Esta deve ser a resenha mais curiosa e inusitada que já iniciei a escrever. Conheci uma poeta e seu livro, antes apenas amiga de rede social, em minha passagem por Belo Horizonte, com a sensação de sonho por estar diante de uma criadora identificada com um tema recorrente da minha poesia, sem que jamais nossos textos tivessem se tocado. Trata-se da poeta e historiadora mineira Adriane Garcia e de seu último livro Só, com peixes (Confraria do Vento, 2015), prefácio de Nelson de Oliveira. Antes, ela publicou Fábulas para adulto perder o sono, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura Helena Kolody, e O nome do mundo.

Para o leitor ou a leitora ter uma ideia, abri o volume a esmo e li do "Desejo da palavra aquática/ Da palavra amniótica/ Da palavra silenciosa/ Dos peixes" ("Afogamento") e, algumas páginas depois, que "Os peixes têm/ Uma linha lateral/ Com a qual se/ Localizam", além de "Boa memória/ E nós que nos/ Gabamos de/ Nossa história/ Temos é muita/ Imaginação." ("Exatidão"). De minha parte, não só publiquei dois livros de poesia nos quais ocorrem motivos aquáticos e de navegação, mas também narrativa curta na qual um personagem píscio, representando parte da consciência do narrador, "Esbate-se nas coisas até que retire delas um sumo de rio, no qual deflui a nadar" e "Exerce um silêncio de peixe, o atento silêncio dorsal dos peixes". Assim, pisces-gêmeos como os do céu noturno, construímos um aqua-mundo antropomorfizado.

Deixemos, no entanto, essas coincidências à parte, ainda que me fosse impossível iniciar esta resenha sem me referir a elas, tal a impressão que causaram.

O livro começa tratando do universo ao qual estará integralmente dedicado, numa unidade temática que extrapola a mera soma das partes: "Tem vezes que chego em casa/ E tomo um copo de chuva// Desde aqueles tempos em que/ Ivo viu a uva/ A palavra clamava inundação// Na videira o que me interessava/ Era o líquido" ("Ébria"). Essa ebriedade conquistada através da chuva, marcada pela distensão do tempo da infância à fase adulta, abarcará a vida como ela é vivida pelos peixes.

Quem escapa do seu malogrado destino social, num país ordenado para carrear verbas públicas ao improdutivo capital financeiro, merece a atenção da poeta: "Quem vê aquele menino nadando/ Sem jamais blasfemar a água/ De seu batismo// Não sabe que ele é um peixe/ Que escorregou do anzol/ Pro rio" ("Sobrevivente"). Todavia, seja qual for o assunto, "É preciso ter paciência/ É preciso saber bem o que se passa/ E não enfiar a boca em qualquer/ Salvação" ("Maturidade").

A peregrinação dos salmões, que morrem na mesma água doce em que nasceram, produz interessante reflexão acerca da nossa continuidade: "Filhos nunca saberão/ Nadadeiras laceradas/ Exceto quando forem/ As suas" ("Salmão"). A cor da água-viva fulgura em "É molhada mesmo quando/ Caminha, de mármore, seus passos" ("Medusa"). Alguns poemas tem final tão surpreendente que, para assegurar o prazer da leitura, não me atrevo a citá-lo ("A multiplicação dos peixes" e "Mulher na pescaria", p. ex.). A sereia benévola deseja que o canto funcione, sem que, no entanto, o amor se afogue, num título que evoca a cor do mar e um veneno ("Cianídrico"). Em outro momento, a mulher-peixe é atingida por um arpão: "O homem não se importava com/ Levar uma sereia/ De rosto desfigurado e sem/ Coração" ("O arpão"). Porém, afirmando-se enquanto peixe-pessoa, "Sendo/ Ela nem precisa/ De espelho" ("Sereia").

De nada serve proteger o (ou proteger-se do) amor, dizem versos muito criativos, com termos que não se esperaria ante o tema: "Mergulhar com/ Escafandro/ Não seria um mergulho// Seria como/ Pular de um prédio/ E não partir/ A cabeça" ("Amor").

A tentativa de uma menina de pôr fim à vida, quando um peixe "Pulou para fora/ Do seu pulso" não se desenha em oblíqua apologia, mas em superação. Como nos versos de "O velho e a morte" de Jean de La Fontaine, nos quais um homem cansado de carregar seu feixe de lenha o lança ao solo e chama pela morte, mas quando esta surge com o gadanho, ele roga apenas que o ajude a pôr o feixe às costas: "O peixe significava/ Uma páscoa/ E outra vida" ("Menina de crônica depressão").

Dialeticamente, "O cardume é um peixe só" ("Pedra-peixe"), verso que possibilita uma incrível imagem de movimento.

O poema de divulgação da editora afirma que "Os peixes estão todos/ Tristes". A precisão do verbo é importante: eles não são tristes. Estão, apenas. Os versos "Ninguém se pergunta/ De onde vem a água?" fazem recordar da resposta que ouvi dos habitantes de Mucajaí-Mirim, no interior de Roraima, que costumam se interrogar sobre essas coisas: a água dos rios desceria pelo arco-íris; os filhotes de peixe cairiam do céu dentro das gotas de chuva, o que explicaria sua presença no ambiente circunvalar das lagoas. A voz poética do livro responde a seu modo, escancarando as dores do mundo: "Ninguém desconfia/ Que os peixes choram?" ("A origem da água"). Mais adiante, no entanto, propõe ir além: "Não vejo salvação alguma/ Se meus olhos constantemente/ Turvam" ("A corcunda"). Até encontrar nova síntese: "Cegos que/ Finalmente enxergaram/ Para além das lágrimas ("Procissão") e "Depois que passaram lama/ Nos seus olhos/ Ela voltou a enxergar" ("Lama").

Fecha o livro um poema correspondente, no sentido baudelairiano do termo, ao do início: "Um dia, minha mãe trouxe um cascudo/ Vivo/ Havia fome para comê-lo/ Mas encantamento para pô-lo/ No tanque/ Meus cinco irmãos se cansaram/ De um peixe inerte e escuro/ Eu grudei a minha boca/ No fundo" ("Eu, cascalho e cascudo"). Um pouco antes, ao se encaminhar para a areia, a voz exala uma espécie de conclusão: "O sol bate nos grãos/ E é tão real/ Do sonho do mar/ Só trago o sal" ("Despedida"). Seguindo-se nova necessidade, "Estou urgente ávida/ De um sonho" ("Afã de outros absurdos"), porque, afinal, a poesia-vida continua.

 

 

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O livro: Adriane Garcia. Só, com peixes.

Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015.

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setembro, 2016

 

 

Sidnei Schneider. Poeta, ficcionista e tradutor em Porto Alegre. Publicou os livros Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012), Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997) e Poemas 1987-1992 (Artesanal, 1992). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), O melhor da festa 1 e 2 (FestiPoa Literária, Porto Alegre, 2008 e 2009), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011), Poesia Gaúcha Contemporânea (Assembleia Legislativa-RS, 2013) e outras antologias. 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM, 1995; 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS, 2003; Prêmio Açorianos de Divulgação literária, Prefeitura de Porto Alegre, 2008. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

 

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