. Danielle Crepaldi Carvalho e Bruna Grasiela S. Rondinelli

Guaratinguetá/SP: Penalux, 2014, 168 págs., R$45,00

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setembro, 2016

 

 

 

Cynthia Agra de Brito Neves. Graduada em Letras (UNICAMP, 1995), Mestre em Educação (PUCCAMP, 2008), Doutora em Linguística Aplicada (UNICAMP, em co-tutela com a Université Stendhal Grenoble 3, na França, 2014). Prestou consultoria a Luiz Miguel Duarte na recente tradução de O pequeno príncipe, de Antoine Saint-Exupéry, pela editora Paulus (2015), assinando igualmente a apresentação do volume. Atualmente, é Professora Assistente-Doutora do Departamento de Linguística Aplicada (DLA) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), na UNICAMP.